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Pactos pela Modernidade

O projeto modernizador em região periférica teve duplo aspecto: ao mesmo tempo em que introduziu importantes transformações modernas em sociedades ainda feudais promoveu “o aprofundamento das velhas mazelas do atraso nestas sociedades” (RESTREPO, 1993, p. 42). As conseqüências deste processo constituem ainda hoje tema de debate nos países latino-americanos e matéria vertente nas narrativas produzidas nestas condições.

A chamada modernização sem ruptura (LEITÃO, 1992), ou seja, sem uma efetiva revolução, foi possível através de uma aliança entre as antigas oligarquias rurais e a recém-estabelecida burguesia citadina, em resposta às demandas estrangeiras. Tais acordos foram firmados sem nenhuma participação das classes trabalhadoras. Ainda segundo Leitão (1992, p. 194), “não dispúnhamos de uma classe burguesa orgânica a quem delegar a missão; tampouco criamos o citoyen (o homem que sintetiza em si a vida pública e a vida privada) ou a comunidade humana autêntica”. Nestas condições, sem contar com uma grande transformação social, as mudanças políticas foram determinadas pelas alianças entre a burguesia e as antigas classes dominantes, distantes de qualquer participação popular.

A história de Fausto condensa a aventura do homem em busca da modernidade e, neste sentido, o dilema fáustico ilustra o conflito modernizador também nos países periféricos, cuja versão mais famosa foi criada em um país em que o processo de modernização nos séculos XVII e XVIII é comparável ao dos países sul-americanos nos séculos XIX e XX justamente pela coexistência de estruturas arcaicas e modernas.

No entanto, só em parte o contexto histórico da América Latina no início do século XX é comparável ao da Alemanha do final do século XVII. Neste país, da mesma forma que na América Latina, o feudalismo e os modos arcaicos de produção eram vigentes quando o processo modernizador já estava em curso nos grandes centros; o país estava atrasado relação à modernização da França e da Inglaterra. Na Alemanha, porém, tais modos de produção seriam assimilados ou extintos pelo capitalismo moderno; já na América Latina, os modos arcaicos e modernos de produção mantêm uma relação de simbiose, sem que haja mesmo previsão de superação de nossa condição de dependência das metrópoles capitalistas.

Esta diferença deve-se ao fato de que na Alemanha se constituiu uma classe com condições revolucionárias semelhantes aos do resto da Europa, mesmo que com atraso em relação aos centros. Esta classe, a burguesia, que promoveu uma revolução na Europa para tomar o poder e estabelecer seu status quo, aqui viria a se estabelecer sem revoluções, formada a partir das classes já dominadoras, em resposta à modernização imposta pelas elites estrangeiras da Europa e dos EUA. Para Marshal Berman (2005, p. 49),

a cisão por mim descrita na figura do Fausto goethiano ocorre em toda a sociedade européia e será uma das fontes básicas do Romantismo internacional. Mas tem uma ressonância especial em países social, econômica e politicamente ‘subdesenvolvidos’. Os intelectuais alemães no tempo de Goethe foram os primeiros a ver as coisas desse modo, comparando a Alemanha com a Inglaterra e a França, e com a América (...) No século XX, os intelectuais do Terceiro Mundo, portadores de cultura de vanguarda em sociedades atrasadas, experimentaram a cisão fáustica com invulgar intensidade.

Nos países da América Latina, a angústia de estarmos em situação de descompasso histórico em relação aos grandes centros, um drama fáustico por excelência, foi um dos elementos que impulsionaram o processo tardio e violento da modernização. O dilema fáustico nestes países é agravado pela contradição inerente à sua condição de dependência das metrópoles. De maneira a viabilizar tal modernização descontínua e falaciosa, muitos acordos – pactos nefastos – marcaram a história latino- americana. Estes pactos sempre aliaram as elites latino-americanas e estrangeiras, em detrimento do campesinato e do proletariado.

Assim é desde o Brasil colônia. O descobrimento da América, no século XVI, forneceu o meio definitivo de incremento e propulsão da modernidade para o capitalismo europeu. A Inglaterra, colonizadora da América do Norte, detinha o controle indireto das colônias de Portugal e de Espanha. Por um lado, este país beneficiava-se da violenta colonização de extração da América Latina e, por outro, empreendia uma colonização de povoamento mais eficiente na América do Norte,

ampliando assim o seu território e afirmando seu projeto imperialista. As colônias latino-americanas herdaram e cristalizaram a estrutura feudal das nações colonizadoras, que durante três séculos continuaria a vigorar, mesmo quando a Inglaterra impôs a modernização do continente, já na passagem do século XVIII para o XIX.

O conflito modernizador começa a ganhar vulto na América Latina já por volta de 1850, quando a monarquia brasileira aceitou uma série de medidas impostas pela Inglaterra, visando a modernização capitalista do país, a fim mudar sua fisionomia e encaminhar-se para o que então já se considerava modernidade: a extinção do tráfico de escravos, a promulgação da Lei de Terras, centralização da Guarda Nacional e a aprovação de um código comercial. O fim do tráfico resultou na liberação de capitais resultantes, o que deu origem a uma intensa atividade de negócios e especulação no sudeste. Nesta época surgiram bancos, empresas de navegação a vapor, indústrias. Graças a um aumento das tarifas de produtos importados, a receita nacional cresceu.

A constatação da defasagem em relação ao ‘outro’ da metrópole, o dilema fáustico por excelência, foi um dos elementos propulsores do projeto modernizador na América Latina. As revoluções de independência, inspiradas no pensamento liberal burguês que tinha por base o Enciclopedismo francês e o Materialismo inglês, proposições do ‘século das Luzes’, também apontavam o caminho da modernização como a saída para os problemas econômicos e sociais do país.

A fim de otimizar as transações comerciais, a Inglaterra, credora do Brasil desde o século XVII, e os EUA, a partir da Segunda Guerra Mundial, passam a exigir das nações suas dependentes, pactárias, o incremento das instituições financeiras e de exportação. Esta demanda gerou nos países colonizados um processo violento e desigual de modernização. Por um lado, o país modernizava-se para adequar-se à nova ordem mundial e, por outro, mantinha fórmulas arcaicas como a escravidão e o clientelismo, a fim de sustentar esta mesma modernização dos países dominadores.

Um dos maiores desafios desta modernização do comércio interno e externo era o transporte de produtos, até o século XIX feito através de estradas precárias, no lombo de burros, até os portos, também poucos e desaparelhados, para de lá seguirem para a Europa e os Estados Unidos. Por esta época, o produto de maior exportação do Brasil passou a ser o café, angariado pelo gosto do consumo interno e externo, sobretudo nos EUA, e pela decadência da cana-de-açúcar, com a concorrência do

açúcar de beterraba da Alemanha, e do açúcar de Cuba, que dispunha de 70 % de seus engenhos maquinizados, em contraste de 2% no Brasil.

De fato, no nordeste do Brasil, mais que em qualquer região, a estrutura da sociedade colonial não se vergava facilmente aos processos modernizadores. Nesta região, as oligarquias rurais procediam ainda da monarquia portuguesa e, portanto, estavam atreladas ao absolutismo e aos sistemas arcaicos de produção. Por um lado, as oligarquias nordestinas impediam o surgimento de uma classe com capacidade revolucionária – como a que se esboçava no sudeste brasileiro, ainda que debilmente, por influência principalmente dos imigrantes europeus procedentes do proletariado de seus países – e, por outro, rejeitavam e ficavam à margem das inovações impostas pela modernidade, tais como a libertação dos escravos, a melhoria das condições de transporte de produtos e da malha portuária, a modernização dos engenhos e, principalmente, o ingresso da mão-de-obra assalariada estrangeira. As oligarquias do sudeste, pelo contrário, foram erigidas à sombra da industrialização inglesa e da exportação do café e eram, portanto, mais abertas às inovações modernizadoras.

Com o fim do tráfico, o mercado negreiro voltou-se para os proprietários rurais em decadência, concentrados no nordeste, de quem os escravos eram comprados por preços baixos e levados para o sudeste. Outro fator agravante da decadência dos latifúndios nordestinos é que muitos dos investidores do nordeste deslocaram-se para a Amazônia, com a crescente exploração da borracha naquela região, levando consigo os capitais restantes nesta região. Finalmente, as grandes imigrações que tiveram início ainda no século XIX e se intensificariam até meados do século XX, patrocinados pelas oligarquias cafeeiras, e das quais os pequenos produtores nordestinos ficaram de fora, propiciaram uma diversificação da economia ao sudeste que confirmou de vez a supremacia do comércio desta região em relação às demais regiões do país.

Paralela a esta incrementação da estruturas comerciais do sudeste, assistiu-se no Brasil a vários acordos que excluíam a participação popular depois da proclamação da República. O primeiro pacto se deu na Primeira República, entre a chamada República Oligárquica e as antigas oligarquias rurais, representadas, principalmente, pela oligarquia do café, de grande influência até depois da Segunda Guerra Mundial, e que forçou desde o século XIX. Já na década de 1930, a aliança se deu entre o governo, a chamada República Liberal, e o Exército, que anteriormente carecia de unidade, e

sofria de cisões internas, mas que, com a Guerra do Paraguai, unificou-se. Este acordo, em última instância, culminou com o golpe militar que levou as Forças Armadas ao poder, não sem ‘pacto’ entre a burguesia industrial, as oligarquias remanescentes e este novo governo.

Já no início do século XX, por um lado, ainda persistia no Brasil o sistema produtivo de base feudalista, mais arraigado nas regiões distantes das metrópoles brasileiras e, por outro, começavam a ser disseminadas idéias novas, de cunho modernizante, impulsionadas pela Revolução de 30, e pelo imperativo de adaptação do país ao mercado mundial. A modernidade dos países europeus, na verdade, escorou-se no atraso dos países colonizados para se estabelecer. Ao mesmo tempo em que estes países impunham a compra dos excedentes industriais da Primeira Guerra Mundial pelos países periféricos do capitalismo mundial, compravam produtos agrícolas e manufaturados a preços baixos, garantidos pelas estruturas arcaicas, que se utilizava da mão-de-obra semi-escrava, e mesmo escrava dos países latino-americanos.

Nossa pergunta, entretanto, retorna aqui: o que teria o fracasso da modernização representado em SB a nos ensinar com relação à Modernidade do mundo ocidental como um todo?

1. 5. Sonhos de Modernidade e de Arcaidade: de Paulo Honório Fomentador a