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Gradiente 4: Oscilações da narração e do narrado

2.3. Paixões: complexo modal e sintagmatização

2.3.2 Esquema patêmico canônico

Dedicamos uma seção ao esquema patêmico canônico por estar, obviamente, ligado à abordagem semiótica das paixões, e por julgarmos que ele demanda uma consideração específica. Tal esquema foi esboçado pela primeira vez em Greimas e Fontanille (1993) e visa lidar com o aspecto “esquemático”/”esquematizável”, “sistemático” da aparição das paixões no discurso. Claramente inspirado no esquema narrativo canônico, ele nos aponta outro dado relevante no que se refere à concepção semiótica das paixões: estas se ligam à práxis enunciativa, ou seja, estão imbrincadas no “ir-e-vir” da enunciação, e, de alguma forma, segundo Greimas e Fontanille (1993), sedimentadas e depositadas nas estruturas semionarrativas.

As paixões são, conforme os autores, conjuntos de estereótipos que, pelo uso linguístico, são depositados nas estruturas semionarrativas do PGS e codificam determinados segmentos modais, além dos elementos de ordem fórica que são convocados no momento da discursivização. Conforme os mesmos autores (GREIMAS; FONTANILLE,1993, p. 75), o processo de estabilização de uma paixão se dá do seguinte modo (fazendo nós aqui as devidas ressalvas quanto ao caráter ainda aparentemente intuitivo de muitas das formulações destes autores na obra Semiótica das Paixões):

 “Os dispositivos modais são convocados em discurso e submetidos a uma aspectualização, que resulta da convocação das modulações tensivas e que as transforma em disposições passionais.”

 “Pelo efeito do uso (socioletal ou idioletal), esses dispositivos são fixados e estereotipados para entrar em taxionomias passionais conotativas.”

 “Uma vez estereotipados, eles são remetidos ao nível semionarrativo e, então, convocáveis tais quais.”

 “No seio das sequências modais estereotipadas, a sintaxe intermodal é a forma fixa, ela mesma estereotipada pelo uso, da aspectualização convocada no ponto 2 [2º tópico, o anterior], e, portanto, também de certas modulações tensivas; os efeitos de sentido produzidos pela inserção de dada modalidade num dispositivo fixo resultam, portanto, da codificação pelo uso das disposições do nível discursivo.” (colchete nosso)

 “Convocando os dispositivos estereotipados em discurso, convocam-se aí também essas codificações de disposições e, consequentemente, das formas fixas da modulação tensiva.”

Uma língua, portanto, formula uma “imagem” sistematizada de uma paixão, ao mesmo tempo que estabiliza conotações culturais em torno dos afetos e das vivências dos homens. É a sedimentação do uso que dá caráter identificável a uma paixão, uma vez que delimita o dispositivo modal, bem como sua sensibilização e moralização, esta última realizada por um observador de ordem social. É neste ponto que se insere a importância do esquema passional canônico, que permite captar uma “racionalidade discursiva” das paixões, ou o que determina que um percurso patêmico seja “narrável” e identificável:

A paixão em discurso remete-se ao “vivido”, ao sentir: com relação à presença, ela é uma intensidade que afeta o corpo próprio, eventualmente uma quantidade que se divide ou se une na emoção. No entanto, da mesma maneira que as outras dimensões do discurso, a dimensão passional é esquematizada pela práxis enunciativa, e essa esquematização permite-lhe escapar do puro sentir. A esquematização torna a dimensão passional inteligível e permite-lhe inscrever em formas culturais que lhe dão seu sentido. (FONTANILLE, 2015, p. 130)

Fazer essas considerações é importante porque, no decorrer de toda a análise, poderemos estar nos utilizando do esquema patêmico canônico. Já colocamos no início deste capítulo que foi Fontanille o principal semioticista que realmente continuou a buscar um aprimoramento desse modelo exposto pela primeira vez no Semiótica das Paixões, acrescentando-se que mais recentemente Lima (2014) também propôs mais uma reformulação de tal esquema. Todavia, não adotaremos aqui a reformulação de Lima, ainda que a autora busque ver o esquema passional canônico aliado à tensividade — o que converge com os nossos intuitos teóricos — pelo fato de que isso demandaria termos de assumir outros posicionamentos teóricos da autora, já mencionados por nós neste capítulo, posicionamentos pertinentes, mas

que implicariam em toda uma reformulação do modo como temos pensado nossa fundamentação teórica.

Utilizar-nos-emos, portanto, aqui dos modelos engendrados por Fontanille (1993; 2015, p.130-133), pelo fato de eles já fazerem a articulação entre elementos tensivos e elementos dessa racionalidade sintagmática que está relacionada a todo um percurso passional. O esquema assim se organiza:

despertar afetivo10 – disposição – pivô passional – emoção – moralização

Expliquemos um pouco alguns desses elementos. A fase da constituição, conforme Fontanille (1993), ou despertar afetivo, conforme reformulação de Fontanille (2015), representa a aparição de uma aceleração do andamento no texto, como em um caso de um sujeito que se agita ou de um encolerizado. O despertar afetivo é, pois, um momento em que o sujeito se encontra em uma oscilação fórica, devido a uma alteração de intensidade, e em que se inicia uma trajetória passional em vista de um objeto-valor. Importante frisar também que o despertar afetivo se coloca como um caracterizador do estilo tensivo de uma paixão, ou seja, ele passa a ser marca permanente do percurso passional do sujeito.

Se pensarmos bem, conceber que uma paixão específica apresenta um “estilo tensivo” é já pensar numa espécie de elemento sistemático da língua, ou seja, a paixão, até mesmo em seus aspectos tensivos, apresentaria certa estabilização, já que podemos dizer que a cólera se caracteriza pela sua subtaneidade e rapidez, que o desânimo se caracteriza por apresentar um andamento lento, entre outros possíveis exemplos. Neste ponto, aproximamo- nos de uma face da noção de disposição, já que podemos entendê-la como um dispositivo sensibilizado que “insinua” uma “identidade modal”, ou “competência modal”, do sujeito patêmico, ou, melhor dizendo, das modalizações do seu ser que, “canonizadas”, caracterizam uma determinada paixão.

Já a patemização, ou pivô passional, é o momento em que o sujeito confirma a “performance” passional, ou seja, a título de exemplificação, é o instante em que o sujeito

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desesperado tem o “acesso de desespero”, que o ciumento tem a “crise de ciúme”, que o colérico se encoleriza, etc. A patemização parece ser, senão o momento de maior intensidade, pelo menos o do irrompimento da paixão em sua especificidade, o marco que nos permite declarar que é este e não aquele percurso patêmico que está se manifestando. Para entendermos o pivô passional basta pensar ainda que, em uma mesma ocasião, dois sujeitos poderiam reagir de modo diferente a ela, assumindo a postura de um “desesperado”, e o outro, assumindo a postura de um sujeito “paciente”. É essa “deriva” que serve como indício deflagrador da especificidade do percurso.

Há ainda os elementos concernentes aos indícios figurativos mais densos da paixão e que servem para marcar a alta intensidade. Estamos falando dos pontos relativos, mais especificamente, à “reembreagem sobre o sujeito tensivo” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993), isto é, à fase da emoção, ou seja, as expressões somáticas e as isotopias proprioceptivas e fóricas que aparecem nos textos. É a partir das figuras que vemos como o discurso se utiliza para expressar de modo mais concreto determinadas características e efeitos de uma paixão (ex.: rubor das faces, no caso da vergonha; ranger dos dentes, no caso da raiva; aperto no peito e sufocação, no caso da angústia).

Para tratar do último componente relativo às nossas considerações sobre o esquema passional canônico, nos valemos de uma analogia, para tratar da moralização, a fim de sermos claros: se a disposição é um “cardápio passional”, a moralização é a crítica do nutrólogo. Esta fase representa, portanto, uma “sanção” sobre o sujeito apaixonado, a revelar o fato que um a paixão é sempre identificada e axiologizada (julgamentos de excesso, falta ou justa medida) por um determinado observador, este último que representa uma instância de ordem social e cultural. É neste ponto também que fica claro o fato de as paixões fazerem parte de taxionomias conotativas de uma língua.

Em linhas gerais, no que concerne ao esquema patêmico canônico, vemos que há muitas vezes uma aproximação entre as fases da emoção e da constituição/despertar afetivo. Esse ponto é importante porque mostra que, na superfície do discurso, podemos encontrar uma irrupção da tensividade fórica. O nível tensivo fórico, como temos dito, espaço do figural, repercute em toda a cadeia gerativa do discurso, ou, pelo menos, é reevocado pela enunciação, sendo a figuratividade mesma uma simuladora da percepção, como colocamos na subseção anterior. Por outro lado, é essa tensividade que, embora o que vamos afirmar pareça contraditório, expressa uma própria estabilização, operada também pela práxis enunciativa, da

“prosódia” de uma paixão, ou seja, aspectos rítmicos e aspectuais que delineiam o perfil fórico, os estilos tensivos ou estilos semióticos do sujeito patêmico.

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