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Paixão, estesia e “virada fenomenológica”

Gradiente 4: Oscilações da narração e do narrado

2.4 Paixão, estesia e “virada fenomenológica”

Ao mencionarmos o tema da figuratividade, fazemos as últimas considerações deste capítulo. Os fenômenos passionais aparecem no discurso muitas vezes adensados semanticamente e é este fator também que faz com que o estrato figurativo do sentido dialogue com a questão da percepção e da tensividade. Este ponto começou a ser alvo de maiores reflexões a partir do livro Da Imperfeição, o que gerou toda uma nova forma de ver essa dimensão perceptiva e uma “figuratividade profunda” nas últimas décadas. É como consequência disso que esse estrato de abordagem do sentido passou também a ser visto como um âmbito em que são gerados efeitos, por exemplo, de alucinação e irrealidade que eventualmente aparecem nos textos e que geralmente estão relacionados com o universo passional dos discursos:

Essa modalidade, realmente, institui o espaço fiduciário que assegura a um só tempo a variação e a junção entre os diferentes níveis de apreensão e interpretabilidade reclamados pelas isotopias figurativas: os efeitos de realidade, mas também de surrealidade ou irrealidade, os efeitos de sensibilização, abstração e argumentação, etc. (BERTRAND, 2003, p. 235)

Bertrand (2003, p. 234), ao falar sobre o livro Da imperfeição, ainda diz: “As vias figurativas do sentido estavam doravante ligadas ao acontecimento da apreensão perceptiva e a sua avaliação estética.”. A figuratividade passou a ser entendida, também, como uma “tela do parecer”, em expressão consagrada de Greimas, estando relacionada aos efeitos de sensibilização do texto na própria instância do enunciatário, já que essa dimensão da significação está relacionada ao /fazer-crer/ e ao apelo de dimensões sensoriais (tato, visão, etc.), o que aparece de modo abundante em textos de dimensão artística, como os literários, pinturas e no cinema, por exemplo.

Todos esses elementos apontam para uma dimensão estésica do sentido, o que está relacionado a questões que têm sido umas das pautas centrais na semiótica da última década do século XX até os dias atuais. Importante lembrar, conforme Leite (2016), que, desde a chamada

“virada fenomenológica”11, — que marca a entrada dessas questões na pauta central da teoria

— pode estar havendo, por parte dos semioticistas, uma espécie de hipostasiamento do corpo enunciante, principalmente em trabalhos com questões relativas às paixões e à tensividade. Leite (2016) ainda constata esse ponto e coloca que conceitos como “percepção”, “invólucro sensível”, entre outros, devem todos ser manejados com cuidado, uma vez que a semiótica não deve estar preocupada com a origem do sentido, mas com o parecer do sentido e com sua transposição, tal como já dizia Greimas (1970, p. 12). O trabalho de Beividas (2016) aponta também esta questão e se pretende até mesmo combatê-la:

O afeto, o sentimento, o sensível geral é regrado não pelo metabolismo linfático do corpo, humoral, neurobiológico mas pela lide linguageira do sujeito perante os acontecimentos que caem sobre seus ombros a perturbar, entre surpresas, acasos e riscos, seus programas e contra-programas narrativos. Ou seja, dizer que Zilberberg teoriza uma gramática do afeto, imanente à linguagem, é simplesmente concluir: o afeto é estruturado em linguagem. (BEIVIDAS, 2016, p. 120)

A nosso ver, apesar de algumas destas questões não serem de total consenso entre os semioticistas na atualidade, vemos como importante assumir uma postura similar à de Beividas (2016), no que tange principalmente à demarcação do território que é da alçada da semiótica, um território de dimensão linguageira, portanto. Essas questões, como se pode ver, estão ligadas a temas como afeto, percepção e significação, pontos ligados intimamente a questões relativas à semiótica das paixões. São tais questões que, em conjunto com o histórico de introdução e abordagem das paixões, expressam um perfil das pesquisas relativas à temática das paixões na área. Expresso esse “perfil”, passemos para o capítulo seguinte desta dissertação, que se debruça sobre a paixão central deste trabalho: o desespero.

11 O que se chama “virada fenomenológica” na semiótica se refere ao momento, principalmente a partir da publicação do livro Semiótica das Paixões e dos trabalhos de Zilberberg, em que o conceito de corpo, inspirado principalmente na obra Fenomenologia da Percepção (2006[1945]), do filósofo francês Merleau-Ponty, e em outros autores da fenomenologia, foi introduzido na semiótica para lidar com questões relativas a dimensões do sentido e da enunciação ligadas ao afeto e ao sensível. O conceito de “corpo” ainda não foi bem definido dentro da área até hoje, mas está principalmente ligado a uma concepção da função semiótica vista de modo mais adensando semanticamente e como corpo-que-sente-e-que-percebe. Importante lembrar também que um autor como Beividas (2016) prefere o termo “mirada fenomenológica”, ao invés de “virada”.

3 A PAIXÃO DO DESESPERO: UMA VISÃO SEMIÓTICA

“Dois regimes de desespero: o desespero suave, a resignação ativa (“Amo você como se deve amar, no desespero”), e o desespero violento; um dia, em consequência de não sei que incidente, tranco-me em meu quarto e rebento em soluços: sou arrastado por uma onda poderosa, asfixiado de dor; todo meu corpo se retesa e se convulsiona: vejo, num relâmpago cortante e frio, a destruição à qual estou condenado. Nenhuma relação com a depressão insidiosa e acima de tudo civilizada dos amores difíceis; nenhuma relação com o transir do sujeito abandonado: não me abato, mesmo duro. É claro como uma catástrofe: ‘Sou um sujeito desgraçado!

Causa? Jamais solene – de modo algum por declaração de ruptura; a coisa chega sem aviso prévio, seja pelo efeito de uma imagem insuportável, seja pela brusca rejeição sexual: o infantil – ver-se abandonado pela Mãe – passa bruscamente ao genital.’” (Roland Barthes)

No capítulo anterior, frisamos a importância da noção de práxis enunciativa na constituição das paixões, afinal, é pelo uso que estas últimas passam por um processo de estabilização e lexicalização, sendo inseridas em uma rede de taxionomias conotativas regidas pela cultura e pela língua que as compõe. Desse modo, por estar dentro do rol de paixões lexicalizadas, o desespero, em língua portuguesa, apresenta uma feição “sistemática”, e por isso acreditamos ser pertinente ainda depreender o que está cifrado em língua como “desespero”, a bem de ver como, na discursivização, ou seja, na sintagmatização, esta paixão pode ser manifestada de modo singular e com diferentes matizações. Ao dizer isso, estamos assumindo o seguinte princípio: ao discursivizar, o sujeito do discurso, ao mesmo tempo que é produtor do mesmo discurso, é também atingido por uma coerção do que é sistematizado e estereotipado no sistema e nos usos da língua. Saraiva (2014, p. 78) coloca isso nos seguintes termos:

Noutras palavras, o discurso tem como pressuposto de sua compreensão estar construído segundo um código pré-estabelecido, estável, socialmente aceito como tal. Porém, o discurso pode operar alterações neste código, isto é, o discurso redimensiona o código, daí sua instabilidade.

Neste capítulo, buscaremos estabelecer os seguintes pontos que servirão para mostrar as especificidades da paixão do desespero: 1. A configuração semântica em que o desespero se insere ou pelo menos os seus parassinônimos e antônimos elencados em dicionários; 2. O dispositivo modal e a macrossequência “canônica” que o caracteriza; 3. Os

estilos tensivos e aspectuais; 4. E, por fim, uma passagem rápida por algumas afirmações de pensadores e, mais detidamente, pelo filósofo André Comte-Sponville, a bem de expressar como o desespero aparece no microuniverso semântico e no universo idioletal deste autor.

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