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3. A FORMAÇÃO CLÍNICA: CLINICA E TRANSDISCIPLINARIDADE

4.3 ESQUENTAR MOTOR

Imagine um carro antigo que trabalha à álcool como muitos carros dos anos 1980/90. Para andar com esses carros as pessoas diziam que era necessário “esquentar o motor” principalmente de manhã ou se o carro estava muito tempo desligado, parado. Girava-se a chave, o motor ligava, mas não se partia com o carro de imediato, esperava-se de dois à três minutos para o motor ficar “quente” e ai então o carro estava pronto para andar. É assim que concebo o aspecto da simplicidade no trabalho do clínico.

Guattari nos diz que não é o analista que produz análise, mas sim a própria vida tem essa dimensão a partir dos acontecimentos analisadores. Ou seja, o papel do analista em algum sentido é “esquentar esse motor”, é esquentar o movimento que produz um cuidado de si para consigo mesmo (FOUCAULT, 2006). O analista, como um dançarino, produz ideias-danças, metáforas/brincadeiras e perguntas que não pedem respostas necessariamente, tudo isso com o intuito de esquentar, fomentar, conectar e trazer para perto de seus pacientes a experiência de observarem seus próprios afetos. A direção da clínica é a de tomarmos posse de nosso próprio desejo. Sermos agentes de nossa vida na medida em que isso é possível sem ficarmos sempre ao leu das alegrias e tristezas de nossas contingências (SPINOZA,

2009). É preciso que o trabalho clínico vá na direção de fazer com que a pessoa produza análise sobre si, cuide de si mesma e se encontre com uma dimensão de criação da própria vida.

Uma das pessoas que acompanhava nesse processo de criação de si, onde eu entendia que aquele espaço comigo e com ela era um lugar de esquentar motores, me fala sobre o receio que sentia de “voltar a ser o que ela era” antes de estar naquele espaço do SPA. Isso porque naquele momento específico estava terminando meu estágio e propus a ela que encerrássemos seu atendimento. Esta paciente estava frequentando o SPA há dois anos e já vinha em um processo “de motor quente” no que diz respeito à tomada de posse de sua própria vida e de seus desejos. Ela já estava há tempo em ‘processo’ de análise. Quando chegou ali, aos 19 anos, estava com crises de enxaquecas muito fortes que vinham desde sua pré-adolescência, V. dizia mesmo só se dar conta de sua dor muitos dias depois que já estava passando mal, e daí então, lembrava que poderia estar com enxaqueca. Ela estava completamente desconectada consigo mesma. O processo foi longo e aos poucos ela percebeu que se cobrava demais, fazia metas muito rígidas para sua vida em vários ambitos, como por exemplo, em seus estudos na graduação, em seu ideal do que é ser mulher e feminina e também do que era o amor. Então um dia ela chegou a uma formulação que chamamos juntas de insight: “por que quero ser igual aos outros se eu gosto de ser diferente?” foi no período que esse questionamento surgiu que V. começou a criar seus próprios modos de vida, e de fato sua mudança foi bela de acompanhar. Portanto, esse medo que a acometeu, quando começamos a conversar sobre o fim da análise, precisava ser desconstruído, já que não fazia sentido, suas historias mostravam que ela estava atenta a si mesma em vários espaços e momentos de sua vida, incluindo em seus sonhos. Já tínhamos esquentado o motor.

Cada vez mais parece necessário trazer esse sentido simples da clínica, um sentido intuitivo que se constrói não a partir da “devoração” de livros ou do alto coeficiente de rendimento nos cursos de graduação e pós-graduação, ou de alguma coisa hermética, pura e simplesmente intelectual. A formação precisa acontecer no plano da criação de um corpo intuitivo. E como se faz isso? Parece pelo o que já vimos que é sendo objeto de sua própria pesquisa, intervindo acima de tudo em si mesmo. A formação para a ‘atividade de cuidar do outro’ implica um cuidar de si. No seminário Hermenêutica do sujeito, Foucault cita um exemplo:

Epicteto diz a propósito de sua escola de filosofia. Concebe-a como um hospital da alma. Vejamos o colóquio 21 em que ele censura vivamente seus alunos por terem vindo somente para aprender, como diríamos,“filosofar”, para aprender a discutir, para aprender a arte do silogismo, ect: vieste para isto, não para obter vossa cura, com o espírito de vos fazer cuidar (therapeutethesómenoni); não foi para isto que vieste; ora é isso que devereis fazer; deveríeis vos lembrar que estais aqui essencialmente para a cura; portanto, antes de vos lançardes a aprender os silogismos, “curai vossas feridas, estancai o fluxo dos vossos humores, acalmai vosso espírito”. Ou ainda de maneira mais clara no colóquio 23: o que é uma escola de filosofia? Uma escola de filosofia é um dispensário. Quando se sai da escola de filosofia não se deve ter aprendido o prazer, mas ter sofrido (FOUCAULT, 2006, p. 121).

Nesse sentido, após o exemplo de Foucault sobre Epicteto e o que isso apresenta em relação a escola de filosofia, qual deveria ser a relação que estabelecemos com a teórica? Parece que essa relação deve ser construída a partir de alianças de amizade, muito mais do que de filiação. Se não estamos falando de uma verdade absoluta, nos engajamos com uma teoria a partir de qual principio? Pelo principio da produção de vida, vida alegre, vida potente. Os esbarros teóricos também serão esbarros éticos existenciais. Com o que você se conecta? Com aquilo que me faz mais potente, mais alegre!

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UMA CLÍNICA DO CONTÁGIO!

Uma consideração final em um texto que se propõe caminho não pode ser fechada, pois é da própria estrada e de meu percurso enquanto psicóloga que estou falando. E mais, é do meu caminhar enquanto ser humano. Este fim precisa ser também uma possibilidade de contato com novas pistas e esbarros.

O caminho da formação clínica não possui fórmula, ele simplesmente implica o sujeito para continuar se esbarrando e produzindo pensamento sobre esses esbarros. Estar nessa posição implica um trabalho árduo de si sobre si, para produzir essa tal simplicidade da qual falei no terceiro capítulo.

E então como falar de um lugar da clínica? Se ela parece ter por característica primeira, através de um tipo de escuta, a abertura para o diferente, para a com(posição)? Contágio ‘ocupação-SPA’, ‘SPA-ocupação’, ‘Contágio ‘projeto de Orixi-SPA’, ‘contágio clínica individual-Ocupação’, ‘contágio etnografia-clínica’, construindo um emaranhado sem começo nem fim, com possibilidades mil de afetações; co-afetações. Assim, como falar de primazia do contágio? Contágio é isso que atravessa as barreiras e cria esse co(mum).

Há uma ética do contágio, há uma estética do contágio e há uma política do contágio; e essa construção é sempre singular. Sem enquadramentos prévios, esse emaranhado se faz só a partir da experiência. ‘A construção de uma clínica para si’ pode apenas ser pensada no seu processo, não há uma prescrição anterior. Johnny costumava falar “nós temos que ir fazendo e ir ao mesmo tempo pensando sobre as nossas práticas”. Pois, já que não existe um caminho dado em que possamos percorrer não se trata também apenas de observar nossas práticas depois que a vivemos, mas sim de produzir análise com elas, no tempo delas.

Essa é a ética, assim como nos diz Spinoza, entrar em um estado outro de relação com aquilo que nos atravessa. É sair da passividade das paixões para entrar em um modo ativo, aquele que cria junto com os acontecimentos e afecções que nos permeiam; para poder agir! A clínica assim será um ato de (cri)ação!

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Johnny; PASSOS, Eduardo. CARTOGRAFAR É HABITAR UM

TERRITÓRIO EXISTENCIAL. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia;

ESCÓSSIA, Liliana (orgs). Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.

CUNHA, Renata. Programa Educação Patrimonial em Oriximiná: saberes locais

em destaque. [Online]. Notícias Universidade Federal Fluminense, 2016. Disponível

em: <http://www.uff.br/?q=noticias/29-08-2016/programa-educacao-patrimonial-em- oriximina-saberes-locais-em-destaque>. Acesso em: 09 jun. 2017.

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006.

FREUD, S. Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades (1919). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GUATTARI, FELIX. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

GUATTARI, F; ROLNIK, Sueli. Micropolítica: Cartografias do desejo. Editora Vozes, Petrópoles, 1996.

LAROSSA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, apr. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

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MACKLER, Daniel. How hitchhiking helped me become a better psychotherapist

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PASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina. A CARTOGRAFIA COMO MÉTODO DE

PESQUISA-INTERVENÇÃO. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (orgs). Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.

RUSSI, Adriana; ALVAREZ, Johnny; MACIEL, Sonia (orgs). Cadernos de cultura e

educação para o patrimônio. Niterói: 2011. v.1.

______. Cadernos de cultura e educação para o patrimônio. Niterói: 2014. v.2. ______. Cadernos de cultura e educação para o patrimônio. Niterói: 2015. v.3.

No documento A construção de uma clínica para si (páginas 49-54)

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