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NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA OCUPAÇÃO, TINHA UMA

No documento A construção de uma clínica para si (páginas 36-40)

3. A FORMAÇÃO CLÍNICA: CLINICA E TRANSDISCIPLINARIDADE

3.3 NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA OCUPAÇÃO, TINHA UMA

Figura 10 - Nossa ocupação.

Figura 11 - Foto de uma das muitas assembleias em período de ocupação.

Fonte: movimento ocupa Curo.

No dia 27 de outubro de 2016 uma assembleia geral dos estudantes, no campus de Rio das Ostras, deliberou por quase unanimidade a ocupação do prédio do Instituto de Humanidades e Saúde. Naquele momento, os movimentos de ocupação já tinham sido bem consolidados nas escolas secundaristas por todo o Brasil e estava começando agora nas universidades nesse outubro de 2016. Fomos um dos primeiros institutos de nossa universidade a entrar em estado de ocupação, quase ao mesmo tempo que o curso de Serviço Social de Niterói, primeiro curso a iniciar o movimento de ocupação na UFF.

Rapidamente o movimento de ocupação nas universidades foi ganhando força e em pouco tempo tinha-se mais de 168 universidades ocupadas. A pauta principal das ocupações era barrar e fazer um movimento de oposição ao projeto de emenda constitucional PEC 55. Esse projeto tinha por objetivo modificar e estipular um teto máximo para orçamento anual do país e seus gastos no que refere às despesas primárias do país. A estipulação desse teto, dessa máxima de verba seria feita a partir de uma média do que foi o orçamento de 2016 corrigido pela inflação de cada ano. E um adendo ao projeto de emenda faz uma prospecção de vinte anos desse

orçamento. Ou seja, na perspectiva de muitos economistas isso significava, em palavras mais fáceis, um ‘congelamento’ desses investimentos por 20 anos. Segundo o governo do então atual presidente Michel Temer a proposta era necessária para compensar a crise econômica que vinha assolando o país.

Como dito acima economistas e estudiosos da área diziam que essa proposta não era necessária e que ela teria impactos diretos na vida da população, consequentemente ainda mais para a população mais pobre. E isso ainda não resolveria o problema da crise econômica. Em vez de ser feito, por exemplo, auditoria da dívida pública, taxação de grandes fortunas dentre outras medidas que estudiosos da área dizem serem muito mais eficazes para o problema financeiro do país, os governos apenas estava mais uma vez prejudicando diretamente a população, retirando seus direitos básicos. Já com o orçamento congelado, as verbas destinadas, por exemplo, à saúde e a educação não acompanhariam as necessidades desses serviços, por conseguinte precarizando-os ainda mais.

Este era o cenário e pauta de luta nacional que uniam esses movimentos de ocupação. Todavia a ocupação é um movimento que tem pautas locais e isso também gera impactos locais. Os alunos pegam seus pertences; colchões, travesseiros, panelas, comidas e se mudam para dentro de suas universidades. Tomam o controle da segurança do local, das portas, das salas. A ocupação é um ato simbólico em que fazemos um movimento de dizer que aquele lugar é nosso, ou seja, aquele local não é do governo, da presidência. Aquele lugar não é do poder Estatal, aquele local pertence à população e serve para ela. Esta consciência é uma consciência perdida em um mundo capitalista dos espaços privados em que, o sentido de pertencimento ao que é público não existe. E ainda mais

[...] há que se repensar a relação entre estado e políticas públicas. Acreditamos que estes termos não podem ser tomados como coincidentes, visto que os domínios do Estado e do público não se justapõem... Apostamos que o plano do público só pode ser construído a partir das experiências de cada homem inserido na coletividade [...] (MONTEIRO et al, 2006, p. 11).

Em uma roda de conversa no período da ocupação, uma moradora da cidade que estava participando da atividade falou que muitos dos seus vizinhos e amigos,

quando convidados por ela para irem à UFF, diziam não entrar lá por “vergonha”8. Vergonha só se tem daquilo que não é dado como nosso. Daquilo que vivenciamos como estranho, como do outro, não se tem vergonha de se entrar na própria casa.

Essa vergonha, esse sentimento de ‘despertencimento’ era experimentado até mesmo pelos próprios alunos, por exemplo, muitas das salas de nosso pequeno prédio eram desconhecidas, ou mesmo os alunos nem sabiam da existência de alguns lugares. Antes da ocupação eu, por exemplo, nunca tinha entrado para fazer nenhuma atividade na quadra esportiva9 do meu instituto. Esse primeiro contato com a quadra foi relatado por vários colegas. No período de ocupação nós começamos a utilizar e a viver o nosso prédio, ainda que o prédio fosse e é extremante precarizado, criamos maneiras de viver lá de uma maneira mais criativa, mais circular. Não queríamos mais utilizar o espaço da universidade da mesma maneira antiga: aquela em que só se usa a sala como sala de aula, em que as pessoas andam de um lugar ao outro para sair e entrar de suas aulas. Nós resignificamos aquelas paredes, o hall deixou de ser espaço de passagem e se tornou lugar de encontros, de assembleias contínuas, lugar de se alimentar, local de atividade de meditação e yoga, lugar de encenações teatrais. O hall ganhou vida e isso era fácil de ver por quem estava passando ali.

Não é intuito deste trabalho relatar e percorrer todo o caminho de ocupação no campus de Rio das Ostras e como foi minha atuação nesse processo, esse é um projeto necessário, mas ficará para momentos futuros. O que vai ser analisado neste momento, ou melhor, a ‘lupa’ que será utilizada ao olhar para a ocupação será no intuito de observar o plano clínico daquela experiência.

Para isso, algumas situações analisadoras serviram de exemplo para observar essa potência clínica da ocupação em Rio das Ostras. É importante resaltar que o relato dessas experiências não tem por objetivo traçar um sentido clínico da ocupação de uma maneira geral, com o artigo definido ‘A’ ocupação. Esse relato será tradado no âmbito da micro-política, serão postos em análise os sentidos clínicos de ‘uma’ ocupação, a ocupação singular da qual vivenciei, a ocupação do Instituto de Humanidades e Saúde no campus de Rio das Ostras.

8 Não se tem por objetivo fazer uma teoria da vergonha, mas apenas observar a fala da moradora. 9 No período da ocupação fizemos várias atividades de jogos, brincadeiras e esportes na quadra.

No documento A construção de uma clínica para si (páginas 36-40)

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