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2 A EDUCAÇÃO ATIVA NO SÉCULO XX E A ESCOLA

2.4 PSICOLOGIA GENÉTICA E EDUCAÇÃO EM PIAGET

2.4.1 Estágios do Desenvolvimento Intelectual

Se a ação, em Dewey (1978, p. 61), é “reação, adaptação, ajustamento. Atividade pura, isolada, é coisa que não existe. Toda atividade se efetiva em um meio, em uma situação, nos limites de suas condições”. Piaget (1976b, p.74) busca justamente compreender como essa ação possibilita o desenvolvimento mental do indivíduo, como essa ação transforma-se em operação mental, assim como a relação desse desenvolvimento com a educação. Esse processo exprime o que o autor busca com a sua psicologia genética: “estudando meus próprios filhos, compreendi melhor o papel da ação e, em especial, que as ações constituem o ponto de partida das futuras operações da inteligência”.

Nesse sentido, Piaget102 afirma que até o final da primeira infância, a operação é uma “ação interiorizada” e, portanto, requer um período “pré-operatório ou “pré-lógico”. Somente, a partir dos 7 ou 8 anos começam as operações propriamente ditas que se constituem em duas etapas sucessivas: a primeira etapa “concreta” dos 7 aos 11 anos, “mais próxima da ação”; e a segunda “formal” ou “lógica” após os 11 ou 12 anos, em que as operações “começam a ser transpostas do plano da manipulação concreta para o das idéias, através de qualquer linguagem (palavras ou símbolos matemáticos).

Essa ação parte inicialmente, segundo Piaget, de um interesse ou uma necessidade intelectual que se traduz em uma pergunta ou em um problema103.

Portanto, uma ação (movimento, pensamento ou sentimento) corresponde a uma necessidade que é “sempre a manifestação de um desequilíbrio”. Quando esta é satisfeita, o equilíbrio é restabelecido104 e a “ação se finda” (PIAGET, 1976b, p. 12).

Nesse sentido, a ação do indivíduo sobre o seu meio e a forma como esse meio responde a essa ação resulta no amadurecimento das estruturas cognitivas e, por conseguinte, no desenvolvimento mental.

Portanto, do ponto de vista epistemológico, para Piaget (1978c, 260-263; 1978d, p. 12), as estruturas lógicas são aprendidas e não devem ser interpretadas “como formas a priori, pois a aprendizagem e a experiência105 são necessárias à sua

elaboração”, em uma crítica ao caráter passivo que o empirismo atribui ao conhecimento. Entretanto, o autor diferencia a experiência física da experiência das estruturas lógicas que consiste “em exercer ou diferenciar estruturas lógicas ou pré- lógicas anteriormente adquiridas”, buscando, como já destacado, explicitar as “posições psicológicas” de sua epistemologia.

Do ponto de vista funcional, enfatiza Piaget (1976b, p. 12-15), há “funções invariáveis” a todas as idades (tais como as funções do interesse106, da explicação,

entre outras) e “estruturas variáveis”. O aparecimento das estruturas variáveis dá-se ao longo de quatro estágios ou períodos do desenvolvimento: Período sensório-

motor (até um ano e meio ou dois anos de idade), Período pré-operacional (de dois

até sete anos), Período das operações concretas (de sete a onze ou doze anos) e

Período das operações formais (adolescência).

Os estágios, para Piaget107, correspondem a uma “hierarquia das condutas” da infância à fase adulta, do nível mais elementar ao mais elevado, uma vez que, a cada estágio do desenvolvimento, ocorrem diferenças no nível da conduta, tendo em vista a necessidade de uma melhor “organização da atividade mental”, ou seja,

103 Em Dewey (1979, p. 169), assim como em Piaget, o ato de pensar e o aprendizado dependem da

“qualidade do problema” implicado na experiência que conduzirá à ação.

104

A necessidade só é satisfeita quando ocorre o equilíbrio entre o “fato novo, que desencadeou a necessidade e a nossa organização mental, tal como se apresentava anteriormente”

105 Dewey (1979, p. 171), como Piaget, afirma que o primeiro elemento do ato de pensar é a

experiência, e que a escola progressiva deve oferecer um “acervo de experiências” em que “os problemas surjam naturalmente, por si mesmos”.

106 Piaget diferencia as funções do interesse, assim como a de explicar, dos interesses e das

explicações particulares, uma vez que esses últimos dependem do nível mental ou do grau de desenvolvimento intelectual e, portanto, variam e assumem formas diferentes.

aparecem “estruturas originais” que nos próximos estágios passam a constituir “subestruturas” e algumas características “momentâneas e secundárias” que são modificadas pelo “desenvolvimento ulterior”.

Cada estágio, em si mesmo, segundo Piaget (1976b, p. 14; 11 p. 14; 11), constitui “uma forma particular de equilíbrio” que caminha no sentido de uma equilibração “sempre mais completa. O desenvolvimento é, portanto, “uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior”.

Ainda no sentido de uma “melhor organização da atividade mental”, Piaget108

afirma que, ao longo de todo desenvolvimento mental (cognitivo) e orgânico (biológico), as necessidades e interesses comuns a todas as idades tendem à incorporação e ao reajustamento. Incorporação no sentido da “assimilação” do meio ambiente (coisas e pessoas) e reajustamento no sentido de que nessa assimilação os objetos, a ação e o pensamento passam por um processo de “acomodação”. Ao equilíbrio dessas assimilações e acomodações dá-se o nome de “adaptação”, O desenvolvimento mental, em sua organização progressiva, aparece, como uma “adaptação sempre mais precisa à realidade”, reafirmando a tendência biológica de sua teoria.

No primeiro estágio do desenvolvimento, período sensório-motor, aponta Piaget109, a inteligência é totalmente prática e motora (manipulação dos objetos), e

os sentimentos encontram-se ligados à própria atividade. Com o desenvolvimento da inteligência, o “progresso das condutas inteligentes”, os sentimentos se diferenciam em função da objetivação das coisas e das pessoas (os objetos são concebidos como exteriores e independentes do eu), originando os “sentimentos interindividuais”.

Nesse processo de desenvolvimento, o surgimento da linguagem na criança, no segundo estágio, período pré-operacional, e sua influência sobre o pensamento e a conduta, tanto no aspecto afetivo, quanto no intelectual, recebe especial atenção de Piaget, uma vez que torna a criança “capaz de reconstituir suas ações passadas sob forma de narrativas, e de antecipar suas ações futuras pela representação verbal”110.

108 PIAGET, 1976b, p. 15-16. 109 Ibid., p. 18; 22-23.

O aparecimento da linguagem, segundo Piaget (1976b, p. 23-25), conduz a “três conseqüências essenciais”: uma “socialização da ação” (possível troca entre os indivíduos); “uma interiorização da palavra” (“aparição do pensamento propriamente dito, que tem como base a linguagem interior e o sistema de signos”) e “uma interiorização da ação” (que, de puramente perceptiva e motora até então, pode se reconstituir no plano intuitivo das imagens e das “experiências mentais”).

Piaget111 mantém nesses três aspectos a base para justificar a sua teoria sobre o egocentrismo infantil. O desenvolvimento da linguagem influencia o desenvolvimento intelectual e, conseqüentemente, o social 112. Nesse caminho, a fala interior torna-se social, o que irá possibilitar a sua “verdadeira” socialização e a criança, além do universo físico anterior, entra em contato com “dois mundos novos e intimamente solidários: o mundo social e o das representações interiores”113.

Em relação à socialização da ação, Piaget114 afirma que as relações interindividuais de troca e comunicação entre os indivíduos se limitavam, na segunda metade do primeiro ano, à “imitação de gestos”. Entretanto, nesse estágio, a imitação de sons associados a determinadas ações “prolonga-se como aquisição da linguagem” e, com a palavra, a “vida interior” é posta em comum e se constrói “na medida em que pode ser comunicada”. Portanto, apenas a partir do segundo ano de vida a criança é capaz de se comunicar realmente com o seu meio, ou seja, a fala interiorizada torna-se fala social.

Entretanto, as primeiras condutas sociais ainda permanecem a “meio caminho da verdadeira socialização”, sinaliza Piaget115, uma vez que o indivíduo “permanece

centralizado em si mesmo”. Este egocentrismo, frente ao grupo social, estabelece “a primazia do próprio ponto de vista”, e nem a “coação espiritual” exercida pelo adulto sobre a criança, e às vezes a “material”, exclui este egocentrismo116.

111 PIAGET, 1976b, p. 24. 112

Essa análise sobre o egocentrismo é considerada, por Vigotski, “a pedra angular de todo o edifício teórico de Piaget” e fortemente criticada e utilizada pelo próprio Vigotski na construção da psicologia marxista, como será observado no Capítulo 3.

113 Torna-

se mister apontar que Piaget, além de assinalar que o contato com esses “dois mundos” só ocorre após o aparecimento da linguagem, situa esses mundos como solidários e não como relacionais. Esse aspecto será mais bem desenvolvido nos próximos capítulos.

114 PIAGET, 1976b, p. 24-25. 115 Ibid., p. 27.

116 Em Dewey (1978; 1979), essa relação é indicativa das idéias e dos valores do meio ambiente que

estão representados na experiência do adulto. Dewey preocupa-se em analisar a importância da ação do adulto sobre a criança para o futuro da sociedade democrática, uma vez que essa ação deve estar voltada para a organização desse meio.

Em relação à gênese do pensamento, Piaget (1976b, p. 27-29) afirma que essas modificações da ação, sob a influência da linguagem e da socialização, conduzem a uma transformação da inteligência de prática em “pensamento propriamente dito” e à interiorização da palavra. Entretanto, como o ponto de partida desse pensamento é o pensamento egocêntrico ocorre “uma assimilação deformada da realidade ao eu”, e a linguagem intervém nesse pensamento enquanto “signo individual”. Entre essa e a segunda forma encontra-se o pensamento espontâneo da criança, ainda egocêntrico, que se apresenta nas falas e perguntas sobre “onde”, “o que é” e os “porquês”.

Na segunda forma do pensamento, que conduz, segundo Piaget117, à terceira conseqüência do aparecimento da linguagem ou à interiorização da ação (pensamento mais adaptado ao real ou pensamento intuitivo), os “esquemas senso- motores” (perceptivos ou de ação) são “interiorizados por representações” (ou “imitações da realidade”), “a meio caminho entre a ‘experiência efetiva’ e a ‘experiência mental’”. Entretanto, essas representações somente se tornarão operatórias e se transformarão em “sistema lógico”, no período seguinte, no estágio das operações concretas.

Nesse sentido, se no primeiro estágio a ação da criança sobre o objeto é uma ação externa, e no segundo estágio é uma ação internalizada ou pensamento, no terceiro estágio, período operacional, “as ações interiorizadas ou conceptualizadas com as quais o sujeito tinha até aqui de se contentar adquirem o lugar de operações, enquanto transformações reversíveis que modificam certas variáveis e conservam as outras a título de invariantes” (PIAGET, 1978a, p. 18).

Nesse sentido, o começo da escolaridade no estágio das operações concretas marca uma modificação decisiva no desenvolvimento mental no nível da inteligência, da vida afetiva, das relações sociais e da atividade individual. Ao analisar os progressos da conduta e da socialização, Piaget (1976b, p. 43) destaca que, nesse período, a criança já é capaz de “concentração individual, quando o sujeito trabalha sozinho e colaboração efetiva quando há vida comum”. No entanto, por serem aspectos complementares e resultarem da mesma causa, torna-se difícil dizer se “é porque a criança se tornou capaz de uma certa reflexão que consegue

coordenar suas ações com as dos outros, ou se é o progresso da socialização que faz com o pensamento seja reforçado por interiorização”.

Portanto, pode-se perceber que em Piaget (1976b, p. 28; 43-44) o pensamento e a conduta humana derivam prioritariamente do desenvolvimento interno, uma vez que, em relação à formação do pensamento (no segundo estágio), a criança mergulha no sistema de pensamento coletivo apenas quando “maneja a palavra” e não a partir do contexto sócio-lingüístico onde o pensamento surge e lhe dá sentido. Com o progresso dessa conduta (no terceiro estágio), apesar de apontada pelo autor como “social e individual”, o acento recai sobre o declínio das “formas egocêntricas de causalidade e de representação do mundo”, que demonstram a capacidade do indivíduo de adaptação às novas exigências do meio.

Piaget118 conclui que é somente no quarto período, estágio da adolescência, que o indivíduo é capaz “de idéias gerais e de construções abstratas”, com a passagem para o pensamento “formal”. Enquanto o pensamento concreto, próprio da criança em idade escolar, é “a representação de uma ação possível”, o pensamento formal na adolescência é “a representação de uma representação de ações possíveis”.

A grande novidade da adolescência em relação à infância é que o pensamento formal “torna possível a construção dos sistemas”, enquanto um “novo poder”, e a “livre atividade da reflexão espontânea”, e aqui, mais uma vez, Piaget119

apóia-se no egocentrismo (“onipotência da reflexão”) para explicar as transformações no pensamento do adolescente120.

A partir do exposto, pode-se afirmar que, Piaget atribui o desenvolvimento intelectual do indivíduo às capacidades que estão amadurecidas ou em vias de amadurecer. Enfim, o desenvolvimento é compreendido a partir da evolução do indivíduo cujas ações demonstram capacidade de adaptação às novas exigências do meio, ou seja, em Piaget, a aprendizagem caminha a reboque do desenvolvimento mediatizada pela experiência.

118 PIAGET, 1976b, p. 62-64. 119

Ibid., p. 64.

120 Vigotski (2000a) trabalha com a sistematicidade dos conceitos, mas esse não é considerado um

resultado da superação do egocentrismo infantil, como em Piaget. Vigotski parte justamente da falta de sistematicidade dos conceitos na infância para, através da generalidade, chegar a uma sistematização que seria a simplificação do caos inicial, em um movimento dialético.

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