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3 COMPREENDENDO AS INTERAÇÕES SITUADAS NO ESPAÇO

3.10 Estímulos, afetos e construção da memória

Já na transição entre os séculos XIX e XX, Simmel (2000) conseguia apontar efeitos percebidos em alguns tipos de interações de sociabilidade provocados por práticas contemporâneas de desenvolvimento que começavam a se fazer presentes na dimensão espacial de centros urbanos. Muito relevantes para a compreensão do espaço relacional, nos artigos “sociologia dos sentidos”, “Cultura urbana e espacial”, “Sociologia dos limites” e “Sociologia e sociabilidade”, publicados em Sociologia dos Sentidos, Simmel (2000) expressa reflexões sobre evidências da conexão entre a experiência sensorial e práticas de sociabilidade no contexto espaço-temporal, e convida a compreendê-las mais profundamente para melhor compreender as dinâmicas nas quais a cultura se forma na sociedade.

Muito embora seus trabalhos aprofundem sobretudo a experiência visual e auditiva, o autor não exclui referência à experiência corporal tátil, de odor, distância e movimento (SIMMEL, 2000). Esta lacuna foi explorada nesta tese buscando o aporte dos trabalhos de Edward Hall (1990), Howes (2008), Arbib (2015), e Sarah Pink (2010) na Antropologia; e na Sociologia com o sociólogo Richard Sennett (2008, 2012, 2015), que orientaram, inclusive, a escolha de práticas de observação do fenômeno relacional utilizadas nesta tese.

Apoiando-se nas argumentações científicas sobre a teoria dos afetos de Tompkins e Nathansan (TOMPKINS apud AWONIYI, 2014, p. 202-203), de Brunswik (BRUNSWIK apud NORBERG-SCHULZ, 1979, p. 20-24) e Gifford (2002, 2009), sobre símbolos, expectativas e comportamento de Norberg-Schulz (1979, p. 40-41), e dos antropólogos Ingold (2003) e Howes (2010, 2013) pode-se afirmar que, os estímulos, por si só pouco representam para a experiência das RIRs, mas são importantes devido aos afetos que engatilham, às mensagens e aos contextos que constroem. Todos os objetos físicos, sociais e culturais do espaço podem enviar estímulos. A significância destes para o espaço relacional decorre da memória das experiências e dos afetos que estes engatam, e depende das respostas comportamentais associadas a estes afetos.

Estímulos, memórias, afetos e respostas comportamentais compõem um processo comunicativo não verbal fortemente associado à experiência de Confiança.

A riqueza de estímulos capturados no vídeo da av. Paulista50 num dia de domingo e do Parque Ibirapuera num dia de sábado, em junho de 201751 ilustra o papel dos estímulos produzidos pelos componentes físicos, sociais e culturais do espaço, que combinados constituem-se parte da experiência espacial. Os trechos capturados nos vídeos evidenciam-se muito favoráveis ao engajamento dos usuários em interações de reciprocidade positiva.

Esta secção não propõe tornar os sentidos ou os estímulos o objeto deste estudo, nem se pretende sugerir que as características dos elementos arquitetônicos produtores de estímulos favoráveis às RIRs se restringem às colhidas no universo observado. Entretanto, deixa claro que uma compreensão da experiência sensorial de lugar propiciada pela dinâmica teia de estímulos em relações é importante e necessária para estudos de espaços públicos favoráveis às RIRs e demanda uma chave de leitura cultural sincrônica e diacrônica, cuja construção, porém, extrapola o recorte desta tese.

Considerando que os espaços e experiências relacionais são extremamente diversos e únicos, não se procurou construir referências comparativas, muito menos prescritivas ou valorativas, mas identificar se existe associação entre estímulos, afetos e a experiência das RIRs relevantes para a compreensão do espaço relacional. Pode-se afirmar que as evidências colhidas nos vídeos fornecem ao observador elementos para a argumentação sobre a necessidade de incorporar a experiência sensorial, numa abordagem do espaço centrada na pessoa (PINK, 2010a), em sua experiência de vir-a-ser-por-si e vir-a-ser-com o outro. mediante interações de reciprocidade positiva.

Com esta abordagem, as compreensões sobre as características formais e estéticas do espaço e seus elementos arquitetônicos construídas por Camilo Sitte em A Arte de construir cidades, Kevin Lynch em seu trabalho Imagem da cidade, por Gordon Cullen, Appleyard e por Jan Gehl sobre a cidade ao nível dos olhos, entre outros autores, podem ser revisitadas com um caráter ampliado, mais referenciado. Quando consideradas à luz dos processos estimulantes, afetivos e comportamentais associados à forma e às relações estéticas e topológicas entre cheios e vazios dos volumes, pode-se identificar o que torna as características que estes autores destacam como favoráveis às experiências positivas na escala do pedestre, e adequá-las aos condicionantes, limitações, potencialidades e demandas associadas à construção da experiência

50 https://youtu.be/TI62NipHGwg

do espaço relacional e às dinâmicas urbanas contemporâneas específicas em cada contexto socioeconômico, cultural e temporal.

Destacando o espaço associado às atividades que nele possam ocorrer, Gehl (2014) resumiu algumas estratégias projetuais para garantir que os espaços públicos possam atrair pedestres e oferecer proteção, conforto e prazer. Referenciando o aporte teórico de Hall em vários trechos, o autor evidencia a importância de manter as dimensões projetuais em diálogo com a dimensão humana (p. 1-19), numa escala que favoreça a mobilidade e distâncias favoráveis à comunicação não-verbal entre espaço e pessoas, e entre pessoas através da experiência visual, auditiva e olfativa humana (p. 31-182). Numa lista de 12 critérios de qualidade, com respeito à paisagem (Ibidem, p. 239) – ver Figura 33, o autor sublinha ainda a importância de algumas estratégias projetuais de espaços favoráveis contatos visuais e auditivos de pedestres com o espaço mediante distâncias curtas, baixa velocidade, ausência de barreiras na altura visual e sua “permanência no mesmo nível e orientação em direção ao que deve ser visto e experienciado” (ibidem, p.236), e que satisfaçam a necessidade de sinalização e largura adequada e ausência de obstáculos nas trajetórias para pedestres (ibidem, p. 243-245).

Figura 33 - 12 Critérios de qualidade com respeito à paisagem do pedestre, segundo Jan Gehl.

Fonte: Gehl, Gemzoe, Kirknaes, Sondergaard, "New City Life" Copenhagen: The Danish Architectural Press, 2006. Further developed: Gehl Architects - Urban Quality Consultants, 2009.

Estas recomendações projetuais certamente favorecem muitas das qualidades experienciais do espaço abordadas nos conceitos explorados neste capítulo, possibilitando inferir que contribuam para favorecer as RIRs em espaços públicos se devidamente articuladas no ordenamento, arranjo e elementos dos espaços, das superfícies e volumes, das relações entre cheios e vazios, entre objetos do espaço nas relações entre espaços e seus subespaços. Através destas, beneficiam a experiência topológica e hodológica do espaço favoráveis às RIRs discutidas em 3.5, 3.8 e nesta seção.

Assim como os objetos da materialidade e imaterialidade espacial, densidade e lotação dos espaços são consideradas na Psicologia Ambiental importantes estimulantes que, de forma direta e indireta, despertam afetos, significados e memórias (GIFFORD, 2002), seus significados dependem de onde se posicionam no ranque de normalidade associadas ao contexto ou às atividades desenvolvidas no espaço.

Enquanto misturar-se a multidão de estranhos na rua, junto com amigos pode ser uma forma de aliviar tensão durante o Carnaval, atravessar a mesma multidão pode resultar em stress imediato num dia de semana para levar o filho à creche. A mensagem comunicada pelo espaço varia com o fluir dos estímulos da experiência, com o aglomerar-se de usuários que se aproximam de quem os observa e pondera em qual experiência relacional engajar-se, varia com o construir-se da situação contextual e do comportamento dos que compartilham o espaço. Talvez, quanto mais impactante for o processo de construção da experiência, mais marcante e duradoura será a memória do lugar.

Talvez então, a contextualização e estímulos apropriados possam melhorar ou aliviar situações de conflitos e desfavoráveis às interações de reciprocidade?

A dimensão estimulante das formas e objetos físicos e sociais e culturais do espaço – especialmente na escala sensorialmente perceptível - engatilha afetos e constrói contextos, gerando experiências de valor e significado. De modo geral, em espaços públicos o próprio usuário e este em interações é uma fonte de estímulos; isto se aplica sobretudo em espaços relacionais. Talvez, em parques, como o Ibirapuera, a dinamicidade é dada sobretudo por estas interações e estímulos associados aos dos elementos naturais, originando comportamentos e atividades vinculados através da estrutura e ordenamento do espaço: em áreas de piquenique, de caminhadas, pistas de skate, etc. Em espaços públicos, ao relacionar-se com a natureza de seus elementos, os usuários constroem estímulos e contextos experienciais uns para os outros. No Ibirapuera e na Av. Paulista, esses contextos positivos, incentivando a sociabilidade, foram experienciados em dois períodos - cada um de 2 horas- de observações caminhantes no parque Ibirapuera: a pesquisadora, respondeu à inciativa de um grupo de jovens que se sentou no mesmo banco, compartilhando a alegria do momento, com troca de olhares e sorrisos; e de um casal paulistano, com quem se iniciou uma conversação ao se sentarem para descansar do passeio e apreciar o movimento no parque. Porém, essa construção coletiva é possível também mediante manifestações sonoras, desde as mais despercebidas, de risos, diálogos e músicas passageiras, dentre outras. Ver também vídeos disponibilizados em: Ibirapuera https://youtu.be/jbTU_oUPhr4 e Av. Paulista https://youtu.be/ti62niphgwg.).

Em sítios turísticos e históricos italianos, como Veneza e Firenze, talvez possa ser dito que estímulos e afetos positivos desencadeados por características da arquitetura: perspectivas; riqueza de detalhes, significados e valor estético dos elementos arquitetônicos; além da aglomeração e densidade de ocupação propiciada no ordenamento do espaço em si, sejam causa significativa da atração de usuários. Talvez, nestes espaços potencializa-se a capacidade relacional (Figuras 34-39).

Figura 34 - Vila dei Medici. Florença.

Fonte: Vera Chamié de Souza, 2014.

Figura 35 - Riqueza de detalhes arquitetônicos. Veneza.

Figura 36 - Piazza del Duomo. Florença. 2014

Fonte: Vera Chamié de Souza, 2014.

Figura 37 - Piazza à entrada da Piazza San Marco. Veneza. 2014

Figura 38 - Detalhes arquitetônicos de edificações na Pizza San Marco. Veneza. 2014

Fonte: Vera Chamié de Souza, 2014.

Figura 39 - Detalhes arquitetônicos de edificações na Pizza San Marco. Veneza. 2014