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3 COMPREENDENDO AS INTERAÇÕES SITUADAS NO ESPAÇO

3.2 Felicidade, Encontros e Relações interpessoais de reciprocidade

Ações de reciprocidade positiva são consideradas exercícios de alteridade constitutivos e indispensáveis à pessoa, uma das suas necessidades básicas, essenciais para o bem-estar e desenvolvimento pessoal e social (BRUNI, 2012, p. 69-70). Este tipo de experiência social tem sido identificado com nuances diversas na literatura contemporânea por Bauman (2009), Simmel (2000), Bruni (2008), Gui (1987), Seligman (2004), Stanca (2008), Nussbaum e Ulhnaer (apud BRUNI, 2012), Putnam (2003) e pelo prêmio Nobel 1998 de Economia Amartya Sen (BRUNI, 2012), dentre outros, como componente necessária ao desenvolvimento humano. Em Sistemi di dono- reciprocità e modelli di felicità, a socióloga Licia Paglione analisa uma amostra das abordagens mais relevantes destas interações de tipo cooperativo no âmbito econômico e social, enumerando-as e comparando-as segundo suas caracterizações, componentes e consequências nas dinâmicas econômicas e sociais contemporâneas (PAGLIONE, 2009, p.16-131); a autora as correlaciona também às discussões atuais sobre felicidade pública.

Não desconsiderando os componentes resultantes da satisfação das necessidades humanas e sociais tangíveis e intangíveis (SELIGMAN apud BRUNI, 2012), um dos pontos fundamentais da corrente tradicional “Authentic Happiness”, incluindo a Teoria da Felicidade, entende os relacionamentos interpessoais de reciprocidade como um componente indispensável para a felicidade, esta última entendida como florescimento humano. Desta teoria abstraiu-se os conceitos “Bem Relacional”, “Relacionamentos Interpessoais de Reciprocidade” e “Confiança” que fundamentaram este trabalho.

A maioria das abordagens mencionadas acima refere-se à significação de felicidade como florescimento humano resultante das escolhas humanas, e relacionada às interações interpessoais de vínculo, intrínsecas ao ser-humano:

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma: 'É certamente absurdo fazer um homem solitário feliz: ninguém, de fato, escolheria possuir todos os bens à custa de desfrutá-los sozinho: o homem, na verdade, é um ser social e portado por natureza a viver junto com os outros. Essa característica, portanto, também pertence ao homem feliz. [...] O homem feliz precisa de amigos. (ARISTOTELES 1979, p. 398 apud PAGLIONE, 2009, p. 44, tradução nossa)17

17 Nell’Etica Nicomachea Aristotele afferma: ‘E’ certo assurdo fare dell’uomo felice un solitario: nessuno, infatti, sceglierebbe di possedere tutti i beni a costo di goderne da solo: l’uomo, infatti, è un essere sociale e portato per

Esta abordagem relacional do desenvolvimento e da felicidade que até hoje subsiste às abordagens utilitaristas econômicas predominantemente presentes nas dinâmicas contemporâneas, ganha maior espaço, segundo Bruni (2012), na filosofia e no campo científico nos últimos anos após um longo percurso, de Aristóteles a Amartya Sen -um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em seu significado social, felicidade refere-se ao florescimento humano decorrente dos relacionamentos interpessoais mantidos com fim em si mesmos, dentre outros fatores. Segundo pesquisas sobre novos indicadores do IDH, os relacionamentos interferem significativamente no índice de felicidade das pessoas, nos mais variados cenários demográficos, socioeconômicos e culturais (BLESSI et al, 2014; BRUNI, 2012; STANCA 2008).

Este estudo se insere nesse contexto e o expande, ao revisitar a compreensão de espaço da Arquitetura construindo um olhar teórico que conecta estas relações aos espaços públicos no seu uso cotidiano e em prol do desenvolvimento social urbano, ao pressupor que este seja um papel da cidade através,, inclusive, de sua Arquitetura e espacialidade.

O comportamento cooperativo humano de reciprocidade18 descreve-se na Economia através da palavra latina retro-procus que designa movimento em dois sentidos - dar e receber - que se faz necessário para que haja qualquer troca; a reciprocidade designa uma relação mútua onde dois ou mais sujeitos dão e recebem algo simultânea ou sequencialmente (BRUNI e STANCA, 2008). O termo implica a existência de uma intenção primeira de dar e uma de corresponder entre os envolvidos na interação.

Na compreensão de Bruni (2008, 2010, 2011, 2012) adotada neste estudo, as RIRs caracterizam-se pelo oferta recíproca, gratuita e não instrumental de algo de si próprio, e contribuem para a eudaimonia aristotélica (BRUNI, 2012; PAGLIONE, 2009, p. 42); esta “[...] consiste em uma atividade, mas é claro que esta atividade é um poder vir a ser e não algo objeto de uma possessão estável [...]” (ARISTOTELES 1979, p. 399 apud PAGLIONE, 2009, p. 44, tradução nossa); é uma experiência dinâmica em continua construção. Nesta abordagem, Felicidade consiste então em atividade e experiência humana - e não uma coisa - que promove o desenvolvimento humano.

natura a vivere insieme con gli altri. Questa caratteristica, quindi, appartiene anche all’uomo felice. […] L’uomo felice ha bisogno di amici’.

18 A teoria aborda reciprocidade positiva e negativa. Esta investigação explora apenas os aspectos da reciprocidade positiva, cujo comportamento se caracteriza, de forma geral, pela atitude de uma pessoa que responde com gentileza a uma gentileza recebida.

A este ponto, pode-se caracterizar as relações interpessoais de reciprocidade positiva do seguinte modo:

a. dependem da iniciativa de uma pessoa e de uma correspondente resposta do outro, ou seja, que haja reciprocidade de intensões relacionais;

b. requer um grau mínimo de cooperação, na intenção de desenvolver a interação ou ao menos a atividade que a envolve;

c. “é um comportamento social padrão que deveria caracterizar a interação social de adultos normais”19 (BRUNI, 2008, p.20).

d. Na superação do “próprio eu”, na experiência da alteridade ao relacionar-se e encontrar-se no outro, constrói-se a suprassunção de cada pessoa (MORAES, 2012, p. 59-66), seu desenvolvimento e identidade; seu reconhecimento de si mesmo e do outro.

e. Desta relação também emerge algo de valor simultaneamente acessível e compartilhado pelos envolvidos na interação, um bem imaterial, que Bruni conceitua como bem relacional. f. Os benefícios ou prazer constituintes do bem relacional resultante das RIRs estão associados

conforme e decorrente da motivação e interação com o outro (BRUNI, 2012). Hirschman (HIRSCHMAN, 1996 apud BLESSI et al., 2014) evidencia outra característica do bem relacional: este propicia simultaneamente conforto e estímulo; constrói memórias pessoais e coletivas, caracterizando-se uma dinâmica positiva de construção do capital social.

A partir destas características do bem relacional e das relações de reciprocidade positiva na abordagem de Bruni, delineou-se sete características básicas das RIRs (ilustradas no Quadro

6); estas se mostram ser uma experiência autopoiética, relacional, sistêmica e multidimensional.

Este foi o perfil referencial utilizado na tese para identificar correlações com o espaço da Arquitetura.

19 O texto original compara reciprocidade com o comportamento oposto, “The opposite concept is that of unconditional behavior, the search for satisfaction without being under any obligation to give anything in return. Psychology sees this unconditional behavior… as the primitive object relation that characterizes children in their early attachments and that if left ungoverned may later lead to pathologic narcissism. Adults meanwhile substitute reciprocity to this desire for unconditional attachment. Therefore, from a psychological point of view, reciprocity is the standard of behavior that should characterize the social interaction of normal adults.” (BRUNI, GILLI e PELLIGRA, 2008, p. 20).

Quadro 6 - Características adotadas como referencial das RIRs.

Características Explicação

Identidade A identidade de cada um dos envolvidos na interação é um componente fundamental para que ocorra a interação entre duas ou mais pessoas. Na interação constrói-se a identidade individual e coletiva dos envolvidos, nas dimensões pessoal, social e cultural. Identidade resulta da experiência de vir- a-ser do eu-para-si, com-o-outro, e para-o-outro (BAKHTIN apud BRAIT 2010; MORAES, 2012). Nas RIRs conhecer, reconhecer e desenvolver a si próprio está estreitamente dependente do conhecer e reconhecer a

individualidade do outro, diversa da própria (BRUNI, 2012; MAGARI; CAVALIERI, 2008; SENNETT, 2012).

Reciprocidade A intenção e escolha de relacionar-se é uma experiência compartilhada e recíproca. Nas RIRs, se é sempre a incerto de como a interação se

desenvolverá, e do usufruto do bem relacional; reciprocamente aposta-se no risco da relacionar-se com o outro, (estranho a si próprio) e de abrir o próprio espaço pessoal para comunicar-se e depositar confiança no outro.

Simultaneidade As trocas dos dons de si ocorrem simultaneamente à geração dos riscos e do bem relacional, ao seu compartilhamento e usufruto.

Intencionalidade Motivação

O valor da interação é tanto maior quanto maior for a intencionalidade, a confiança e motivação (não instrumental) alocada por cada um dos

envolvidos na interação. Estes fatores repercutem na resposta do outro com quem se interage, no desenvolvimento e resultado da interação. A motivação não é contratual ou econômica, mas resulta do desejo de encontrar-se (MORAES, 2012, p. 60-61).

Emergência A interação emerge do encontro, da escolha de reconhecer e interagir com outro; emerge da opção por arriscar engajar-se em interação com o outro, num dado espaço compartilhado e é influenciada por seus contextos; imprevisibilidade, e, portanto, riscos20, esta é uma das suas características.

Bem: A relação equivale a um “bem”. Porque não é um produto, nem resulta em produto comercializado, não é um objeto. O Bem é fortemente vinculado à valores e práticas sócio culturais. (BRUNI, 2012).

Bem-comum: Não se caracterizam como bem privado nem público exatamente porque não resultam do trabalho fornecido, comercializado ou administrado por

entidades diversas das pessoas que dele usufruem. Não são produzidas ou distribuídas num espaço de tempo fora do encontro e da interação; a relação gera e disponibiliza o bem de valor aos envolvidos na interação de forma équa e simétrica.

Fonte: Vera Chamié de Souza, 2018.

20 O risco é um fator posto aos participantes de interações interpessoais (um tipo de affordance expresso pelo outro, adaptando o conceito de Lewin) sobre o intercâmbio de dons predominantemente imateriais e intrínsecos de valor. (BRUNI, 2012; PELLIGRA, 2011; SCHIMDBAUER, 2008; STANCA, 2009).