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CAPÍTULO 3 – PLANO DA ESTÓRIA DA NARRATIVA JORNALÍSTICA: ESTUDO

3.3 A estória do Portal Folha.com

3.3.1 O conto

Nesta pesquisa, ao estruturar o noticiário em uma sequência cronológica, ou em episódios que se sucedem, a analista realiza uma primeira interpretação, uma compreensão do texto jornalístico como um conto. Esse encadeamento próprio, produzido na versão interpretativa, parece-nos semelhante ao processo de compreensão vivenciado pelo leitor, que supomos também fazer um esforço cognitivo de juntar as peças do quebra-cabeça da cobertura midiática em um todo. A unificação produz coerência e a coerência gera sentido, permitindo a compreensão do mundo.

Após a leitura cuidadosa de uma por uma das notícias veiculadas pelo Portal Folha.com a respeito da Emenda 3 do PL Super Receita no período de fevereiro a março de 2007, pode-se tentar, com alguma ousadia, reconstruir a estória ali contada no formato de um conto, reunindo fragmentos, realçando a escolha dos pontos de vista, redesenhando os conflitos e reposicionando os personagens.

No conto, a intriga é linear. Utiliza-se de um único núcleo narrativo e volta-se para ações, não para caracteres, com forte concentração da ação, do tempo e do espaço. (PIRES, 1981)

Se exigida da analista uma tentativa de reconstruir, de maneira linear, a estória contada pelas notícias que o seu estudo enfoca, assim seria o conto (com aspas nas transcrições exatas):

Em 2005, já havia sido derrubada no Congresso uma Medida Provisória que elevava “a tributação sobre os prestadores de serviços para reduzir as vantagens desse tipo de contrato sobre o contrato trabalhista tradicional”.

Naquele mesmo ano, um lobby liderado por empresas de comunicação conseguiu aprovar um artigo [art. 129 da Lei no 11.196, de 2005] explicitando que profissionais liberais pudessem ser tributados como pessoas jurídicas mesmo que não fossem empregadores, mesmo que fossem pessoas jurídicas com uma pessoa só. Surpreendentemente, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não atendeu, naquele momento, à recomendação da Receita Federal. Não vetou o texto.

Um ano depois, em 2006, uma vitória da Receita: conseguiu impedir que empresas de uma pessoa só fossem incluídas entre as beneficiárias da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa. A fuga de assalariados rumo à condição de pessoas jurídicas, com muitos prejuízos para a arrecadação da Previdência, tinha sido evitada.

E cá estamos em 2007. No fio dessas intrigas, surge a Emenda 3. Ela aparece no Senado [de autoria do Senador Nei Suassuna, do PMDB-PB], como alteração no PL da Super Receita, Projeto de Lei no 6.272, de 2005, que tramitava há dois anos no Congresso, com o objetivo de unificar arrecadação e fiscalização de tributos da Receita Federal e da Previdência Social. E vem a confusão...

O conteúdo da Emenda é polêmico: retira poder dos auditores fiscais do trabalho. Impede os auditores de intervir quando considerarem que a contratação de pessoa jurídica é manobra para encobrir relações trabalhistas e driblar a viúva.

Deixemos que apenas a Justiça do Trabalho cuide desse tipo de problema, é o que dizem os defensores da Emenda. Do outro lado, protestos de entidades sindicais de trabalhadores.

E vem fácil a aprovação no Senado: 60 senadores. Ali, a Emenda 3 foi um artigo em favor das empresas, fruto de acordo entre governo e oposição. O feito do PFL e PSDB: fizeram 35 alterações no texto do PL.

Por causa das mudanças no texto, o PL volta pra Câmara, para votação em segundo turno. O governo arregaça as mangas: quer derrubar a maior parte das alterações.

Mas ali aparece um inimigo íntimo: o relator, Deputado Pedro Novais (PMDB). Embora integrante da base aliada do governo, decide acatar 16 das alterações feitas no Senado, inclusive a polêmica Emenda 3. Ao apresentar o relatório, dispara: “nos países avançados, a legislação trabalhista é quase sempre extremamente liberal”.

Em meio ao conflito, o Presidente da Câmara, Deputado Chinaglia (PT), promete colocar o projeto em votação com ou sem acordo entre os líderes, ainda que o Palácio do Planalto continue apostando em solução negociada. O deputado Beto Albuquerque (PT), líder do governo, afirma que se não houver impedimento da fiscalização, o governo aceita fazer acordo sobre o tema da Emenda 3.

Mas a oposição se une. O PFL avisa: dará atenção especial à Emenda 3, não aceita ceder nessa questão. Vai obstruir a votação do PL tão desejado pelo governo se tentarem retirar a Emenda. O dia 12 de fevereiro termina com uma dúvida: os líderes partidários reunidos conseguiram chegar a um acordo?

No dia 13, às 13h22, a revelação: "o governo retira Emenda polêmica para aprovar Super Receita". Aparece uma promessa: o governo vai editar medida provisória nos próximos trinta dias para regulamentar o assunto.

Líder do PSB na Câmara, que participou de reunião com Lula no Conselho Político, diz que é preciso que o governo discipline o que é fraude e o que é verdadeira relação entre empregador e empregado.

Porém, algumas horas mais tarde, uma surpresa: a Câmara aprova o PL, com a Emenda 3 incluída. Foram 304 a 146 votos, com apoio de algumas bancadas governistas. Os líderes do governo dizem que o Presidente Lula vetará a Emenda e editará medida provisória sobre "as relações trabalhistas das pessoas jurídicas".

O agitado 13 de fevereiro termina. O Ministro Guido Mantega comemora a aprovação do PL, mas reafirma o veto à Emenda 3, assim como Jorge Rachid e outras lideranças fariam nos dias seguintes. Na verdade, a base governista cedera no acordo, pra viabilizar a votação do PL como um todo, mas agora trabalhará pelo veto ao artigo fruto da Emenda 3.

No dia seguinte, começa o rebuliço. Veta? Força Sindical, CUT, CGT e CGTB divulgam nota defendendo o veto da Emenda 3, afirmando que evitaria precarização no mercado de trabalho. Anunciam uma suposta catástrofe: transferir a fiscalização das pessoas jurídicas para a Justiça do Trabalho sobrecarregará tribunais que julgam 2 milhões de ações por ano.

Por outro lado, o advogado tributarista Ives Gandra, entrevistado pela Folha.com, afirma que há um terrorismo pra forçar o governo a vetar a Emenda. Acrescenta: "O palpite fiscal não pode prevalecer sobre a decisão judicial". A Emenda 3 trará benefícios ao contribuinte (com mais espaço pra se defender nas relações contratuais), diminuirá a informalidade do trabalho. Além disso, é mera confirmação das previsões legais que já impedem que o fiscal substitua o juiz. Excesso de regulamentação, encargos e tributos impedem o crescimento do país.

Os dias passam e forma-se uma "coletânea de pareceres de pelo menos 50 especialistas", organizada por um grupo de entidades empresariais e de profissionais liberais, defendendo a Emenda 3. Nomes qualificados como ex-ministros do STF, TST, ex-PGR, além de confederações nacionais da indústria, de serviços e de saúde, associações dos setores de imprensa, publicidade, odontologia e transporte de carga colocam-se em lado oposto a setores do Executivo e ao sindicalismo. Trata-se de proteger contratos firmados livremente entre duas partes de uma ação arbitrária do Estado, alerta o advogado Luiz Carlos Robortella.

Quem defende a Emenda são os próprios auditores (que têm extrapolado suas atribuições legais, segundo ex-secretário da Receita, Everardo Maciel), o Ministro do Trabalho Luiz Marinho (que presidia a CUT, então pode estar preocupado com a contribuição sindical, que é paga pelos assalariados, mas não pelos prestadores de serviço), a Fazenda (por interesses arrecadatórios relativos aos tributos incidentes sobre folha de pagamento de pessoal), sindicatos e entidades ligadas ao Judiciário.

Mas o impasse tem data pro fim: até o dia 16 de março, Lula tem que sancionar total ou parcialmente o projeto [para cumprir o prazo do art. 66, § 3o, da Constituição da República].

306 deputados e 64 senadores entregaram abaixo-assinado a favor da Emenda, que "fortalece a relação entre administração tributária e contribuinte".

Apesar da atuação de todos os defensores da Emenda, o veto provavelmente vai chegar. E o governo pensa numa alternativa para regulamentar as empresas formadas por uma só pessoa e que prestam serviços, em geral, para um único contratante. Quem sabe uma Medida Provisória? Segundo o Ministro Mantega, deverá ser cobrado mais imposto nessas relações.

Mas a oposição não dá trégua, não aceita o veto. Faz obstrução no Senado, que atrapalha votações. Líder do PFL, José Agripino Maia anuncia: "o veto prejudica 3,2 milhões de pessoas". E o fogo é também amigo: a obstrução tem apoio de Renan Calheiros, Presidente do Senado, aliado do governo.

Chegou o dia 16 de março. O PL da Super Receita precisa ser sancionado até hoje pelo presidente.

Mantega se desdiz quanto ao aumento do imposto com Medida Provisória sobre contratos de pessoa jurídica. Justifica a possibilidade de veto da Emenda 3 pela má redação e o risco de contestação judicial da constitucionalidade do texto.

A dúvida persiste, mas é forte uma aposta: a Emenda 3, mesmo tendo sido aprovada por 306 deputados e 64 senadores, será vetada.

Às 18h31, sabemos que o governo ganhou tempo. Pretende enviar PL para o Congresso na semana seguinte (e PL não entra em vigor imediatamente, ao contrário da Medida Provisória).

Ao fim do dia, o fim da dúvida. São 20h27 e o veto já ocorreu. A decisão estará no Diário Oficial da União de segunda-feira.

É fácil perceber que a construção desse conto não ocorre ao acaso. Ao tentar reunir os fragmentos da estória contada pela Folha.com, procuramos realçar as intencionalidades, as sugestões de sentidos nos momentos dramáticos, o destaque dado a determinados personagens em detrimento de outros. Procuramos identificar, portanto, as estratégias discursivas implícitas nas performances do narrador.

Para que fiquem explícitos esses elementos, seguem abaixo os resultados da análise pragmática de narrativa jornalística realizada.