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Problema, hipótese e trajetória de investigação: os planos de análise e os Capítulos

CAPÍTULO 1 CAMINHOS DA PESQUISA: A CATEGORIA JURÍDICA "TRABALHO" E

1.4 Problema, hipótese e trajetória de investigação: os planos de análise e os Capítulos

Na aplicação da metodologia da análise pragmática da narrativa jornalística (MOTTA, 2007), a compreensão das estórias jornalísticas pode ser feita em três planos: o plano do discurso (da expressão), o plano da estória e o plano da metanarrativa.

Explica esses planos, de maneira bastante sintética, Célia Ladeira:

"No plano da expressão, que é o plano da superfície do texto, em que se constrói o enunciado narrativo, busca-se analisar as estruturas textuais e os processos argumentativos. É também o plano do discurso. Já no plano da história ou conteúdo [estória], a análise busca identificar os significados em torno de uma realidade, produzidos por meio de ações temporais e causais desempenhadas por personagens sociais. E, por último, no plano da metanarrativa, a análise se volta para a compreensão profunda dos significados culturais envolvendo o fato em si". (LADEIRA MOTA, 2005)

Nesta pesquisa, verifica-se como os três planos se manifestam no discurso jornalístico, um por capítulo, tendo como norte um problema de pesquisa específico sintetizado na seguinte pergunta: o trabalho é contado como direito fundamental na narrativa jornalística?

A partir da premissa de que o trabalho é um direito fundamental no contexto do Estado Democrático de Direito, desenvolvida no tópico 1.2 deste Capítulo, a pesquisa procura investigar se essa perspectiva jurídica sobre a categoria "trabalho" aparece nas estórias dos jornais.

A hipótese da pesquisa, tentativa de resposta à pergunta-problema, pode ser assim apresentada: há um ocultamento do trabalho como direito fundamental nas narrativas

jornalísticas brasileiras, produzido por estórias de uma cobertura adversária ao Estado, que enfocam o trabalho como custo da economia e desenham no imaginário coletivo a "fábula45 das trapalhadas do Estado, dono de um 'dinossauro' que atende pelo nome de Direito do Trabalho".

Mino Carta lembra a lição de Raymundo Faoro: “Não exagere em ironias, haverá quem o leve a sério”. (CARTA, 2012) Diante da lição, faço desde já um esclarecimento: não considero o Direito do Trabalho um dinossauro.

45 Para a teoria literária, a fábula é uma "estória vivida por animais que serve para exemplar uma lição de moral.

Entre os gregos e o latinos era uma modalidade lírica. Foi no romantismo que passou a ser escrita em prosa". (PIRES, 1981, p. 116)

Enquanto vigente o sistema capitalista, a necessidade da regulação do trabalho será sempre muito grande, conquista civilizatória indispensável para o respeito à dignidade da pessoa que trabalha. (IAMAMOTO, 2001)

Fala-se em "dinossauro", na hipótese da pesquisa, pois há uma suposição de que a regulamentação do trabalho é considerada na narrativa midiática uma prática ultrapassada, que "fossiliza" relações. Segundo essa concepção dominante nos discursos jornalísticos brasileiros, o Direito do Trabalho deve ser facilmente moldável pelas exigências do capitalismo flexível, conforme as efemeridades da contemporaneidade e seu ritmo acelerado de obsolescências46.

Além disso, a figura do dinossauro é interessante pela poderosa função dos símbolos no imaginário social, conforme as lições de Gilbert Durand (DURAND, 1994). Em estudos sociais, esse tipo de recurso metafórico tem um papel provocativo, como no caso do famoso ornitorrinco usado por Francisco de Oliveira para descrever as combinações esdrúxulas que caracterizam a sociedade e a economia do Brasil. (OLIVEIRA, 2003)

Para testar a hipótese da pesquisa, é empreendida uma pesquisa bibliográfica interdisciplinar, envolvendo, além do Direito, a Teoria da Comunicação, a Teoria Literária e, em menor medida, a Linguística e a Sociologia. Ademais, é realizado um estudo empírico, a partir de fontes primárias (textos jornalísticos), para verificar com concretude o hipotético ocultamento do trabalho como direito fundamental na construção de uma estória relacionada ao Direito do Trabalho: a estória da "Emenda 3 do PL Super Receita", alteração legislativa que limita a fiscalização47 das situações fraudulentas de contratação de trabalhador como pessoa jurídica.

A estória refere-se à cobertura jornalística sobre a Emenda no 3 ao Projeto de Lei no 6.272, de 200548, apelidado pelos jornais de PL Super Receita, que deu origem à Lei no 11.457, de 16 de março de 2007. O corpus escolhido foram todas as notícias publicadas no Portal Folha.com (http://www.folha.uol.com.br/) no período compreendido entre 09/02/2007, data da primeira notícia sobre o assunto no ano de 2007, quando da aprovação da Emenda 3 no Senado, e 16/03/2007, data do veto presidencial à Emenda 3.

46 Sobre o "ritmo louco" de obsolescências na contemporaneidade, consultar: (HARVEY, 1989)

47 O objetivo da Emenda 3, conforme discutido em tópicos seguintes desta pesquisa, era retirar dos auditores fiscais

do trabalho o poder de autuar imediatamente o empregador quando considerasse irregular uma contratação de prestador de serviço como pessoa jurídica.

A localização interdisciplinar da pesquisa torna o desafio bastante complexo. As reflexões teóricas e a análise empírica tentarão se equilibrar entre a necessidade de didatismo quanto aos conceitos básicos de cada área envolvida e a exigência de verticalização da abordagem decorrente dos rigores científicos.

Para que fique clara a trajetória de pesquisa, é importante apresentar um resumo do objeto de cada capítulo, revelando a abordagem por meio da qual são desenvolvidas as reflexões sobre cada plano da análise da narrativa jornalística: primeiro, o plano do discurso (abordagem teórica) no Capítulo 2; depois, o plano da estória (abordagem teórica e estudo empírico próprio) no Capítulo 3; por fim, o plano da metanarrativa (abordagem teórica com referências ao estudo empírico próprio e aos estudos empíricos de outros pesquisadores) no Capítulo 4.

O Capítulo 2 trata de maneira panorâmica o plano do discurso das narrativas jornalísticas sobre o Direito, ainda sem abordar especificamente o Direito do Trabalho, objeto dos capítulos seguintes. Ao discutir o caráter político das discussões públicas midiáticas sobre o Direito, enfoca os argumentos relacionados à linguagem como obstáculo e problematiza as relações entre mediar, reproduzir e produzir discursos.

Ao tratar de jogos estratégicos da linguagem, aborda a tendência dos bacharéis do Direito ao hermetismo pela terminologia jurídica como uma língua que se pretende diferente dos sistemas linguísticos naturais, aponta o empoderamento das assessorias de imprensa de tribunais como tradutores autorizados e critica o caráter muitas vezes antidemocrático do discurso tecnicista de incomunicabilidade do Direito por uma mídia supostamente vulgar e superficial.

Ao final, relacionando linguagem e poder, lança reflexões sobre a condição da mídia

de ator político. Aponta os limites da cobertura do Direito no mercado de discursos públicos por

um jornalismo que se pretenda "cívico", eis que os discursos de suas narrativas são resultados

de permanentes lutas simbólicas e ideológicas sobre a construção social da realidade. Quem diz o que é o Direito é algo em permanente disputa.

O Capítulo 3 trata do plano da estória da narrativa jornalística. Percebida a Narratologia como instrumento de estudos culturais e adotada a análise pragmática da narrativa jornalística como método, investiga se a abordagem do trabalho (como direito fundamental?) no estudo empírico de uma narrativa específica: a narrativa do Portal Folha.com sobre a aprovação no Congresso Nacional da Emenda 3 do PL Super Receita e o seu veto presidencial, no ano de 2007.

Nesse Capítulo, são exploradas as convergências nas relações entre jornalismo e literatura, apresentados alguns conceitos da teoria literária centrais para a metodologia da análise pragmática da narrativa, dado seu papel na construção da intriga: os conflitos e os personagens. Após, é empreendida a análise de cada um dos episódios da estória da Emenda 3 do PL Super Receita, cujos contornos são delimitados pelos pontos de virada.

Nesses episódios, o desafio proposto é identificar o desenho dos conflitos e o posicionamento dos personagens nas notícias, fragmentos da narrativa investigada, tendo como norte da análise a pergunta-problema desta pesquisa: o trabalho é contado como direito fundamental na narrativa jornalística?

No Capítulo 4, importa compreender o plano da metanarrativa das notícias sobre o Direito do Trabalho, ou seja, são investigados alguns significados culturais da construção simbólica do Direito do Trabalho, no imaginário social, por meio das narrativas midiáticas. Assim, buscou-se perceber o papel dessa metanarrativa no “mundo empalavrado” do trabalho, para investigar se o trabalho é concebido como direito fundamental.

Para a compreensão de imagens centrais nesta pesquisa, como elementos dramáticos das narrativas, é utilizado o conceito de imaginário na concepção de Gilbert Durand49, como resultado da experiência humana de construção do real pela simbolização50.

A partir desses objetivos investigativos, colocam-se as indagações do Capítulo 4: quais são os principais significados subjacentes às narrativas sobre a regulamentação do trabalho nos veículos jornalísticos? As concepções sobre regulamentação são concepções de proteção, reconhecem o trabalho como direito fundamental? Como essas narrativas jornalísticas se relacionam com o cenário de flexibilização trabalhista e com seus efeitos de precarização de direitos no mundo do trabalho do jornalismo?

Os questionamentos são bastante complexos e exigem respostas complexas. Ao longo desse Capítulo 4, são testados caminhos para possíveis respostas, a partir dos resultados do

49 Afirma Durand: "L'incontournable re-présentation, la faculté de symbolisation d'où toutes les peurs, toutes les

espérances et leurs fruits culturels jaillissent continûment depuis les quelque un million et demi d'années qu'homo

erectus s'est dressé sur la terre." (DURAND, 1994, p. 77).

50 Os símbolos se articulam por estruturas relativas às dimensões do heróico, do mítico e do dramático: "Tout

imaginaire humain est articulé par des structures irréductiblement plurielles, mais limitées à trois classes gravitant autour des schèmes matriciels du 'séparer' (héroïque), de 'l‟inclure' (mystique) et du 'dramatiser' - étaler dans le temps les images en un récit - (disséminatoire)." (DURAND, 1994, p. 26)

estudo empírico do Capítulo 3 e de uma suposição que configura a hipótese da pesquisa: na produção de uma cobertura adversária51 à política, a mídia brasileira tece, no plano da metanarrativa de suas estórias, a "fábula das trapalhadas do Estado, dono de um 'dinossauro' que atende pelo nome de Direito do Trabalho". Segundo essa suposição, está subjacente às notícias relacionadas ao trabalho a concepção do Direito do Trabalho como anacrônico, "pesado" e, portanto, inadequado ao capitalismo flexível.

As implicações da fábula midiática do "dinossauro trabalhista" no imaginário coletivo são objeto de especulações nesta pesquisa. Discute-se como essa concepção pode legitimar cenários de mercantilização do trabalho, de precarização de direitos sociais e de flexibilização trabalhista, inclusive no próprio mundo do trabalho dos autores dessa fábula midiática.

Embora a realidade seja contada no jornalismo por fragmentos, as notícias, esses fragmentos formam uma visão das contradições e condições do mundo. (GENRO FILHO, 1987) Assim, os veículos jornalísticos são considerados como atores políticos e supõe-se que as cores do "dinossauro trabalhista" não sejam pintadas por acaso na fábula midiática.

Tendo em vista o exposto, é feita breve retomada de episódios históricos da ordem jurídico-trabalhista brasileira no século XX, para análise de alguns aspectos do processo de mercantilização do trabalho. O foco está no papel das formas atípicas de contratação no cenário de capitalismo flexível, com uma ilustração: o fenômeno da "pejotização"52, referente à contratação de trabalhadores sob o rótulo de “prestadores de serviços como pessoas jurídicas”.

A partir desse fenômeno, destaca-se que os narradores-veículos jornalísticos são atores políticos53 (com interesses políticos) e são empresas empregadoras (com interesses econômicos), para então analisar a realidade da precarização de direitos no mundo do trabalho jornalístico.

Nesse contexto, a "pejotização" é um problema grave, pois é recorrente a prática (fraudulenta) de contratação de trabalhadores por meio de contratos com pessoas jurídicas que os jornalistas são obrigados a criar, exigência da empresa jornalística empregadora.

51 O conceito de cobertura adversária é explicado no tópico 4.4 desta pesquisa, no Capítulo 4.

52 A escolha desse fenômeno como exemplo ilustrativo de forma atípica (que produz precarização de direitos) está

relacionada ao estudo empírico desenvolvido no Capítulo 3.

A fraude quanto à proteção trabalhista fica clara, por exemplo, na situação concreta em que estão presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego: subordinação, não eventualidade, pessoa física, pessoalidade e onerosidade (DELGADO, 2012), conforme arts. 2o e 3o da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), apesar da ausência de registro formal do vínculo empregatício.

Em suma, o roteiro de pesquisa proposto no Capítulo 4 tenta compreender um pouco do que precedeu o desenho do "dinossauro Direito do Trabalho" na narrativa midiática, observar algumas de suas cores e questionar para que serve esse desenho jurássico, considerados os narradores-veículos jornalísticos como atores políticos e como empresas (com interesses econômicos de empregadoras).

CAPÍTULO

2 -

PLANO

DO

DISCURSO DA

NARRATIVA