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2.2 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL E GOVERNANÇA

2.2.1 Estado, Administração Pública e Governança

A vida em sociedade é essencialmente política, já que, sendo permeada pela coexistência de interesses diversos, constitui-se em cenário naturalmente conflituoso,

mediado por relações desiguais de poder, seja ele formal ou informal. O Estado, instituído por esta mesma sociedade como seu instrumento balizador, tem na Administração Pública o aparato necessário à consecução de seu objetivo de realização do bem comum, ou seja, de concretização da satisfação das necessidades coletivas. Dessa forma, reforçam-se os atributos políticos da Administração Pública quando se constata que sua existência se encontra circunscrita à realização do objetivo do Estado, que, por sua vez, consiste em atender às necessidades de uma coletividade plural (DASSO JÚNIOR, 2006; DI PIETRO, 2011; KOHAMA, 2013; MATIAS-PEREIRA, 2010; SANTOS, 2009; SLOMSKI, 2007).

A partir de tais apontamentos, é possível considerar que, embora o exercício da função política, que se refere à determinação dos fins e das diretrizes da ação estatal, seja tida como responsabilidade dos órgãos governamentais (DI PIETRO, 2011), num Estado democrático, como é o caso do Estado brasileiro, tal função deve ser compartilhada por todos os cidadãos que o compõem.

Porém, apesar desta prerrogativa ser enfatizada na Constituição (BRASIL, 1988, Art. 1º, parágrafo único) por meio da colocação de que “todo o poder emana do povo”, o exercício da democracia no Brasil ainda se revela bastante limitado, restringindo-se à eleição de representantes ou a formas de controle distanciadas da efetiva participação cidadã (COELHO, 2009; DASSO JÚNIOR, 2006).

Tal cenário relaciona-se à atuação do Estado como agente garantidor da lógica do capital, fundamentada na acumulação do dinheiro-capital e na exploração do trabalho assalariado, o que prejudica a concretização da noção de bem comum, imprimindo a esta um caráter ilusório (CORREIA, 2015). Assim, é possível constatar que, embora a atuação do Estado seja virtualmente voltada ao interesse público, na prática este acaba por refletir os interesses privados hegemônicos.

Nessa esteira, o cidadão resume-se a “consumidor” dos bens e serviços oferecidos pelo Estado, ou seja, assume apenas o papel de realizar a última atividade do ciclo econômico (DASSO JÚNIOR, 2006). Quando se trata de serviços públicos, entretanto, critérios econômicos são insuficientes, e podem, inclusive, distanciar tais serviços do conceito de valor social e da qualidade de prestação com base nos princípios da equidade e da justiça (ARAGÃO, 1997; DIENER; SUH, 1997; MARINI, 2002).

Assim, estando o povo apartado da tomada de decisões quanto a aspectos que afetam sua vida, as ações do Estado acabam por não refletir suas reais necessidades, o que contribui para um distanciamento ainda maior das pessoas com relação a assunção de seu papel na esfera pública, voltado ao exercício de direitos e deveres (ABRUCIO, 1997; MATIAS- PEREIRA, 2010; MOTTA, 2007; SLOMSKI et al., 2008).

Tal cenário contribui com a falta de legitimidade conferida ao Estado, à Administração Pública e a seus agentes representantes, resultando em insatisfação, descrédito,

desconfiança e descontinuidade (ABRUCIO, 1997; CASTRO; DZIERWA, 2013; DINIZ, 1996; KICKERT, 1997; MARINI, 2002; MARINI, 2003; MATIAS-PEREIRA, 2010; MELO, 1996; OLIVEIRA; CARVALHO; CORRÊA, 2013; SANTOS, 1997; TCU, 2014).

É possível vislumbrar que esta perspectiva observada em nível macro no Estado brasileiro ecoa na dinâmica de funcionamento interno das instituições pertencentes à Administração Pública, nas quais se fazem presentes aspectos como hierarquização, centralização, separação entre planejamento e execução, patrimonialismo, personalismo, individualismo e controle desvinculado da participação (BECKERT; NARDUCCI, 2014; DASSO JÚNIOR, 2006; INOJOSA, 1998; MATIAS-PEREIRA, 2010; MOTTA, 2007).

Nesse contexto, resultante da combinação de diversos modelos de gestão, em especial o modelo burocrático-tradicional e o gerencialismo, calcados em princípios da administração clássica taylorista, destina-se às pessoas um papel secundário, enquanto o enfoque recai sobre a produtividade, a eficiência e a eficácia (ARAGÃO, 1997; AUGUSTINHO, 2013; BERGUE, 2014; DASSO JÚNIOR, 2006; INOJOSA, 1998; MATIAS-PEREIRA, 2008; MATIAS-PEREIRA, 2010; MISOCZKY, 2002; MOTTA, 2007).

Esta perspectiva demonstra-se preocupante, pois, no âmbito das organizações, sejam elas públicas ou privadas, a centralidade das pessoas é ressaltada pela constatação de que tudo se opera por meio delas. No caso das instituições que integram a Administração Pública, este papel fundamental das pessoas revela-se ainda mais preponderante, considerando-se que seu objetivo consiste na geração de valor público (BERGUE, 2014).

Assim, partindo-se da consideração de que são as pessoas que estabelecem as relações definidoras da boa governança pública (BERGUE, 2014), adota-se no presente estudo a concepção de governança como uma maneira de governar envolvendo redes de atores sociais diversos, interdependentes e autônomos, visando ao alcance de objetivos coletivos e sustentáveis com base na confiança e na cooperação (DINIZ, 1996; KICKERT, 1997; MARINI, 2003; MATIAS-PEREIRA, 2010; MELO, 1996; OLIVEIRA; CARVALHO; CORRÊA, 2013; RHODES, 1996; SANTOS, 1997; STREIT; KLERING, 2005; TCU, 2014), tendo-se como elementos centrais a participação, a complexidade e o reconhecimento dos conflitos e tensões como inerentes às relações estabelecidas neste contexto plural.

Matias-Pereira (2008, p.77) enfatiza que a integração de esforços entre diversos atores e organizações é salutar para a gestão pública, tendo em vista que “a definição de problemas e as aplicações de soluções resultam de uma ação coletiva”, mas ressalta que, quanto maior o número de atores envolvidos, maior a complexidade e o desafio de coordenação de ações.

Nesse sentido, destaca-se o papel da área de gestão de pessoas enquanto agente facilitador e “articulador dos arranjos de governança organizacional que estimulam a formação de espaços de interação compatíveis com a fluidez que o tema exige para a mobilização de

interesses e potencialidades que identificam cada ente sociopolítico” (BERGUE, 2014, p. 4 e p. 85).

Embora seja fundamental o papel da referida área, é importante ressaltar que a gestão das pessoas deve ser vista como um compromisso de todos (BERGUE, 2014), o que vai ao encontro dos conceitos de descentralização e intersetorialidade, também relacionados à complexidade e à necessidade de atuação em rede. A rede surge da percepção conjunta dos problemas e da possibilidade de resolvê-los a partir da interação com outros atores sociais, visando ao bem-estar dos diversos segmentos sociais e da sociedade como um todo. Nesse contexto, privilegiam-se a visão sistêmica, a construção coletiva e as práticas de cooperação (JUNQUEIRA, 2005).

Bergue (2010) também coloca que aspectos como as relações de poder, a sua amplitude de atuação e os seus componentes e propósitos conferem às organizações públicas elevada complexidade, o que expõe a limitação em concebê-las a partir do pensamento mecanicista. Diante desta consideração, o autor defende a necessidade de uma mudança de paradigma que incorpore o pensamento sistêmico, o qual enfoca as relações e as pessoas, tendo a compreensão do contexto como requisito fundamental. As principais diferenciações entre o paradigma mecanicista e o sistêmico encontram-se descritas no Quadro 7.

Mecanicista Sistêmico

Partes Todo

Objetos Relacionamentos

Hierarquia Redes

Causalidade linear Circularidade dos fluxos e relações

Metáfora mecânica Metáfora orgânica

Conhecimento objetivo Conhecimento objetivo e subjetivo

Verdade Descrições aproximadas

Quadro 7 - Elementos constituintes dos paradigmas mecanicista e sistêmico. Fonte: Bergue (2010, p. 41).

A necessidade de uma mudança de paradigma também é defendida por Abrucio (1997). Este autor ressalta, entretanto, que a busca por um novo paradigma na Administração Pública alinha-se à necessidade de um novo paradigma de governo, ultrapassando-se a discussão quanto a seu tamanho e focalizando-se na melhoria da atividade governamental, embasada em objetivos públicos, ou seja, politicamente definidos. Isso implica em, considerando-se as diferenças entre o setor privado e o público, buscar tornar este último

mais empreendedor, porém, não por meio de sua transformação em uma empresa (ABRUCIO, 1997).

Nessa esteira, considerando-se as particularidades da esfera pública com relação à esfera privada, Castro e Dzierwa (2013, p. 26) criticam a afirmação usual de que “é preciso administrar a coisa pública como coisa privada fosse”. Eles concordam que a coisa pública deve ser tratada com tanto zelo quanto um agente privado cuida de seu patrimônio, entretanto, consideram que suas características legais e estruturais intrínsecas impedem que a gestão pública seja realizada da mesma maneira que a gestão privada.

Dentre os aspectos que distinguem as instituições públicas e privadas encontram-se: - a concepção de indivíduo como cidadão nas primeiras e como consumidor/cliente nas segundas (CASTRO; DIZERWA, 2013; COELHO, 2009);

- a finalidade de realização de interesses gerais nas primeiras e interesses particulares visando o lucro nas segundas (CASTRO; DZIERWA, 2013; DASSO JÚNIOR, 2006);

- a maior presença, apesar dos esforços em minimizá-lo, nas organizações privadas do conflito entre capital e trabalho, inerente ao modo de produção capitalista, enquanto nas instituições públicas tal conflito não existe ou não tem os mesmos contornos, o que leva a uma dinâmica distinta entre as pessoas e a orientação para o interesse público (BERGUE, 2014);

- a autonomia relativa no caso de instituições públicas (as quais são submetidas a determinações legais voltadas ao interesse público) e absoluta no caso das organizações privadas (as quais são reguladas pelas leis do mercado) (COELHO, 2009; DI PIETRO, 2011), o que faz com que a gestão nestas últimas seja menos flexível (DASSO JÚNIOR, 2006).

Na visão de Bergue (2014, p. 23), apesar das instituições públicas diferirem das privadas quanto a seus objetivos/fins, estas se aproximam quanto aos seus meios, ou seja, seus sistemas de gestão, o que faz com que seja comum a transposição de conceitos e tecnologias de uma esfera a outra. Essa possibilidade de transposição de sistemas de gestão do setor privado para a público faz com que os processos e relações na organização pública contemporânea acabem por refletir o pensamento gerencial de inspiração clássica, o qual também orienta a gestão das pessoas, com base em pressupostos como: “mecanicismo, hierarquia, divisão do trabalho, especialização, formalização, padronização, em especial a redução da dimensão humana – as pessoas – a uma expressão funcional, de alcance menor”.

Tais pressupostos, que refletem, entre outros aspectos, em autoritarismo e centralização das decisões organizacionais, combinam-se a traços culturais característicos da Administração Pública como o personalismo e o paternalismo (BECKERT; NARDUCCI, 2014; MOTTA, 2007), que trazem como consequência o enfraquecimento das instituições, ao

fazer com que estas existam em função das pessoas que as dirigem, levando à descontinuidade de políticas e compromissos (MOTTA, 2007).

Com base nos fatores apresentados nessa seção, enfatiza-se a importância da consideração do contexto da Administração Pública, da centralidade do trabalhador e do fomento à Qualidade de Vida no Trabalho como instrumento de viabilização de um modelo de governança pública voltado ao atendimento dos interesses e necessidades dos diversos atores sociais envolvidos.

Por fim, como forma de complementar a caracterização do campo onde se desenvolveu o presente estudo, será apresentada na seção a seguir a composição da Administração Pública Federal brasileira.