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4 DIREITOS E PRINCÍPIOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

5.1 Condições justificadoras de utilização da PMA

5.2.2 Estado civil

O estado civil como critério definidor dos beneficiários da reprodução humana assistida implica em permitir ou não que casais186 e pessoas singulares sejam beneficiários

das técnicas de PMA.

O Estado que desejar proteger a família, base da sociedade, como modelo constituído por pai, mãe e filho (s), certamente não permitirá que pessoas singulares decidem pela realização do direito de reproduzir através das técnicas de PMA, mas não poderá impedir que o faça por meio da relação sexual.

185 AÇÃO CIVIL PÚBLICA 0013853-33.2013.4.01.3500. Disponível em:

https://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?proc=00138533320134013500&secao=TR F1&pg=1&trf1_captcha_id=68526251dc4c14542fc0932ae46c757c&trf1_captcha=SMQZ&enviar=Pesqu isar

186 Neste tópico se discutirá apenas quanto ao estado civil sem levar em consideração a orientação sexual

A determinação dos beneficiários no contexto das técnicas de PMA está intimamente ligada ao que o Estado considera como família, não porque a procriação dependa da constituição familiar, mas uma vez reconhecido a família, a esta não se poderá negar a reprodução.

No Brasil o Código Civil de 1916 estabelecia que a família a gozar de proteção era aquela formalmente originada do casamento187. Com a CRFB de 1988 houve um alargamento da proteção familiar e o reconhecimento da união estável e da família monoparental como entidades familiares.

Na jurisprudência vários outros tipos de família foram sendo reconhecidos, porque a partir de então família passou a ser identificada como um “grupo social”188, este no

sentido de pessoas que se unem em um ambiente onde cada uma desenvolve o seu melhor individualmente ligadas pela afetividade.

Ainda que fosse o desejo do Estado, isto é, permitir somente a casais o acesso as técnicas de procriação assistida, o mesmo não prevaleceria em razão de que o conceito que se emprega à família atualmente é alargado para alcançar variados tipos de uniões estabelecidas quer por laços biológicos e afetivos, ou somente afetivos.

Marcelo De Oliveira Milagres189 ressalta relativamente a matéria familiar que a atuação do Estado na conjuntura contemporânea deve ser protetiva e não restritiva, ou seja, o Estado reconhece a pluralidade do casamento, da união estável, da família monoparental, anaparental, unipessoal, da união homoafetiva, reconhece a liberdade de escolha do modelo familiar pelo indivíduo e a protege.

Sobre esses novos modelos de família, Maria Berenice Dias, anota:

O novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. (...) A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado.190

187 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro, VI vol. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2007,

p. 16.

188 MARIA CELINA BODIN DE MORAES; ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA. Comentário

ao art. 226. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.122.

189 MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES. Família e liberdade: direito pessoal e direito patrimonial de

família. Revista de Direito Privado. Vol. 56, out. 2013. p. 297.

190 MARIA BERENICE DIAS. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

O Código Civil de 2002, em conformação com a CRFB retrata alguns modelos de família, mas não disciplina todos aqueles que existem na realidade fática.

Além da jurisprudência191 que vem acompanhando a doutrina brasileira referente

a essa nova roupagem do direito de família reconhecendo novos modelos, atualmente também há um projeto de lei192 para criar o Estatuto da Família que objetiva, entre outros aspectos, tratar de todos os tipos de famílias.

O critério “estado civil” não encontra restrições para a utilização das técnicas de PMA quando casados ou em união estável193, mas encontra obstáculos quando se trata de pessoa solteira, mesmo levando em consideração que a família monoparental no Brasil, goza de proteção constitucional e a adoção unilateral é permitida.

Não é compreensível que o direito de procriar, por intermédio das técnicas de PMA seja concedido apenas aos casais constituídos sob o casamento ou em união estável. O que explicaria o fato de que o mesmo Estado que possibilita a adoção singular, reconhece e protege as famílias monoparentais, também restringe e nega o direito de procriar, de ter um filho biológico, ainda que parcialmente?

Faz-se isso em respeito ao princípio do superior interesse da criança? Quem defende esta tese, expõe que o acesso às técnicas de PMA apenas por pessoas casadas e em união estável deve-se ao cumprimento da normalidade, da biparentalidade que deseja- se à criança, esta é a família idealizada pelo ordenamento jurídico e pela criança194.

Em contraposição há quem afirme que se o Estado permite que uma criança seja adotada por uma pessoa, e constitua uma família monoparental, não encontrando aqui

191 Família anaparental: STF - ARE: 760545 DF - DISTRITO FEDERAL, Relator: Min. TEORI

ZAVASCKI, Data de Julgamento: 17/08/2015, Data de Publicação: DJe-163 20/08/2015;

Família multiparental: Ação de suprimento de registro civil com multimaternidade. (RS, Proc. nº 027/1.14.0013023-9 (CNJ:.0031506-63.2014.8.21.0027), Juiz de Direito Rafael Pagnon Cunha, j. 11/09/2014);

Família unipessoal: TRT-23 - AP: 537200300423000 MT 00537.2003.004.23.00-0, Relator: DESEMBARGADOR EDSON BUENO, Data de Julgamento: 07/06/2011, 1ª Turma, Data de Publicação: 15/06/2011.

192 BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei n.º 2.285/2007. Disponível em:

http://camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=373935 Acesso em 3 out 2016.

193 Em sentido diverso, o conselheiro J.P. Ramos Ascensão, Na declaração de voto ao parecer nº 44 do

Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (Conev), manifestou posição contrária ao acesso das técnicas de PMA por casais em união de fato, afirmando categoricamente que esta não pode ser comparada ao casamento, no sentido de legitimá-la ao acesso das técnicas e mesmo à adoção. CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA (CNECV). Declaração de voto do Conselheiro J.P. Ramos Ascensão no Parecer nº 44 do CNECV/2004 sobre a Procriação Medicamente Assistida. Disponível em: http://www.cnecv.pt/pareceres.php?p=4 Acesso em 06 nov 2016.

194 JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da..., cit., p. 221. PAULO OTERO, Personalidade e identidade

motivos que expõem a criança ao perigo, não há razões para não serem legitimadas as famílias monoparentais constituídas pelas técnicas de PMA.195

Quanto a analogia que os argumentos a favor do acesso as técnicas de PMA por pessoas singulares, faz com o instituto da adoção, demostrando que aqui se aceita que uma pessoa, homem ou mulher, possa educar uma criança, autores como Jorge Duarte Pinheiro196, ressaltam que na adoção, a criança está órfã de ambos os pais, e se não pode ter dois, que tenha ao menos um, o que não acontece nos casos de reprodução humana assistida onde a criança ainda não existe.

No mesmo sentido, Eduardo Oliveira Leite197 afirma que existe uma diferença substancial entre a adoção e a reprodução biológica por uma pessoa. Enquanto aquela é a última alternativa do Estado em proporcionar para a criança já nascida e abandonada, um ambiente mais familiar que o orfanato, a reprodução assistida quando utilizada por apenas uma pessoa, provoca o nascimento de órfão de pai, no caso da mulher, ou de mãe, no caso do homem.

A biparentalidade como já foi exposto, não é indispensável à formação de uma família, pelo que fica descartado como argumento impeditivo. Ainda assim, mesmo diante da transformação familiar, sustenta Eduardo De Oliveira Leite198 ser incontestável que uma mulher solteira jamais poderá proporcionar a uma criança a sua inserção em uma comunidade familiar, constituída de pai e mãe199.

Entendemos que permitir a adoção por uma só pessoa porque não tem alternativa, desde o início provoca discriminação e a desvaloriza. A adoção tem que ocorrer, independente do estado civil, porque a pessoa é capaz de oferecer o que uma criança precisa, e uma pessoa solteira poderá oferecer isso em iguais condições200.

Em razão do exposto que se considera o estado civil como critério não limitador da utilização das técnicas de reprodução assistida.

195 VERA LUCIA RAPOSO, Direitos Reprodutivos: homossexualidade, celibato e parentalidade. In:

Família, Consciência, Secularismo e Religião. Coimbra: Editora Coimbra, 2010. p. 74

196 JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da..., cit., p. 222.

197 EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, Procriações artificiais..., cit., p.152. 198 EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, Procriações artificiais..., cit., p.354.

199 Discriminatório o pensamento do renomado Autor e incompatível com a realidade. A discriminação e

sofrimento, se sentido, por uma criança que tem somente mãe ou pai, não será menor que aquela que tem teoricamente os dois, mas não pode contar com nenhum ou algum deles, o que acontece muito na sociedade. Ou ainda, a inserção social dessa criança se difícil for, o que não se acredita, não é pior que a da criança pobre, a criança negra, a criança filha da prostituição, a criança filha do alcoólatra. Há muita discriminação humana que precisa ser abolida, mas direitos não devem ser abolidos por medo da discriminação.

No entanto, uma vez permitido o acesso a todos, uma regulamentação clara se faz necessária, especialmente porque a princípio estaria permitindo a inseminação “post mortem” (viúvos), e também a maternidade de substituição (homens), situações que exigem legislação específica para estabelecer questões contratuais nesta e os direitos sucessórios naquela.