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Estado, Cultura e Política no Brasil – Nação e nacionalidade como

No documento Primavera de Estações (páginas 62-67)

Verificamos que o histórico institucional da cultura no Brasil está muito próximo de uma prática ideológica de consolidação do capitalismo no país em suas diversas etapas: no primeiro momento, entre os anos 1930 e 1960, quando se institucionalizam e consolidam iniciativas de preservação da memória nacional, acompanhadas da construção de um imaginário de Nação cunhado sobre um caráter cultural único; em seguida, no período entre 1964-85, o discurso da identidade nacional evocou no patrimônio cultural o sentido de desenvolvimento econômico e social, e as políticas de preservação consolidaram universos de consumo de diversos bens simbólicos, consolidando no país a indústria cultural de mídia; entre o final da década de 1980 e os anos 2000 (com a indústria cultural consolidada), a imagem do patrimônio preservado como elemento valorizador do setor terciário e da infra-estrutura consolidou o cerne do universo urbano ‘globalizado’no país. Nesse caso, as políticas de preservação do patrimônio integram-se às políticas de gestão urbana, e juntas, estruturam um universo de consumo próprio da economia globalizada, baseado na “venda” da imagem cultural de cidades.

O enfoque no patrimônio histórico como elemento aglutinador da identidade nacional constitui-se recurso retórico importante por suas leituras simbólicas e pela capacidade de fixação de valores que sua imagem propicia. Esses valores trazem visões de mundo que lutam por se legitimarem na sociedade ou no grupo para o qual o patrimônio se dirige, podendo ser identificados nos discursos que defendem universos próprios de grupos dominantes ou de grupos mais marginalizados. E o elemento que unifica os interesses e valores dessa comunidade constituída pela Nação é o patrimônio (histórico, artístico, arquitetônico, cultural, ambiental, etc.).

Os “patrimônios culturais” são constituídos concomitantemente à formação dos Estados nacionais, que fazem uso dessas narrativas para construir memórias, tradições e identidades. Assim como no romance, o que está em foco nas narrativas de patrimônio é a experiência de formação de uma determinada subjetividade coletiva, a “nação”, como coletividade individualizada e, a exemplo dos indivíduos, dotada de memória, caráter, identidade etc. De certo modo, as narrativas de patrimônio são romances nacionais. 62

Verifica-se que o uso ideológico do patrimônio cultural apoiou historicamente a consolidação dos Estados Nacionais, e assim, a alteração de sentidos que o conceito de Estado-Nação sofre durante o século XX influencia na relação da preservação do patrimônio

com o discurso identitário que a justifica. A unidade política e social - atribuída durante o século XIX e parte do XX ao conjunto da nação - desloca-se para o universo urbano, e a partir da segunda metade do século XX as esferas localizadas de cultura assumem o sentido de pertencimento à nacionalidade.

Essa migração de sentidos de pertencimento se origina com a crise de produção capitalista nos anos 1970, que forçou o deslocamento de identidades nacionais para identidades locais estruturadas no consumo de produtos culturais. Nesse contexto, o conceito de bem cultural passou a ser vinculado a um valor simbólico de consumo. A inserção da cultura como mercadoria principal do capitalismo pós-moderno (pós -1970), justificou-se pelo baixo custo de sua produção (equipamentos, mão-de-obra e distribuição pouco complexos) e pela fácil aceitação do “produto” por seu público consumidor, garantindo altos índices de lucratividade.

(...) Se a emergência da noção de patrimônio histórico e artístico nacional se deu no âmbito da formação dos Estados-nações e da ideologia do nacionalismo, sua versão atual, enquanto patrimônio cultural, indica sua inserção em um contexto mais amplo – o dos organismos internacionais- e em contextos mais restritos – o das comunidades locais. Nesse sentido, nas duas últimas décadas essa noção foi ressemantizada, extrapolou o seu domínio tradicional, o dos Estados Nacionais, e passou a envolver outros atores que não apenas burocratas e intelectuais. As modificações na conceituação e no gerenciamento do patrimônio enquanto objeto de políticas públicas indicam sua progressiva apropriação como tema político por parte da sociedade, o que trouxe conflitos a uma prática tradicionalmente exercida pelo Estado, com o concurso de intelectuais de perfil definido e às margens das pressões sociais. 63

A consolidação de identidade locais como base da mentalidade de consumo almejada pelos teóricos do capitalismo pós-moderno exigia a invenção de um parque industrial capaz da fabricação e distribuição da produção cultural; o cenário urbano assumiu com totalidade, no século XXI, essa função e vem se adaptando à dinâmica do consumo, permitindo que a circulação de mercadorias atenda às demandas do fluxo financeiro internacional.

Criou-se, dessa forma, uma nova idéia de cidade, de âmbito internacional, à qual as cidades têm de corresponder com sua imagem, para participarem do processo de globalização. Já não se trata de uma imagem para a nação, buscada anteriormente no mundo ocidental e especificamente no caso brasileiro, quando, nas décadas de 1930 e 1940, a preservação da arquitetura colonial constituía-se na referência por excelência da nação. Tampouco se trata exclusivamente da intenção de ativar a indústria do turismo, como ocorreu nas propostas da década de 1970 em âmbito internacional e também no Brasil. As áreas históricas, especialmente das grandes cidades, passaram a ser consideradas elementos importantes para a composição da imagem urbana diante do mercado globalizado. Representam a capacidade de ter história, de se situar na disputa entre cidades, equiparando-se na produção de imagens. As

referências são locais, mas têm como alvo a disputa global. Elas devem atender à expectativa da comunicação e ao consumo que se alimentam de referências globais. 64

Vimos no início do capítulo que o discurso de preservação do patrimônio pode se apoiar no argumento da monumentalidade como também no argumento do cotidiano, dependendo das pressões político-econômicas que o Estado tem de atender. Entre os anos 1930 e 1960 a versão da memória monumental prevaleceu como método capaz de garantir a formação do Estado brasileiro; entre os anos 1970 e 1990 a valorização dos bens culturais produzidos pelo conhecimento empírico “popular” (o chamado patrimônio ‘imaterial’, em oposição ao monumento de “pedra e cal” tradicionalmente associado à noção de patrimônio) ampliou o raio de atuação estatal na preservação da memória nacional; o período posterior aos anos 1990 assistiu e assiste a apropriação de ambos discursos ‘monumentais’ e ‘cotidianos’ pela lógica da mercadoria, alterando consideravelmente a ação preservacionista do Estado, influenciada pela relação de intervenção dos interesses do ‘mercado’. Ao invés de valorizar o patrimônio como fonte de apropriação coletiva do conhecimento, o poder público contribui para a elaboração de valores de consumo que interessam ao capital especulativo, promovendo o deslocamento de “lugares de memória” para “lugares de consumo e especulação” (além da venda da imagem e do status do patrimônio, a locação de espaços para eventos para a iniciativa privada promove uma confusão ainda maior das fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada). O quadro abaixo apresenta os critérios preservacionistas no Brasil a partir desse eixo de análise.

64 MOTTA, Lia. “A apropriação do patrimônio urbano: do estético-estilístico nacional ao consumo visual e global”. IN: ARANTES, Antônio (org). O Espaço da Diferença. Campinas: Papirus, 2000, p.262.

Tabela 4. Prática Preservacionista no Brasil - critérios

Inicial (1937- 1970) INTERMEDIÁRIA (1970-1990) MODELO GLOBALIZADO (1990- ) - unidade nacional

- autenticidade da cultura brasileira

- fatos memoráveis da história - tombamento calcado na unidade de estilo arquitetônico (sítios urbanos)

- participação de grupos da sociedade civil nas

reivindicações pela qualidade do meio-ambiente urbano - batalha pela ampliação da apropriação cultural e processo de tombamento - participação das esferas estaduais e municipais - preservação associada a desenvolvimento econômico/ turismo -preservação associada à qualidade de vida - noção de “ambiência” - cidade-documento: espaço de registro de historicidades. O patrimônio torna-se

possibilidade de leitura das formas urbanas - consagração de monumentos ‘consagrados’ - construção de ‘auto-imagem’ para a cidade - enobrecimento de áreas históricas para projeção em circuito global

- competição entre cidades – valorização da história local - construção de cenários para consumo visual

- embelezamento urbano em detrimento dos significados históricos, simbólicos e de uso - esvaziamento da função política do patrimônio

Fonte: Baseado no artigo de Lia Motta. “A apropriação do patrimônio urbano: do estético-estilístico nacional ao consumo visual e global”. IN: ARANTES, Antônio (org). O Espaço da Diferença. Campinas: Papirus, 2000.

Verifica-se, a partir dos investimentos públicos e privados na área de preservação do patrimônio cultural nas últimas décadas do século XX, que as noções de nação e de nacionalidade deslocaram-se para o “campo das representações já consolidadas”, assumindo as funções político – ideológicas de legitimar projetos políticos articulados a projetos de inserção econômica do capital internacional, oferecer mecanismos de aceitação às formas sociais influenciadas pelos processos de globalização das comunicações e apoiar os discursos de projeção internacional do país através da valorização de sua história e cultura. As políticas públicas de preservação nos ajudam a recuperar intenções, conflitos e sucessos dos projetos políticos ora associados a interesses tradicionais, ora mercadológicos/ empresariais.

Na sociedade moderna, para a qual os governos brasileiros tanto se esforçaram para alcançar, o consumo se torna o elemento de constituição de diferenças, em uma sociedade que não possui títulos de nobreza ou de sangue, colocando o mercado como espaço da

democracia. “A separação do campo da arte serve à burguesia para simular que seus privilégios se justificam por algo mais que pela acumulação econômica.” 65

A proposta deste capítulo de analisar as estratégias e argumentos de apropriação do patrimônio no Brasil por grupos político através do aparelho do Estado (como uma proposta de alteração da mentalidade política no país), objetivou a compreensão dos interesses embutidos nos discursos de preservação. Verificamos que o Estado, enquanto instituição que reflete as formas de organização e poder de uma sociedade, é o produto político mais elaborado de uma cultura, e conforme a complexidade estrutural que assume, necessita de mecanismos de legitimação dos grupos dominantes e das formas de poder que o sustentam. O patrimônio cultural constitui-se um dos principais mecanismos dessa legitimação, pois permite que os grupos hegemônicos do poder estruturem seus universos simbólicos sobre esse tipo de narrativa histórica, assumindo um caráter coletivo, capaz de abarcar a totalidade de interesses e valores de uma comunidade. Nesse sentido, Nação e nacionalidade são conceitos que encontram ressonância na narrativa patrimonial, e sua consolidação como “verdade absoluta e inquestionável” caracteriza uma postura ‘moderna’ entre as organizações políticas que compõem o Estado. E mesmo com a desestruturação das formas políticas tradicionais do Estado-nação, esses conceitos solidificaram-se de tal maneira no imaginário coletivo ocidental, que as identidades culturais contemporâneas associadas ao universo urbano assumiram os discursos e estratégicas nacionais.

Os patrimônios culturais são estratégias por meio das quais grupos sociais e indivíduos narram sua memória e sua identidade, buscando para elas um lugar público de reconhecimento, na medida mesmo em que as transformam em “patrimônio”. Transformar objetos, estruturas arquitetônicas e estruturas urbanísticas em patrimônio cultural significa atribuir-lhes uma função de “representação”, que funda a memória e a identidade. Os diálogos e as lutas em torno do que seja o verdadeiro patrimônio são lutas pela guarda de fronteiras, do que pode ou não pode receber o nome de “patrimônio”, uma metáfora que sugere sempre unidade no espaço e continuidade no tempo no que se refere à identidade e memória de um indivíduo ou de um grupo. Os patrimônios são, assim, instrumentos de constituição de subjetividades individuais e coletivas, um recurso à disposição de grupos sociais e seus representantes em sua luta por reconhecimento social e político no espaço público. 66

65 CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2000, p.37.

2. Políticas de Preservação no Brasil e área da Luz: “marco histórico do

No documento Primavera de Estações (páginas 62-67)