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4. EXPLORAÇÕES CONCEPTUAIS SOBRE A FORMAÇÃO DA PAISAGEM COMO

“MARCA DO TRABALHO SOBRE O TERRITÓRIO”

“…paisaje cultural es la huella del trabajo sobre el territorio, algo así como un memorial al trabajador desconocido. “

Sabaté Bel, 2004

A literatura nacional e internacional é abundante sobre o tema da formação da paisagem e o seu enquadramento teórico, mas a presente Tese não visa essa discussão.

Importa sim no nosso entender, e face ao contexto específico da investigação, fazer o enquadramento deste assunto partindo do pressuposto que todas as paisagens humanizadas refletem as atitudes, trabalho e valores de quem as constrói ao longo do tempo.

Como tal a construção e operacionalização de qualquer elemento da paisagem reflete também atitudes, trabalho e valores; assim a sua demonstração é relevante para a perceção das motivações, condicionantes e efeitos da construção desse mesmo elemento.

No caso concreto, tentaremos desenvolver estes conceitos para o caso concreto da agricultura urbana e mais especificamente para o estudo de caso do Parque Agrícola da Alta de Lisboa, tratado posteriormente noutro capítulo da presente tese.

De um ponto de vista de apreciação pessoal, revemo-nos na breve e poética expressão de Sabaté citada no início deste capítulo.

A paisagem como a “marca do trabalho [aqui entendido como de natureza humana] sobre o território”, sublinha as gerações de gente simples, maioritariamente anónimos (“trabajador desconocido”), mas profundos agentes de transformação e co-evolução de um “território” que, ao assumir as lógicas culturais de quem o trabalha e porque o faz, se torna“paisagem”.

Esta diferenciação entre os conceitos de "território" e "paisagem", a que se acrescenta "ambiente" foi sistematizado por vários autores; utilizemos aqui um dos mais relevantes sobre o tema: Rosario ASSUNTO11. Este autor (aqui transcrito em SERRÃO, 2011, págs. 126 a 129) faz uma clara separação entre aqueles três conceitos da seguinte forma:

"território", (...) significado quase exclusivamente espacial e um valor mais extensivo-quantitativo do que intensivo-qualitativo. Por território entende-se, de facto, uma extensão mais ou menos vasta da superfície terrestre, que pode ser delimitada segundo divisões geofísicas (montes, rios), segundo diferenças linguísticas, segundo delimitações político-administrativas que podem coincidir com os limites geofísicos e linguísticos ou ignorá-los;

11 Rosario Assunto (1915-1994), italiano, Professor de Estética, História da Filosofia Italiana e Filosofia Teórica em Roma e Urbino. autor, entre outros títulos, de "Il paesaggio e l'estetica", 1973, considerado a sua obra maior e desde a sua publicação um texto de cariz filosófico,

"ambiente" (...) tem dois significados: um biológico, que se refere às condições de vida física favorecidas ou contrariadas pelas configurações de certas localidades (longitude, latitude, altitude, exposição solar, precipitações, temperaturas sazonais, conformação geológica do solo e do subsolo, hidrografia) e uma histórico-cultural, consoante em certas localidades predomine a cidade ou o campo, a agricultura ou a indústria, o comércio ou a pastorícia, e ainda consoante os costumes, as tradições, a moral corrente e a unidade ou a multiplicidade das confissões e dos cultos sejam mais ou menos intensamente seguidos e praticados; e os testemunhos artísticos locais, influenciando de modo diferente o ambiente conforme os períodos históricos nos quais tiveram maior ou menor prosperidade; as ocupações estrangeiras sofridas e os domínios exercidos no passado sobre países estrangeiros; a eventual presença de minorias étnico-linguísticas, a emigração ou a imigração..". Ou

seja para este autor "não pode haver ambiente sem território” (…) ambiente é "o território vivo para o

homem e vivido pelo homem", enquanto o território pode ser pensado, estudado e manipulado enquanto tal mesmo que se faça a abstração da vida que "nele vive e do homem que vive esta vida".

"paisagem" é a "forma” na qual se exprime a unidade sintética a priori da "matéria (território)" e do "conteúdo-ou-função (ambiente).

Termina ASSUNTO esta sistematização da seguinte forma lapidar: "O ambiente concreto, o ambiente que

vivemos e do qual vivemos vivendo nele, é sempre o ambiente como forma de um território: paisagem. Não será, portanto, ousado supor que tal como o conceito de "ambiente" inclui em si o de "território", também o conceito de "paisagem" inclui em si o de "ambiente"; então, a realidade que devemos estudar e sobre a qual, se necessário, devemos intervir é sempre a "paisagem", e não o "ambiente" e muito menos o "território".

(sublinhado nosso) (Op. cit., pag 129).

Regressando ao tema da paisagem cultural (ou paisagem como expressão de cultura), esta definição parece ter sido formulada em primeiro lugar por SAUER, 1925, como: “A cultural landscape is fashioned from a natural

landscape by a culture group. Culture is the agent, the natural area is the medium. The cultural landscape the result.”

Como se verá, esta definição ainda se mantem na base de muitas atitudes conceptuais sobre paisagem, na relação e como resultante da ação humana numa envolvência natural.

Para a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), as paisagens culturais têm um carácter próprio, e como tal podem ser classificadas.

Interpretando o descrito por aquela Organização sobre a preservação de locais diferenciados, “To reveal and

sustain the great diversity of the interactions between humans and their environment, to protect living traditional cultures and preserve the traces of those which have disappeared, these sites, called cultural landscapes(...)”,

torna-se clara a influência de Sauer.

Na legislação portuguesa em vigor, dois documentos parecem-nos essenciais para se perceberem os conceitos de “paisagem” legalmente definidos:

 A Convenção Europeia da Paisagem (Decreto nº 4/2005, de 14 de Fevereiro);  A Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87 de 7 de Abril de 1987).

Pelo Decreto nº 4/2005, de 14 de Fevereiro, o Governo Português aprovou a Convenção Europeia da Paisagem, previamente assinada em Florença em 20 de Outubro de 2000, e onde se define paisagem como “uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação

de fatores naturais e ou humanos”. Como se vê, a definição original de Sauer está também aqui presente.

Pela entrada em vigor daquele Decreto, o Governo Português ficou comprometido, juntamente com os restantes membros do Conselho da Europa que também assinaram e aprovaram a Convenção, a:

 Reconhecer juridicamente a paisagem como uma componente essencial do ambiente humano, uma expressão da diversidade do seu património comum cultural e natural e base da sua identidade;  Estabelecer e aplicar políticas da paisagem visando a proteção, a gestão e o ordenamento da

paisagem através da adoção das seguintes medidas específicas:

Sensibilização

incrementar a sensibilização da sociedade civil, das organizações privadas e das autoridades públicas para o valor da paisagem, o seu papel e as suas transformações.

Formação e educação

promover a formação de especialistas nos domínios do conhecimento e da intervenção na paisagem, programas de formação pluridisciplinar em política, proteção, gestão e ordenamento da paisagem, destinados a profissionais dos sectores público e privado e a associações interessadas e cursos escolares e universitários que, nas áreas temáticas relevantes, abordem os valores ligados às paisagens e as questões relativas à sua proteção, gestão e ordenamento.

Identificação e avaliação

identificar as paisagens no conjunto do seu território, analisar as suas características bem como as dinâmicas e as pressões que as modificam, acompanhar as suas transformações e avaliar as paisagens assim identificadas, tomando em consideração os valores específicos que lhes são atribuídos pelos intervenientes e pela população interessada.

Os procedimentos de identificação e avaliação serão orientados por trocas de experiências e de metodologias, organizadas entre as Partes ao nível europeu.

Cada uma das Partes compromete-se a definir objetivos de qualidade paisagística para as paisagens identificadas e avaliadas, após consulta pública.

Tendo em vista a aplicação das políticas da paisagem, cada Parte compromete-se a estabelecer os instrumentos que visem a proteção, a gestão e ou o ordenamento da paisagem assim entendidos:

 «Protecção da paisagem»: as acções de conservação ou manutenção dos traços significativos ou característicos de uma paisagem, justificadas pelo seu valor patrimonial resultante da sua configuração natural e ou da intervenção humana;

 «Gestão da paisagem»: a ação visando assegurar a manutenção de uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações resultantes dos processos sociais, económicos e ambientais;

 «Ordenamento da paisagem»: as acções com forte carácter prospectivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de paisagens.

A Convenção obriga também os Países signatários a estabelecer procedimentos para a participação do público, das autoridades locais e das autoridades regionais e de outros intervenientes interessados na definição e implementação das políticas da paisagem e a integrar a paisagem nas suas políticas de ordenamento do território e de urbanismo, e nas suas políticas cultural, ambiental, agrícola, social e económica, bem como em quaisquer outras políticas com eventual impacte direto ou indireto na paisagem. Para melhor perceção dos termos específicos atrás utilizados, a Convenção define e diferencia também entre:

 «Política da paisagem»: formulação pelas autoridades públicas competentes de princípios gerais, estratégias e linhas orientadoras que permitam a adoção de medidas específicas tendo em vista a proteção, a gestão e o ordenamento da paisagem;

 «Objectivo de qualidade paisagística»: formulação pelas autoridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das aspirações das populações relativamente às características paisagísticas do seu quadro de vida.

Por sua vez, a Lei de Bases do Ambiente (LBA), Lei nº 11/87 de 7 de Abril de 1987 da Assembleia da República, define: “Paisagem é a unidade geográfica, ecológica e estética resultante da ação do homem e da

reação da Natureza, sendo primitiva quando a ação daquele é mínima e natural quando a ação humana é determinante, sem deixar de se verificar o equilíbrio biológico, a estabilidade física e a dinâmica ecológica”.

Outra referência importante é a seguinte transcrição de PINTO-CORREIA et alli (2001): “A paisagem é assim,

na generalidade do território europeu, uma paisagem cultural, expressão dos diversos recursos naturais existentes mas também da ação humana sobre esses recursos. A paisagem natural é aquela onde a articulação dos diversos fatores naturais ao longo do tempo não foi afectada pela ação humana, o que é raro na Europa. Em geral de uma forma direta, mas também de uma forma indirecta, praticamente todas as paisagens europeias registam em maior ou menor grau o impacte da ação humana”.

Parece assim globalmente consensual (com a exceção da interpretação da LBA), que as paisagens “naturais” podem ser entendidas como unidades territoriais com características perceptuais e funcionais específicas decorrentes de determinadas ocorrências exclusivamente biofísicas, e as paisagens “culturais” (ou “humanizadas”) correspondem à resultante da interação, ao longo dos tempos, das ações humanas com essas unidades territoriais.

Numa interpretação formulática, podemos então dizer, e seguindo o caminho de SABATÉ BEL, que: