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ESTADO MODERNO E A JURISDIÇÃO SEGUNDO OVÍDIO BATISTA DA SILVA

Para Ovídio Batista da Silva (2000, p. 23), renomado processualista civil gaúcho, a ideia de direito, no Estado moderno, suscita a jurisdição, conforme a seguinte definição:

O pensamento contemporâneo tende, irresistivelmente, a equiparar o direito à norma jurídica editada pelo Estado, cuja inobservância dá lugar a uma sanção. Na verdade, o crescimento avassalador do Estado moderno está intimamente ligado ao monopólio da produção e aplicação do direito, portanto à criação do direito, seja em nível legislativo, seja em nível jurisdicional.

Aqui a concepção de Estado moderno está atrelada ao Direito como legado da modernidade, “como um campo necessário de luta para a implantação das promessas modernas” (STRECK; MORAIS, 2019, p. 85), e segue o referido autor:

A toda evidência, não se está, com isso, abrindo mão das lutas políticas, via Executivo e Legislativo, e dos movimentos sociais. É importante observar, no meio de tudo isto, que, em nosso país, há até mesmo uma crise de legalidade, uma vez que nem sequer esta é cumprida, bastando, para tanto, ver a inefetividade dos dispositivos da Constituição, levando a um crescente processo de judicialização do cotidiano. (STRECK; MORAIS, 2019, p. 85).

Segundo Neves (2019), é possível, numa visão moderna, verificar a existência de ano menos três, e no máximo quatro, escopos de jurisdição: jurídico, social educacional e político, conforme as seguintes definições:

O escopo jurídico consiste na aplicação concreta da vontade do direito (por meio da criação da norma jurídica) resolvendo-se a chamada “lide jurídica”. Note-se que diante de uma afronta ou ameaça ao direito objetivo, a jurisdição, sempre que afasta essa violação concreta ou iminente, faz valer o direito objetivo no caso concreto, resolvendo do ponto de vista jurídico o conflito existente entre as partes. Durante muito tempo imaginou-se que seria esse o único escopo da jurisdição, entendendo-se que a jurisdição cumpria sua missão toda vez que se aplicasse a vontade concreta do direito objetivo. Ocorre, entretanto, que no estágio atual da ciência processual seria de uma pobreza indesejável limitar aos objetivos da jurisdição

48 somente ao escopo jurídico. Não que ele não seja importante, mas não é o único.

O escopo social da jurisdição consiste em resolver o conflito de interesses proporcionando às partes envolvidas a pacificação social. [...].

O escopo educacional diz respeito à função da jurisdição de ensinar aos jurisdicionados – e não somente as partes envolvidas no processo – seus direitos e deveres. (NEVES, 2019, p. 80).

Quanto ao escopo político da jurisdição, Neves (2019, p. 81) o divide em três vertentes:

Se presta a fortalecer o Estado. É claro que, funcionando a contento a jurisdição, o Estado aumenta sua credibilidade perante seus cidadãos, fortalecendo-se junto a eles. Politicamente, portanto, é importante uma jurisdição em pleno e eficaz funcionamento como forma de afirmar o Poder estatal;

a jurisdição é o último recurso em termos de proteção às liberdades públicas e aos direitos fundamentais, [...]. Na realidade, o Estado, como um todo, deve se preocupar com tais valores, mas, quando ocorre a concreta agressão ou ameaça, mesmo provenientes do próprio Estado, é a jurisdição que garante o respeito a tais valores;

(iii)incentivar a participação democrática por meio do processo, de forma que o autor de uma demanda judicial, ou ainda o titular do direito debatido, mesmo que não seja o autor (por exemplo, os direitos transindividuais), possa participar, por meio do processo, dos destinos da nação e do Estado. O exemplo mais claro do que se afirma é a ação popular, por meio da qual qualquer cidadão pode desfazer ato administrativo lesivo ao Erário Público, bem como condenar os responsáveis ao ressarcimento. [...]. Por outro lado, nas ações coletivas, em especial nas que tutelam direitos difusos, determina-se a espécie de sociedade em que estaremos vivendo. (Grifo meu).

As divisões de escopo político acima citadas contêm o fortalecimento do Estado, a jurisdição como proteção dos direitos fundamentais e a participação democrática. Nesse sentido, somada a abrangência do escopo social e educacional, compreende-se que a jurisdição se estende para além do escopo jurídico; logo, não se trata apenas da aplicação concreta da vontade do direito.

E, prosseguindo nessa análise de jurisdição, Neves (2019, p. 81) destaca que uma das principais características da jurisdição é o caráter substitutivo,

[...] a jurisdição substitui a vontade das partes pela vontade da lei no caso concreto, resolvendo o conflito existente entre elas e proporcionando a pacificação social. Para Ovídio (2000, p. 41), o caráter substitutivo da jurisdição decorre de um pressuposto inerente à atividade jurisdicional, que é o fato do monopólio de jurisdição.

Se a lei é vigente e prescreve tal conduta, a jurisdição vai substituir a conduta adotada ao arrepio da lei. Um exemplo interessante é que “[...] havendo um contrato

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de empréstimo inadimplido, se sendo a vontade da lei o pagamento de tal dívida, a jurisdição terá condições de substituir a vontade do devedor (de não pagar) pela vontade da lei (realização do pagamento)” (NEVES, 2019, p. 81).

Cabe destacar que o Novo Código de Processo Civil (NCPC) manteve a separação do direito processual dividindo os procedimentos especiais em dois grupos: jurisdição contenciosa e voluntária. Nessa linha, ensina o ilustre processualista Humberto Theodoro Júnior (2018, p. 473):

A designação “jurisdição voluntária” tem sido criticada porque seria contraditória, uma vez que a jurisdição compreende justamente a função pública de compor litígios, o que, na verdade, só ocorre nos procedimentos contenciosos. Na demanda “jurisdição voluntária”, o Estado apenas exerce, por meio de órgãos do judiciário, atos de pura administração, pelo que não seria correto o emprego da palavra jurisdição para qualificar tal atividade. No entanto, a expressão é tradicional, não só entre nós, como no direito europeu.

Existe a jurisdição sem o caráter substitutivo, quando as partes buscam o Judiciário e não estão em litígio, conflito, pelo contrário, quando há vontade convergente na busca da solução. Neste caso, não haverá a incidência do caráter substitutivo, não se realiza a substituição da vontade das partes, atuando o Judiciário apenas para homologar um acordo entre as partes. Por exemplo:

Se parte da doutrina no âmbito do processo civil como Wache, Rosemberg e Andrioli entende que a finalidade precípua da jurisdição seria a aplicação do direito objetivo, para ZANZUCHI24 a realização do direito objetivo não é

uma atividade privativa ou específica da jurisdição.(NEVES, 2019, p. 82).

Tanto o administrador quanto o juiz julgam. O administrador, porém, formula um juízo sobre a própria atividade, o juiz, ao contrário, julga uma atividade alheia (CHIOVENDA25 apud SILVA, 2000, p. 28). A atualidade do problema conceitual da jurisdição deriva de duas questões:

A teoria constitucional moderna pressupõe, como princípio legitimador do Estado democrático, a divisão dos poderes estatais, que deverão ser exercidos por autoridades independentes entre si, de tal modo que as

24 Zanzuchi, Diritto processuale civile, v.1, p. 7, citado por Ovídio Batista p. 30.

25 Segundo Ovídio Batista da Silva (2000, p. 28), “[...] a doutrina de CHIOVENDA é aceita por

inúmeros processualistas, dentre os quais cabe destacar CALAMANDREI, UGO, ROCCO, ANTONIO SEGNI, ZANZUCHI e, dentre nós, particularmente, J.J. CALMON DE PASSOS, MOACYR AMARAL DOS SANTOS E CELSO BARBI”.

50 funções administrativas de gestão do próprio Estado, a função legislativa e a função jurisdicional sejam atribuídas a poderes mais ou menos autônomos. Este dogma da separação de Poderes, segundo o qual os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário haveriam de ser independentes e harmônicos entre si, tem origem próxima na doutrina de MONTESQUIEU, tendo sido universalizado pela Revolução Francesa. (SILVA, 2000, p. 24, grifo meu).

A partir da judicialização das demandas relativas ao direito urbanístico e à aplicação do planejamento urbano, é preciso compreender, à luz de Ovídio Batista, que o crescimento do Estado moderno está ligado ao monopólio da produção e aplicação do Direito, portanto à criação do Direito, seja em nível legislativo, seja em nível jurisdicional.

Nesse sentido, segundo Bobbio (2005, p. 8), “[...] os direitos não nascem todos de uma vez, nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem [...] ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências”.

Sempre haverá essa dinâmica de novas legislações e novas judicializações, não se tratando nesta tese de uma situação imutável. A vigência da nova ordem urbanística e de novos planejamentos é exemplo dessas dinâmicas próprias do Estado moderno; todavia o resultado dessa judicialização tem suas consequências.