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Estado, poder político e revolução 135

III. CAPÍTULO III: ANÁLISE DAS TESES DE SINGER 121

2. Estado, poder político e revolução 135

Neste terceiro capítulo centramos a discussão em dois aspectos relevantes do pensamento de Paul Singer em relação ao seu projeto de constituição de uma sociedade socialista a partir da expansão da economia solidária. Em primeiro lugar pretendemos precisar e analisar criticamente qual o papel atribuído pelo autor ao cooperativismo ou à autogestão produtiva em sua teoria de transição socialista. Em um segundo momento, discutimos a necessidade teórica do autor de eximir-se da questão do papel do Estado burguês, enquanto instrumento de organização da dominação de classe das diversas frações da burguesia sobre o proletariado e, ao mesmo tempo, das conseqüências da rejeição na necessidade da revolução política para a consumação da revolução social. Ampliando o debate, procuramos esclarecer a relação entre Estado, poder político, revolução social e controle dos meios de produção.

Nossa fundamentação teórica se apoiou nos textos de Marx e Engels, na crítica de Lênin ao revisionismo do pensamento de Marx pelos pensadores pequeno-burgueses e na exposição de Guillerm e Bourdet sobre as condições para a generalização da autogestão social. A síntese de nossa direção crítica em relação à posição teórica socialista de Paul Singer pode ser colocada da seguinte forma: “o pressuposto do cooperativismo [ou da autogestão] é o socialismo [...] e não o contrário, como propaga Singer” (MENEZES, 2007: 157).

Ancorado teórica e ideologicamente no socialismo utópico, Singer subverte a relação entre socialismo e cooperativismo e atribui ao último um papel de transformação social que este jamais pôde realizar historicamente.

Desse modo, a importância atribuída pelo autor ao cooperativismo baseia-se na expectativa de que a expansão do sistema cooperativista viabilize no interior da ordem burguesa a constituição de um futuro socialista, omitindo do processo de transição o seu conteúdo de luta de classes. Esta visão do autor nos remete a outro questionamento em relação à hipotética generalização pacífica do sistema cooperativista no interior do capitalismo. Enquanto houver uma sociedade dividida por antagonismos de classes, toda

evolução social de uma antiga sociedade para uma nova sociedade deve tomar a forma de uma revolução política, ou nos termos de Marx:

A condição de libertação da classe laboriosa é a abolição de todas as classes [...] a classe laboriosa substituirá [...] a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo e não haverá mais poder político propriamente dito, porque o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil. Enquanto se espera por isso, o antagonismo entre operariado e a burguesia é uma luta entre classe e classe, luta que, na sua expressão mais elevada, é uma revolução total. [...] apenas em uma ordem de coisas na qual não houver mais classes e antagonismos de classes, as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas (MARX, 2004a: 215).

Ainda, sobre o tom conciliatório da fórmula de transição socialista recuperada por Singer dos modelos utópicos socialistas do século XIX, vale lembrar a ressalva de Lênin que, sem considerar

a luta de classes, a conquista do poder político pela classe operária, o derrubamento da dominação de classe dos exploradores enfim, sem tocar nas contradições fundamentais da ordem burguesa o socialismo cooperativo [é] uma pura fantasia, qualquer coisa de romântico e mesmo trivial pelo seu sonho de que é possível transformar pela simples cooperativização da população os inimigos de classe em colaboradores de classe, e a guerra de classes em paz de classes (LENIN apud MENEZES, 2007: 157)

Desse modo, a generalização da autogestão, do cooperativismo ou da “economia solidária” pressupõe o enfrentamento real do problema do Estado, ou então, o enfrentamento teórico-idealista da questão nos moldes de Singer: simplesmente omitindo o significado do Estado burguês, ou centrando sua análise numa hipotética esfera econômica paralela ao modo de produção hegemônico dissociada abstratamente da esfera política e das relações de produção capitalistas, ou ainda, assumindo que dentro do ordenamento social burguês seja possível democratizar o Estado além dos parâmetros da própria democracia burguesa.

Diferentemente da fórmula de Singer do “desenvolvimento pacífico da democracia” (LENIN, 2007: 47), Marx propõe no Manifesto do Partido

Comunista como primeira etapa da revolução proletária “a constituição do

proletariado em classe dominante”, sendo o Estado sinônimo do “proletariado organizado como classe dominante”. Ou seja, a expropriação dos meios de produção requer a posse do poder político, o poder de opressão de uma classe sobre outra. No caso do poder proletário isto significa a ditadura da maioria sobre a minoria proprietária. Mas Marx vai além disso. Mais adiante, no prefácio de 1872, depois do episódio da Comuna de Paris, ele esclarece que: “não basta que a classe operária se apodere da máquina do Estado existente para fazê-la servir a seus próprios fins”. Isto quer dizer que a revolução proletária não tem como missão o aperfeiçoamento ou o crescimento monstruoso do Estado nos moldes da experiência soviética. Ao contrário, uma de suas missões é “quebrar a máquina burocrática e militar do Estado”, destruir o Estado burguês. Em suma, toda evolução social pressupõe em seu limite a revolução total, isto é, cabe a revolução “concentrar todas as forças de destruição contra o poder do Estado; impõe-lhe, não o melhoramento da máquina governamental, mas a tarefa de demoli-la, de destruí-la” (LENIN, 2007: 55).

Já a reformulação teórica de Singer da estratégia da luta socialista sugere uma revolução socialista intersticial, desenvolvendo-se lentamente nas entranhas da ordem capitalista. Mas Engels nos traz uma importante lição em relação ao papel do Estado como força que circunscreve os conflitos entre classes aos limites da ordem estabelecida:

O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; [...] é antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima

da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem” (ENGELS, 1982: 191).

Dessa maneira, é possível a generalização pacífica e gradual da autogestão a partir da formação social capitalista? É possível a expansão da “economia solidária” sem questionar a hegemonia política burguesa, ou o papel do Estado?

É necessário dizer que a defesa de Singer da concepção autogestionária, pacífica, herdeira de Owen, retirando da luta socialista seu conteúdo de luta de classes, parece cumprir, portanto, o importante papel de negação de questões fundamentais da teoria marxiana, em especial de seu caráter revolucionário. Somente neste contexto ganha sentido o esforço de Singer em revigorar a concepção socialista utópica, anterior a Marx, e transformar a luta pela autogestão produtiva em luta socialista.