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Fundamentos da economia solidária 68

II. CAPÍTULO II: ECONOMIA SOLIDÁRIA E SOCIALISMO 54

1. Introdução à economia solidária 54

1.2. Fundamentos da economia solidária 68

De acordo com a exposição do livro, o autor destaca três fundamentos da economia solidária: a solidariedade, os mecanismos de repartição dos ganhos das empresas solidárias e a autogestão. Em oposição à competição do modo de produção capitalista, a solidariedade econômica; a autogestão como antítese da heterogestão capitalista e por fim, a determinação democrática das retiradas e da divisão dos excedentes na empresa solidária diferentemente da definição salarial determinada pela oferta e demanda do mercado de trabalho ou do domínio dos principais acionistas frente aos demais sócios da empresa capitalista.

Comentaremos apenas dois fundamentos da economia solidária, a autogestão e a solidariedade, para destacar o nível de abstração utilizado pelo autor em sua exposição. No primeiro caso, ao tratar do fundamento autogestão, o autor reduz a discussão entre modos de produção a uma questão meramente administrativa – de técnica gerencial. De outra forma, Singer entende como a mais importante diferença entre o modo de produção capitalista (economia capitalista) e o suposto modo de produção solidário (economia solidária) a forma como são administradas as unidades produtivas das respectivas economias. Em oposição à heterogestão das empresas capitalistas a autogestão das “empresas solidárias”:

Talvez a principal diferença entre economia capitalista e solidária seja o modo como as empresas são administradas. A primeira aplica a heterogestão, ou seja, a administração hierárquica, formada por níveis sucessivos de autoridade, entre os quais as informações e consultas fluem de baixo para cima e as ordens e instruções de cima para baixo. [...] A empresa solidária se administra democraticamente, ou seja, pratica a autogestão (SINGER, 2002: 16- 18).

Singer transporta sua análise para o universo microeconômico e abstrai de sua argumentação o caráter histórico dos modos de produção, as

determinações das relações de produção e de propriedade e suas conseqüências nas relações de poder entre as classes sociais, e focaliza sua análise no debate entre ônus e bônus da gestão capitalista – heterogestão e a gestão solidária – autogestão.

A transferência da questão política para esfera econômica transformou o problema entre o modo de produção capitalista e socialista em simples questão gerencial, ou seja, no modo como as empresas são geridas, desconsiderando a relação entre poder político e modo de produção. A conseqüência teórica desta concepção socialista é que sua análise orienta-se para o universo microeconômico. É possível distinguir a natureza dos modos de produção através de uma análise microeconômica dispensando a sua relação com a política?

Já na sua análise comparativa entre a solidariedade e a competição econômicas, Singer refere-se aos modos de produção como formas de organização das atividades econômicas cujos resultados sociais podem ser a solidariedade e igualdade ou a competição e desigualdade, condicionados pelos respectivos princípios que regem cada modo de produção. Os princípios do modo de produção capitalista, o direito de propriedade individual aplicado ao capital e o direito à liberdade individual, geram como “resultado natural” a “competição e a desigualdade”, dividindo a sociedade entre a “classe proprietária” e a “classe que ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho” (SINGER, 2002: 10). Os princípios do “modo de produção” da economia solidária, a propriedade coletiva do capital e o direito a liberdade individual, produzem um “resultado natural” diverso: a solidariedade e a igualdade.

Vamos à concepção idealizada de sociedade organizada segundo os princípios solidários. O autor desenvolve sua argumentação sobre a distinção da economia capitalista e solidária de maneira abstrata, concebendo o que seria o seu funcionamento ideal da economia cujos princípios éticos seriam a solidariedade, o igualitarismo, a cooperação dos que se “associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar”. A apropriação da palavra-chave “solidária” teria o poder de transformação social:

Para que tivéssemos uma sociedade em que predominasse a igualdade entre todos os membros, seria preciso que a economia fosse mais solidária. Isso significa que os participantes na atividade econômica deveriam cooperar entre si em vez de competir. O que está de acordo com a divisão de trabalho entre empresas e dentro das empresas (SINGER, 2002: 9).

Neste discurso, o autor não faz distinção entre classes sociais, muito menos se refere à luta de classes: todos os “participantes na atividade econômica” devem cooperar ao invés de competirem. Como se as idéias de determinada época não correspondessem às relações de produção de determinado período histórico. É obvio que Singer não ignora a teoria marxiana, mas para expor didaticamente sua concepção solidária do funcionamento da economia ele abstrai certos determinantes da realidade social. Neste instante, basta dizer que “se toda economia fosse solidária, a sociedade seria menos desigual” (Ibid.: 10). Para transformar a economia e nos livrarmos dos “efeitos sociais” da competição, bastaria que ela fosse solidária. Mas qual o significado de cooperar na produção capitalista. As relações de produção capitalista exigem um tipo de cooperação que reproduza a relação capital-trabalho assalariado. A solidariedade econômica pressupõe outra forma de cooperação, diversa da capitalista.

Assim, a solidariedade econômica seria realizável desde que a economia fosse organizada igualitariamente entre os que se associam, substituindo “o contrato entre desiguais” pela “pela associação entre iguais”. Na cooperativa de produção – protótipo de empresa solidária – a mesma parcela de capital de cada associado proporciona igualdade entre os participantes nas decisões coletivas, garantindo que “ninguém mande em ninguém” (Ibid.: 9).

Dando prosseguimento a exposição abstrata do autor, Singer iguala empresários e empregados através das categorias “ganhadores” e “perdedores” realçando o caráter assimétrico e desigual do capitalismo: “o capitalismo produz desigualdade crescente, verdadeira polarização entre ganhadores e perdedores” (Ibid.: 8).

Portanto a solução para as contradições originadas pela lógica capitalista se daria pela transformação através da solidariedade econômica,

substituindo-se a desigualdade econômica pela associação entre iguais. Desta forma, a conversão de uma economia geradora de desigualdades sociais para uma economia solidária seria promovida pela própria solidariedade econômica. – numa espécie de raciocínio tautológico. Como estamos tratando de uma construção teórica idealizada, a troca do significante capitalista por solidária parece poder conferir à economia um novo sentido. No plano hipotético, se a economia fosse solidária eliminaríamos as desigualdades. Entretanto, grandes transformações nas relações de produção deveriam ocorrer para que o modelo correspondesse à realidade. Sendo os meios de produção privados no capitalismo, a sua transformação em cooperativas de produção autogeridas pelos trabalhadores associados segundo os princípios de democracia e igualdade requereriam profundas transformações no plano político e econômico20.

Em suma, Singer expõe dois modelos abstratos de funcionamento da economia, seus respectivos princípios e resultados sociais, apresentados como objetos isolados. Nesta exposição do autor, a transposição de um modo de produção para o outro não se dá historicamente, mas através de um artifício lógico, aparentemente de caráter pedagógico para destacar as diferenças entre os objetos: “se toda a economia fosse solidária, a sociedade seria menos desigual”; “para que tivéssemos uma sociedade em que predominasse a igualdade entre todos seria preciso que a economia fosse solidária em vez de competitiva”; “os participantes da atividade econômica deveriam cooperar entre si em vez de competir” e assim por diante.

20Marx adverte em 1866: “O sistema cooperativo, restrito às formas minúsculas brotadas dos

esforços individuais dos escravos assalariados, é impotente para transformar por si mesma a sociedade capitalista. Para converter a produção social em largo e harmonioso sistema de trabalho cooperativo, mudanças gerais se fazem indispensáveis.”