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Estados Construídos

No documento O teatro como Budô = o Aikidô em cena (páginas 88-95)

Capítulo II Aikidô EnCena

2.8 Estados Construídos

2.8.1 Shoshin

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Ilustração 14. Ideograma Shoshin. Mente de Principiante.

Mente de Principiante no Treinamento

A experiência é o verdadeiro conhecimento. Ela muda conceitos e dilata o espírito. O universo, a vida e as relações humanas encerram as mesmas verdades, e o amor é o poder orientador de tudo. Eis o significado do Aikidô. (SAOTOME, 1993:173)

Busca-se desenvolver e manter na prática do Aikidô Encena o conceito de Shoshin, uma Mente nova a cada dia, uma Mente de Principiante.

A prática do Shoshin busca o novo, o surpreender-se. É o olhar que não se vicia e encontra um frescor um respiro outro a cada ato e imagem mesmo que “já vista, registrada”. É o olhar que brilha, pois, mantém a curiosidade e o interesse, não se deixa anestesiar, ficar opaco quando aquele instante corriqueiro pode ser diferente, novo, que só acontece agora, agora, agora...

Essa mente de principiante está em constante busca, ela anseia, está alerta, não dorme, não se cansa. No teatro essa postura é almejada e desenvolvida a partir do treinamento. O treinamento possibilita o condicionamento

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físico, agilidade e prontidão corporal, mas principalmente a liberdade. Assim, Barba expõe:

“O treinamento permite atingir determinadas capacidades, determinados objetivos de condicionamento físico, mas, sobretudo, é o momento da liberdade que permite se jogar à descoberta sem pensar nos julgamentos”. (BARBA, 1994:73)

Sobre a mente de principiante, no Aikidô, evoca-se a imagem do faixa preta que após treinar, treinar e treinar sua faixa esgarçada volta a ser branca, como uma lembrança de que a técnica é viva. A base da técnica é fundamental para variações e sofisticação, para experimentar o elaborado é necessário antes ter domínio do básico.

O Aikidô praticado hoje não é o mesmo praticado por Morihei Ueshiba quando o criou. Os katas, mesmo sendo seguidos e preservados, sofrem uma mudança natural. A técnica vai sendo modificada, considerando a harmonia dos movimentos e sua eficácia. É um processo dinâmico.

O próprio fato de a arte marcial Aikidô ser praticada por ocidentais e não apenas orientais, já acrescenta uma modificação corporal e consequentemente na realização das técnicas. O biótipo do japonês é diferente do brasileiro. O quadril do japonês é mais próximo ao chão, o que propicia uma relação com o hara mais orgânico.

A mente de principiante na arte e na vida está receptiva a tais mudanças e aprendizado; não está inflexível a propostas e experimentos, o que poderia resultar em um raciocínio obstrutivo ao próprio crescimento.

Para o ator o treinamento desse estado é uma maneira de manter o frescor a cada encontro, a cada apresentação. É um treinamento constante, de perceber- se e perceber o outro, uma constante vigília em manter-se envolvido, presente no aqui e agora.

Assim, um dos objetivos trabalhados a partir das técnicas é evitar o automatismo das ações. No treinamento aquele que está no “piloto automático” pode se machucar ou pior, machucar o outro, pois está desconectado de si bem como da relação uke e nage.

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Não é possível agir antes da técnica, antecipar a movimentação. Do contrário, ela se torna ineficaz, o movimento é interrompido e há confusão entre aquele que age e o que reage ao movimento inicial, o ataque.

Da mesma forma, a movimentação atrasada, ativada após o início da técnica, é igualmente ineficaz. Pois ao invés de utilizar a energia de quem „ataca‟ ao perder o momento exato da movimentação, é necessário utilizar a própria força e não a força do oponente, como acontece no Aikidô, sendo assim, o embate torna-se inevitável.

Abaixo Ono Sensei aplica a técnica koshi-nague, utilizando a própria dinâmica de ação do uke.

Ilustração 15. Imagem de R. Miyajima. Técnica Koshi-nague. Ono Sensei, SãoPaulo_SP, 2010.

Há um momento preciso de contato, o De-Ai, o momento do toque, do encontro. É por frações de segundos que a técnica pode funcionar ou não. Em um koshi-nague se esse momento não é aproveitado, o nague terá que utilizar da própria força para a projeção do uke.

O movimento mecânico não possibilita a realização da técnica, assim como para o ator as ações sem presença e verdade, ou seja, sem o envolvimento,

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tornam-se monocórdias, sem nuances, sem a coloração da vida e da arte representadas e estilizadas em uma encenação.

A mente de principiante poderia ser associada ao princípio MA japonês, que significa literalmente Vazio, um espaço vazio. Um vazio que contém possibilidades. É uma espécie de „entre‟ e um „vir a ser‟, um virtual que pode ser atualizado ou não, um vazio, mas que pode sim ser preenchido.

Como nas palavras de Deleuze e Guattari:

Em geral, um estado de coisas não atualiza um virtual caótico sem lhe emprestar um potencial que se distribui no sistema de coordenadas. Ele recolhe, no virtual que atualiza, um potencial de que se apropria. (DELEUZE e GUATTARI, 1997:159).

Seria necessária outra dissertação, outra pesquisa para abordar de forma aprofundada o conceito MA, não sendo esse o objetivo aqui, Mas a ideia geral apresentada é o sentimento de que o caminho pelo qual você passa é mais significativo que o próprio fim. A jornada realizada neste caminho irá desempenhar o papel de formação, modificando dessa forma, o local de chegada.

Em um trabalho proposto e realizado em uma faculdade de Educação, o caminho, ou seja, a jornada a forma como fazer o trabalho é mais enfatizada que o resultado estético alcançado.

A qualidade estética e artística a ser construída, por meio dos atores, bailarinos e performers, é almejada, mas não em detrimento da falta de uma abordagem pedagógica no treinamento ao lidar com o outro. Uma condução em que há imposição e um mal estar entre os envolvidos, um clima de competição e insegurança, não será benéfica aos participantes mesmo que para o público haja alguma fruição estética.

A vivência de um teatro como Budô faz acreditar que essas nuances entre emoções e sentimentos em cena, são absorvidas por parte do público. Não apenas o que se pretende apresentar na encenação, mas também o que é sentido e transmitido pelos atores, sem que estes tenham consciência dessa comunicação:

Há vários outros dados que corroboram a ideia que apresentamos sobre empatia. É o caso, por exemplo, de estudos em que indivíduos normais,

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cuja tarefa era observar fotografias com expressões emocionais, ativavam de forma sutil diversos grupos musculares do seu próprio rosto, precisamente os grupos musculares que seriam necessários para executar as expressões emocionais que estavam observando nas fotografias. Os participantes não se davam mesmo conta de que os músculos do seu próprio rosto estavam se preparando, como se se tratasse de um espelho, para executar as expressões da fotografia caso fosse necessário. Embora os participantes não tivessem consciência desse fato, foi possível registrar alterações eletromiográficas nos músculos do rosto”. (DAMÁSIO, 2004:128).

O valor estético de uma obra, na proposta seguida no Aikidô EnCena terá mérito se o indivíduo dessa criação, atores e público por consequência, forem valorizados em seu aspecto humano e sensível.

O sentimento de MA, e suas possibilidades, propõe a prática da Mente de Principiante. O interesse constante ao novo, o sentimento de aprendizado, sem condicionamento, é uma atitude que busca no percurso a formação do ator e sua criação artística, juntos.

2.8.2 – Ma-ai

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Ilustração 16. Ideograma Ma-ai.

O termo Ma-ai literalmente significa „a distância ideal‟ para o acontecimento da técnica. O ma-ai está em constante movimento, visto que as técnicas exigem

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isso. Assim como cada praticante possui um ma-ai que é alterado a cada novo parceiro de treinamento.

Esse intervalo, ma-ai que antecede o contato, o de-ai, é trabalhado no Aikidô e no Aikidô EnCena de maneira a abranger a técnica e o relacionamento entre os praticantes.

Ou seja, na técnica esse espaço do ma-ai não pode ser distante, pois assim o contato entre os praticantes não acontece. E o deslocamento exigido para que haja o contato torna o uke ainda mais vulnerável. E tampouco pode estar muito perto a ponto de um invadir a cinesfera do outro. O espaço curto impossibilita a movimentação e também torna o praticante vulnerável.

Nesta prática o conceito é desenvolvido por meio de exercícios e técnicas e o entendimento dessa distância em um segundo momento é deslocado para a cena como conceito chave da relação entre atores e público40.

O ma-ai utilizado no Aikidô EnCena possui também a função de ajustar as relações e compreender o outro, em sua função e parceria.

A atriz e bailarina Roberta, relata sobre sua compreensão ao praticar o ma- ai, no Aikidô EnCena, e a associação desse entendimento na cena e na vida:

Quando conseguimos alcançar uma escuta, uma sensibilidade apurada para entender e lidar com o MA-AI (distância ideal) conseguimos estabelecer a relação com o outro sem esforços demasiados. No caso da cena, estabelece-se a tensão ideal entre os atores, entre eles e o público, o espaço. No corpo a tensão ideal se dá na musculatura, na respiração, na organização óssea, na modulação dos estados psicofísicos. Receber o toque do outro e agir, deixando com que o parceiro faça sua parte. O exercício fica pesado quando faço o movimento pelo outro. Assim é na cena e na vida. Tenho que fazer aminha parte e dar a oportunidade para que os outros façam as suas.

Não fazer de mais – não fazer de menos.

Roberta, atriz e bailarina. 20/10/09. Sala de Práticas Corporais, ED-03, Faculdade de Educação, Unicamp.

O ma-ai muito próximo causa atritos. Ao invadir a cinesfera do outro de maneira arbitrária, há a invasão do espaço e privacidade do outro, gerando o desgaste que essa proximidade ocasiona. Assim, existem diferentes ma-ai para

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cada relação: o ma-ai com a Shidosha é um, entre os alunos é outro, entre os artistas e o público é outro.

O ma-ai praticado em um teatro de rua é diferente do encontrado em um palco italiano. A relação estabelecida é dosada. Para alguns esse limite é natural, praticado de forma inconsciente. Mas um público que se sente desconfortável ao ser abordado pelo ator em cena por determinado tipo de teatro, por exemplo, está dessa forma sentindo-se invadido em sua cinesfera, ou seja, em seu espaço.

A prática desenvolve em alguns artistas essa habilidade em perceber a distância física e simbólica que cada público permite.

O treinamento do Aikidô trabalha o ma-ai constantemente. Os aikidoístas possuem um ma-ai mais distante do sensei, pois há o respeito e hierarquia. A relação de confiança e afeto não precisa ter um ma-ai muito próximo, o que gera frequentemente atritos.

O ma-ai como „a distância ideal‟ pede diferentes ajustes a cada relação. Então, transferindo a prática do Aikidô para o âmbito artístico e também cotidiano, o ma-ai vai além de um posicionamento estratégico a se obter a melhor reação defensiva e melhor ação ofensiva.

O trabalho desenvolvido no Aikidô EnCena não enfatiza o combate, mas sim o encontro, a relação e a troca em movimento.

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