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CAPÍTULO 3 O JOGO DE ESTAR EM CENA: ALGUMAS INQUIETAÇÕES

3.3 Estar em cena: performance no cinema

Segundo Carlson, a performance surgiu primeiramente como um termo importante na teoria da linguística. O autor afirma que John Dore e R. P. McDermott sugerem que falar não é um simples “conjunto de proposições transmitidas do codificador para o decodificador. As pessoas usam a fala racionalmente para construir os próprios contextos em termos do que elas compreendem o que estão fazendo e sobre o que estão falando umas com as outras” (DORE; MCDERMOTT; apud CARLSON, 2010, p. 70). “Qualquer que seja sua função estilística, poética e “estética”, o diálogo é primeiramente um modo de práxis que coloca em oposição as diferentes forças pessoais, sociais e éticas do mundo dramático” (ELAM apud CARLSON, 2010, p. 86).

No caso do cinema, Cláudio Bezerra defende que é preciso compreender o que está aquém e além do documentário, ter conhecimento de como ele foi produzido, quais dispositivos de filmagem foram utilizados e como a montagem foi constituída, assim como considerar a recepção do espectador. “Como um campo específico da arte, a performance não se realiza na tela, mas na apresentação “ao vivo” de um corpo-mídia virtual em situação de copresença com um público” (BEZERRA, 2009, p. 69).

Deste modo, o pesquisador afirma que o corpo-mídia da arte da performance, no contexto midiático audiovisual, desaparece fisicamente, mas ressurge “com uma outra natureza, [...] grávido de virtualidades existenciais e, como simulacro, traz consigo algo da presença física do corpo flagrado no momento de sua performance diante da câmera” (BEZERRA, 2009, p. 71). Não se trata, pois, de uma reprodução ou uma representação de algo existente, mas o corpo performático é produzido a partir de circunstâncias de filmagem e montagem e tem autonomia na tela capaz de emocionar o receptor cada vez que a audiência se prontificar a realizar uma interlocução com a imagem.

Na condição de um espectador “interatuante”, eu entro em comunhão com a sua fala e os seus gestos, reconstituindo e atualizando a performance inicialmente construída na filmagem e depois moldada na montagem pelo diretor. A personagem documentária contemporânea é, portanto, performática. [...] O

documentário moderno coloca o sujeito em cena, fazendo-o construir a asserção na forma de diálogo ou da entrevista, mas ainda o submete a uma asserção generalizante do tema ou argumento, articulado não mais por uma locução e sim no agenciamento das falas, ou seja, o sujeito continua atrelado ao tema. No contexto contemporâneo, a função do personagem é a de construir ou propor um filme a partir de uma auto-mise en

scène relativamente espontânea de sua vida privada, ou seja, a

subjetividade emerge como a principal instância narrativa do filme, mas como fluxo contínuo de modos de ser e não uma categoria estanque de catalogação social (BEZERRA, 2009, p. 72)

Elen Döppenschmitt (2005), na dissertação Um estudo da performance na

oralidade do cinema: registros da voz na linguagem documental, esclarece que o texto

fílmico pertence a uma sistema dotado de recursos e tecnologias que servem para explorar a voz. A captação da mesma, durante uma fala, um canto, um poema, representa um avanço no sentido da percepção de sons corporais, uma vez que um novo sentido fílmico é gerado a partir da coexistência com imagens, luz, movimentos, paisagens e outros aspectos do espaço cinematográfico.

O cinema sonoro constrói, assim, uma linguagem própria que mistura sons e imagens em composições de cena, no processo de criação de sentido, na filmagem, na montagem, na direção dos atores, na estética da cena, na exploração intensiva de um destes recursos ou na somatória de todos (DÖPPENSCHMITT, 2005, p. 49)

A voz permite que, no espaço cinematográfico, ela se autoconstrua. Possibilita a expressão do conteúdo da obra e a recriação do mesmo com um olhar poético, somando novos conteúdos. O lugar de onde essa voz fala é determinante, segundo Döppenschmitt, até quando o personagem se encontra em silêncio. A pesquisadora afirma que se a entrevista é uma das características primordiais do documentário quanto à narrativa, o método permite que o diretor chegue até o entrevistado por meio de perguntas. Nessa interlocução, a presença do imaginário do questionador se faz presente na condução da narrativa ou na escolha de planos e sequências optados para compor a estética da obra. A voz no filme, portanto, permeia em dois espaços: na voz do personagem ou no corpo, e na voz na paisagem ou a voz na narrativa.

Para Döppenschmitt, definir o próprio corpo do personagem como um dos espaços da voz é tratá-lo como corpo-mídia. “Podemos dizer que a voz no personagem é um dos primeiros índices de oralidade que podemos encontrar na composição imagética do filme que se expressa em sua mais mínima unidade que é o plano” (DÖPPENSCHMITT, 2005, p. 50). No entanto, é preciso compreender que a voz no corpo do personagem define tanto o quadro do filme quanto o espaço extra-campo, pois mesmo quando o receptor não consegue visualizar o corpo do personagem, a sua voz o traz presente, garantindo um nível de oralidade possível de ser detectado pela audiência.

A maneira como a voz cria certa organização espacial no corpo se deve à seleção de informações que lhe são válidas, sejam essas familiares, instigantes ou provocadoras e que despertam sensações em relação às suas memórias e imagens mentais. Desse modo, a voz que acompanha o corpo seguramente irá interagir com o ambiente criado no quadro fílmico

proporcionando uma interpretação específica

(DÖPPENSCHMITT, 2005, p. 50-51)

A autora lembra que o estudioso das poéticas da voz Paul Zumthor dizia que a voz e o gesto correspondiam a uma verdade, pois são elas as responsáveis pela persuasão em um processo comunicativo. A voz no corpo, conforme Döppenschmitt, apresenta valor específico porque confere a autoridade do texto documental por meio de improvisação e memorização do personagem, pois permite que as imagens de seu rosto e gesticulações sejam priorizadas. A câmera pode, portanto, ser considerada um canal que abriga o corpo e é através dele que a voz pode ser ouvida.

Do mesmo modo, outros espaços, como roteiro, canções e direção podem ser carregados de oralidade. “Não importa se estamos diante de um narrador ao vivo ou de um personagem em um filme, criado por sua vez por um outro “narrador” (o cineasta); o que nos importa é a possibilidade de estarmos diante de experiências que podem e querem ser comunicáveis” (DÖPPENSCHMITT, 2005, p. 54). Quando ainda não era possível unir voz e imagem, a voz over ou a palavra escrita tentavam explicar o que era filmado. Posteriormente, o cinema pode se tornar profundamente sonoro, constituindo- se em discurso indireto livre, coletivo e impessoal.

É apenas posteriormente e, através da identificação da mistura de sistemas (visual, sonoro, oral, poético, entre outros) na construção de narrativas cinematográficas que, surge no documentário uma maior liberdade de propostas estéticas que, se por um lado continuavam com a preocupação com o real, por outro deram mais ênfase a que esse “real” não tivesse relação com a ideia de representação, mas sim com uma forma específica de narrar. Realçar a capacidade discursiva do indivíduo filmado é, pois, menos a busca de uma verdade naquilo que se diz que o registro de uma maneira de contar que

valem de desejos do próprio narrador-cineasta

(DÖPPENSCHMITT, 2005, p. 54-55)

O encontro entre personagens e diretores resulta em um acontecimento, que se exprime nos enunciados, nos corpos, nas imagens. Os universos do poético e da fábula embora não estejam presentes em termos de imagens, podem ser conferidos por meio da elocução do personagem. Deste modo, a paisagem que é construída na obra fílmica não é apenas constituída por imagens, mas por referências contadas. Döppenschmitt ressalta que o que importa hoje não é mais o conteúdo ou a verdade, mas o fato da história ser contada. A autora chama atenção para o que importa em seu estudo é pensar a performance como processo de construção criativa. É preciso, portanto, compreender a produção de sentidos derivada do corpo, manifestado por meio de expressões e gestos, que comprovam que tudo em nós tem significado, pois mesmo quando estamos calados, jamais paramos de nos comunicar.

A singularidade da fala de cada entrevistado diante da câmera, as diferentes visões de mundo que são expressas, seus silêncios, suas atitudes, enfim, sua performance, tudo contribui para evidenciar as peculiaridades de cada personagem. Eles deixam de “representar” uma categoria social para representarem a si mesmos (D’ALMEIDA, 2006, p. 7)

Nesse sentido, para Döppenschmitt, do mesmo modo que todo movimento corporal é também do mundo visual e tátil, a voz é um acontecimento do mundo sonoro. Esses mundos se misturam e o que há é a visualidade embutida da voz que carrega o acontecimento fílmico. “Assim, podemos dizer que o lastro fundamental entre corpo, voz, performance e filme correspondem a um processo de comunicação que não está

restrito apenas ao significado do movimento” (DÖPPENSCHMITT, 2005, p. 68), que transforma o corpo em corpo-mídia.