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CAPÍTULO 4 – SENSIBILIDADES EM CENA: JOGOS, MEMÓRIAS,

4.1 Método de análise

Após discorrer sobre as zonas limítrofes entre ficção e não-ficção, estudar a escuta sensível de Eduardo Coutinho nos diálogos com seus entrevistados durante os encontros destinados à filmagem e discutir a noção de performance no cotidiano e no documentário do cineasta, nos dedicamos neste capítulo final a analisar como o acontecimento fílmico - envolto pelos dispositivos de filmagem, aparatos técnicos e montagem e pela sensibilidade que o diretor demonstra em ouvir o entrevistado - promove o processo de transformação criativa de pessoas comuns em personagens fabuladoras. Situação essa, esboçada no comportamento do indivíduo em cena, que eleva a força expressiva do entrevistado, confere ao filme um frescor, uma naturalidade, e determina o engajamento do espectador num experiência em que noções como verossimilhança, crença e melodrama aparecem como agentes estéticos.

Para realizar a análise fílmica de Jogo de Cena, tomamos como referência a técnica de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, autores do livro Ensaio sobre a Análise

Fílmica (1994), que defendem o exercício da descrição (desconstrução) e interpretação

(reconstrução) como requisito obrigatório no trabalho de análise. A prática, segundo eles, desenvolve o analista, “recolocando em questão suas primeiras percepções e impressões, conduzindo-o a reconsiderar suas hipóteses ou suas opções para consolidá- las ou invalidá-las” (GOLIOT-LÉTÉ; VANOYE; 1994, p. 13). No nosso caso, ao optar por essa atividade, objetivamos reforçar a ideia de que o estilo de Eduardo Coutinho, sobretudo sua escuta e seus dispositivos de filmagem, provoca a transformação de indivíduos comuns em personagens fabuladoras. Sendo assim, na descrição, nosso intuito foi de contextualizar Jogo Cena desde a produção até o material final. Listamos cenas e calculamos as sequências a fim de identificar cada detalhe do texto fílmico. Na interpretação, analisamos de que forma a performance se faz presente em Jogo de Cena, avaliando, por exemplo, como as entrevistadas e o diretor encenam jogos de construção de personagens que se materializam na enunciação cinematográfica.

De acordo com Vanoye e Goliot-Lété, analisar um filme implica que se veja e reveja a obra, observando sistematicamente. Os autores argumentam que para cumprir o trabalho de análise é preciso averiguar os elementos da obra, sendo necessário despedaçar, desunir, extrair, destacar, descosturar e dominar materiais que não são notados individualmente a “olho nu” enquanto se ocupa o papel de espectador comum, que costuma assistir o filme e avaliá-lo em sua totalidade. Por tal motivo que anotar, decupar e descrever as sequências são considerados atos fundamentais para a prática de análise, pois esses exercícios levam o crítico a se desfazer do papel de espectador comum. Dessa forma, assistimos Jogo de Cena no cinema e na televisão por diversas vezes na tentativa de esmiuçar os planos, os personagens e adentrar em novas “camadas” de sentido presentes na obra.

Outra necessidade é a de estabelecer elos entre esses componentes isolados para entender como eles estão conectados. Com esse intuito, interpretamos gestos, expressões faciais, silêncios, entonação de vozes e posturas das entrevistadas e do questionador, no caso, Coutinho; além de avaliar dispositivos, aparato cinematográfico e montagem. Vanoye e Goliot-Lété alegam que ao tentar associar os elementos de um filme, o analista reconstrói para que a obra exista, criando, assim, uma espécie de ficção sobre a própria obra. Mas, é preciso por limites nessa “invenção”, respeitando os critérios de não reconstruir outro filme, uma fabulação pessoal, a fim de superá-lo. A interpretação é sua visão de mundo, é apenas uma visão possível. O filme, portanto, para os autores, deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada do trabalho de análise.

Com esse objetivo, propomos a seguir a análise do filme Jogo de Cena, descrevendo e interpretando os elementos que provocam o processo de transformação criativo de pessoas em personagens. Além do objeto de estudo em questão, levamos em consideração ainda os comentários de Eduardo Coutinho, do produtor executivo João Moreira Salles e do crítico e pesquisador Carlos Alberto Mattos na faixa comentada do DVD do filme, algumas entrevistas que o diretor concedeu antes, durante e após a divulgação do documentário, estudos e livros que também se dedicam ao estudo da obra fílmica do cineasta e, por fim, também tentamos compreender o processo de gestação de

Jogo de Cena, avaliando como e em quais condições a obra foi pré-produzida, realizada

Por isso que sugerimos nos capítulos anteriores o estudo do cinema da asserção pressuposta, da escuta sensível de Coutinho e da performance nos seus documentários, tornando-nos mais aptos e embasados para interpretar o estilo composto pelo diretor. Consideramos a proposta de descrição e análise sugerida por Vanoye e Goliot-Lété e averiguamos os componentes do plano, como duração, enquadramento, ângulo de filmagem, se ele se encontra fixo ou em movimento, escala (posição da câmera em relação ao entrevistado), profundidade de campo, situação do plano na montagem e definição da imagem, passagens de planos, trilha sonora (diálogo, música), relações entre sons e imagens e ambiente de gravação.

Elegemos três personagens que julgamos as mais significativas para Jogo de

Cena, pois entraram na dinâmica sugerida por Coutinho. Embora a maioria das

personagens selecionadas na pré-entrevista do documentário e escolhidas para a gravação do filme apresente histórias de vida importantes, acreditamos que três delas se entregam à proposta do diretor - conforme os aspectos classificados por Ryngaert como essenciais para participar do jogo e as condições citadas por Cláudio Bezerra para ser personagem coutiniana. Aleta Gomes Vieira, Débora Almeida e Sarita Houli se engajam no “jogo” proposto pelo documentarista, evidenciando, inclusive, o reforço da necessidade do próprio Eduardo Coutinho se “inventar” no embate entre entrevistador e entrevistado. O que nos interessa nessas personagens é o fato de que o próprio Coutinho é “contaminado” pela necessidade de performatizar – ainda mais do que ele já performatiza no quadro fílmico, uma vez que é constante a aparição, por exemplo, de sua voz durante as entrevistas que realiza. Há, aqui, na enunciação fílmica, um encontro de sensibilidades – a dos indivíduos com a do realizador – sendo, portanto, um momento sui generis para compreender as lógicas performáticas em ação.

Obviamente essas personagens apresentam personalidades diferentes, mas, de modo geral, são espontâneas, improvisam, ouvem o outro interlocutor, descontraem o público e narram bem uma história, mesmo que ela não seja sua ou verdadeira. Escolhemos duas personagens anônimas e uma atriz desconhecida, conforme consta nas análises ao final deste capítulo.