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As estatísticas educacionais, como outros conjuntos de saberes que lidam com sistematização de situações humanas através de números, fazem parte de uma tentativa de entender a realidade estabelecendo as relações de causalidade entre fenômenos distintos. A partir da constatação de acontecimentos mais ou menos repetitivos, a governamentalidade nos conduz a estabelecer categorias para apreendê-las em formatos fixos e, com o uso deles, tentamos explicar realidades, interferir nas condições de surgimento ou desaparecimento do fenômeno que queremos entender. Contudo, esse tipo de explicação exige que tenhamos presente que a prática da escolha das categorias e a criação de implicações entre elas estão além do próprio fenômeno e das relações numéricas. A fabricação de padrões, nexos causais e regras de raciocínio são frutos de regimes de verdade (POPKEWITZ; LINDBLAD, 2001). As construções estatísticas funcionam como apontamentos de prioridades, interagem com outros saberes, outros discursos, outras representações e passam a reger

[…] a maneira segundo a qual constituem-se problemas sobre os quais se deve agir e ordena os objetos e características das pessoas sobre as quais se deve agir, as relações por meio das quais causas são determinadas e problemas remediados e os caminhos para as próprias possibilidades de mudança. (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 112).

As estatísticas buscam normas, padrões, encontros entre momentos, pessoas, instituições e causalidades. Ao mesmo tempo em que são utilizadas para dizer algo sobre uma coisa, servem para localizar e distribuir elementos no tempo e no espaço. Via de regra, esses momentos de interligação pelas estatísticas têm como ponto máximo a sua utilização para definir problemas e soluções. Ou seja, como já podemos supor, ela não é “neutra”, isto é, nunca parte de um total desconhecimento de um fenômeno. A percepção de que alguma coisa esteja ocorrendo faz surgir uma hipótese causal que lhe explique. Disso, partimos à elaboração das categorias, das divisões, de elementos que entendemos estar conectados. Diante de

[…] representações que são em parte numéricas, como também avaliáveis, uma vez que as percentagens, tabelas, gráficos, tendências e comparações numéricas são essências ao exame minucioso e crítico por parte da autoridade numa sociedade. (ROSE apud POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 113).

As estatísticas exercem uma função prática na governança de situações. As informações surgem como “dados”, que instigam à comparação de categorias. Um “dado” passará a ser relacionado com outros “dados”, os números passam a ser comparados e passamos a fazer afirmações de verdade. Ousamos dizer que, nesse processo, buscamos a realidade como “coisa dada”, mas em uma perspectiva genealógica podemos ver esse processo como mais uma tecnologia de poder na produção do que temos por realidade na criação de sujeitos e modos de subjetivação. Assim é que relacionamos, por exemplo, o número de anos passados na escola com o salário atual das pessoas e o número de televisões em casa. “Mediante […] estatísticas educacionais, tanto as ambições educacionais como as análises de educação são constituídas por tabelas e comparações de números.” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 115).

Outro elemento que está presente nas afirmações estatísticas é a figura do “desvio”. As variações são analisadas em comparação com uma média, que passa a designar o que é o “normal”. E é esse desvio que passa a receber a atenção das práticas, em busca de “solucioná- lo”, de pôr a situação dentro das normalidades. As estatísticas, nesse momento, passam a ser base de legitimação de ações, “é a linguagem que atravessa as declarações do Estado, dos profissionais e das fundações sobre os professores e suas práticas educacionais.”

(POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 116). A estatística ganha tamanha fé que “oferecem uma liga de uniformidade e confiança em torno do qual os objetos são contados, o que possibilita que ordens de magnitude não afins sejam relacionadas entre si para estabilizar

o que está em fluxo” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 117). O poder sobre a vida

precisa de subsídios para se manter, e o disciplinamento individual e o biopoder fornecem elementos para constituirmos a série de informações que vão contribuir para a formação da média da população que deve ser governada. A estatística está a serviço do biopoder, como substrato de suas ações.

Os números estão postos de maneira a garantir que possamos “ver” as possibilidades de causas, e, por consequência, a maneira de intervir no caos, a mensurável passa a apresentar aspectos de mensurabilidade e coisas díspares passam a ser correlacionadas. Daí que “as populações emergiram como um dado, ou campo de intervenção, e como um objeto de técnicas governamentais” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 118). A organização da sociedade moderna baseia-se na busca do estabelecimento das populações, que passam a integrar grupos distintos sobre os quais é possível agir.

As teorias da probabilidade passam a desenvolver uma “contenção do acaso” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 118), as alterações pretendidas visam reverter o processo alterando as condições de sua existência, nem que para isso tenhamos de investir nas mudanças do modo de ser dos indivíduos. “Além do mais, os números não são meros números, mas circulam num campo de produção e reprodução cultural” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 119).

A cada categoria, buscamos a padronização e a estabilização de fluxos, desenvolvemos a restrição dos eventos a um campo de objetividade. Nesse sentido, a estatística “padroniza o sujeito medido e o ato de troca não depende mais das personalidades ou do status dos envolvidos” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 120), porque passamos a operar com “indicadores”. E “por meio de comparações educacionais numéricas constroem-se também ideais e fracassos educacionais.” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p 120). A fabricação desses ideais compõe uma meta a ser alcançada, uma produção incorpórea de força tão grande que passa a ser um objetivo; não obstante terem sido produzidos, interferem nos modos de intervir na produção de discursos. As implicações estatísticas não são de “causação analítica, mas antes textual.” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 121). Elas ajudam a levar a cabo a administração sobre as populações que necessitam de intervenção. Várias magnitudes tornam um indivíduo localizável: sua escolarização é comparada com salário dos pais, região em que vive, alimentação na infância, divórcios, e o que mais se achar conveniente. Pode-se

estabelecer um “contínuo de valores que vincula economia, cultura, sociedade e educação.” (POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001, p. 124).

O discurso das estatísticas “produz um sedutor efeito como se contra eles [os números] não se tivesse argumentos. […] Enfim, os números justificam uma necessidade”. (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 145). Em ligação com as técnicas disciplinares subsistentes nas técnicas de biopolítica da estatística,

[…] a quantificação vem a ser um modo de esquadrinhar e ordenar a vida da população. Ao serem catalogadas condutas de um grupo de indivíduos que possam ameaçar a vida ou a rotina de uma população, são lançados programas com o objetivo de trazer à ordem esse grupo desviante. (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 148).

O que gostaríamos de salientar é que as estatísticas estão presentes em quase todos os campos do conhecimento humano. Geridas para compreender os fenômenos, passam a ser construídas sobre categorias, que, por sua vez, são balizadores que buscam a curva dos acontecimentos, o trajeto esperado, a média, que utilizamos para definir um grupo ou uma característica qualquer. As ações baseadas nessas produções estatísticas a acompanham, e por isso não são neutras, uma vez que seu início está em categorias escolhidas, em olhares dirigidos de acordo com interesses. Elas dependem de um regime de verdade que se expresse através de nexos causais postos, e pelos quais a reafirmação pode ser efetuada pelos números, que deixam de ser neutros e passam a significar escolhas de discursos.

O biopoder está presente, tal como vínhamos falando sobre o poder, espalhado no corpo social, e é fator importante para o estabelecimento das condições de possibilidade dos discursos, das falas, dos regimes e dos efeitos de subjetivação no presente. Ao lado da disciplina, o poder sobre a vida passa a constituir-se no decorrer das ações de normalização e estabelecimento das mediações e normalizações nas práticas escolares. No plano das populações é o que a regulamenta e suas implicações produzem no indivíduo isoladamente, de forma que dialogam e estabelecem os regimes de verdade. Na biopolítica,

[…] vai se tratar sobretudo […] de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar, igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, […] mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais, […] no que eles têm de global. (FOUCAULT, 2010a, p. 207).

As afirmações estatísticas, consideradas como a chave de leitura das populações, é um dispositivo de exercício de biopoder. Quando uma instituição produz afirmações sobre

causas, relações de consequência, definição dos sujeitos evadidos, apropriando-se de um lugar que cria as diferenciações, ou categorias distintas entre os indivíduos, em geral elas vêm acompanhadas de análises que incitam a considerações sobre anormalidades, desvios padrão e as possibilidades de corrigi-los. Esse processo de normalização é conduzido pelas tentativas de salientar o que se considera mais valorado e desestimular a reprodução de coisas distintas disso: o indivíduo classificado como evadido é um desvio padrão que merece retornar a sua normalidade.

Estatística, biopoder e governamentalidade operam de maneira a produzir modos de subjetivação que tomam o indivíduo como objeto para torná-lo adequado às relações de poder estabelecidas nos níveis possíveis, desde as mais elementares entre indivíduos até as ações de Estado, traduzidas sobremaneira em suas leis, suas políticas e sua maneira de organização. Nesse sentido, podemos dizer que a

[…] governamentalidade […] é marcada, então, por um conjunto de ações, articuladas numa maquinaria de poder, que consiste em exercer um controle sobre os indivíduos, através do trabalho sobre as populações nas quais esses indivíduos estão inseridos, de modo que eles se acreditem cidadãos livres, participativos e peças centrais no jogo democrático. (GALLO, 2012, p. 59).

Ora, o que são as políticas nacionais que preveem e almejam que todos estejam no lugar certo, na hora certa, fazendo a coisa certa, isto é, estejam na escola, senão a maquinaria de um poder que, controlando os indivíduos através do trabalho sobre as populações de que fazem parte, para que possam estabelecer suas relações de acordo com o que acreditem ser guiados pelas prerrogativas de liberdade, de participação e de democracia como valores a serem conservados em todas as instâncias? Percebemos que os conceitos de Foucault estão em constante diálogo e se sustentam como elementos que irrompem uns nos outros: os regimes de verdade e os discursos estabelecem os domínios de verdadeiro e falso, o disciplinamento busca a produção de corpos dóceis e tem sua correspondência nas práticas do biopoder sobre as populações e conduzem, como um todo, às maneiras como ocorrem as produções modos de existência de acordo com determinada racionalidade. É nesse sentido que julgamos que tais conceitos possam nos auxiliar na análise sobre os discursos de evasão escolar, já que a produção do conceito de aluno evadido é perpassada pelas relações de disciplinamento, biopoder e modos de subjetivação que se implicam nas maneiras de ação da governamentalidade nas escolas.

No contexto biopolítico, em que as questões de intervenção se dão pela aglomeração dos indivíduos em populações, faz sentido o destaque e a projeção que as estatísticas recebem.

Na necessidade de criar categorias de aglomeração ganha espaço uma ciência que estabelece a população, os limites da análise e delimitações das populações. Dela, tem por função extrair a média, estabelecer as recorrências, agrupar as causas, incidir sobre a previsibilidade dos eventos. As estatísticas são utilizadas a favor das questões de biopolítica. Por ocasião das tentativas de correição pelas normas, os indivíduos passam a ser sujeitos na medida em que se convertem em ponto de atuação das tecnologias que os façam retornar aos padrões da média.

5 OS EFEITOS DE PODER E SUBJETIVAÇÃO DOS DISCURSOS DE EVASÃO NOS CURSOS DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA

Nos capítulos precedentes desta dissertação, fizemos um apanhado metodológico e teórico sobre a nossa pesquisa, no qual discorremos sobre as possibilidades e recortes de uma pesquisa genealógica sobre evasão escolar no Ensino Superior. Como locus de pesquisa, apresentamos algumas considerações gerais acerca dos Institutos Federais, suas características principais e sua inserção no cenário educacional brasileiro.

Nosso objetivo principal consiste em analisar e problematizar que possíveis efeitos de poder e subjetivação podem estar sendo produzidos pelos discursos de evasão escolar nos cursos de Licenciatura em Matemática dos campi Bento Gonçalves e Caxias do Sul do IFRS. O modo mais adequado que encontramos de alcançá-lo foi considerar as falas de docentes e discentes desses cursos e articulá-las com as disposições legais que regem as duas graduações.

Na sequência, apresentaremos os principais resultados que obtivemos ao considerar, de um lado, os discursos que percebemos, e, de outro, os aportes teóricos na perspectiva foucaultiana sobre poder, biopoder, biopolítica, efeitos de poder, modos de subjetivação e disciplina. Nesse sentido, nosso trabalho aponta para a existência de três grupos de discursos principais nesses recortes: o de que o curso é difícil, o que considera o uso que o aluno faz dele e o que tenta considerar das prioridades do aluno frente à Licenciatura em Matemática.

Esses três grupos de discursos principais permitiram-nos falar, em seguida, das maneiras como articulam-se e como são capazes de fazer surgir expectativas sobre a conduta dos alunos, identificar os desvios na população formada por eles e implicar em ações de correção, tomando-os como objeto de ações biopolíticas. Dividimos o texto de forma a apresentar os discursos e seus efeitos de poder nas mesmas subseções, consideradas as questões que cada explicação sobre evasão faz surgir, tais como a série de verdades produzidas sobre o aluno evadido e o próprio processo de evasão.

Começaremos por falar dos discursos de dificuldades próprias do curso, depois sobre os que dão conta do uso que o aluno faz do curso e, por fim, o que trata das relações de prioridade do aluno frente a sua graduação. E, no último item do capítulo, trouxemos algumas considerações de como esses discursos estabelecem uma discussão sobre o perfil do aluno nos cursos de Licenciatura em Matemática nos dois campi do IFRS em questão.