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Estatuto epistemológico de “crença”, “raciocínio” e “demonstração”

PHILOSOPHIE, O LIVRO QUE FALA

1. Estatuto epistemológico de “crença”, “raciocínio” e “demonstração”

Bernard parece manter, durante todo o texto do Philosophie, a proposta de delimitar quais são as idéias úteis para compor o estatuto epistemológico da medicina experimental:

“Hoje em dia, não se discute mais se nossas idéias pertencem ou não a esta ou aquela filosofia. Precisamos provar, demonstrar

experimentalmente88 a verdadeira filosofia, que não é senão a fisiologia, porque são as funções do nosso corpo e dos nossos órgãos que estão em jogo.” 89

Utilizando como ponto de partida um trecho da introdução geral destinada a explicar o que se entende por história da filosofia, extraída do livro de Tennemann e transcrito abaixo, Bernard inicia suas reflexões, fazendo as primeiras delimitações importantes:

“Em virtude de sua razão, o homem tende ao conhecimento das condições de qualidade, quantidade, relação e modalidade; além disso, aspira a uma ciência de princípios últimos e de leis últimas da natureza e da liberdade, bem como suas relações recíprocas. Então ele não faz mais do que obedecer a uma necessidade cega, sem se dar conta dos movimentos instintivos de sua razão, e sem saber qual caminho a seguir, nem a distância que o separa de seu objeto.

88 Grifo do autor

Insensivelmente, esse movimento se torna mais refletido e se rege pelo progresso da razão, que aprende dia a dia a se conhecer melhor. Este movimento refletido é o que denominamos de filosofia.”

Bernard inicia suas reflexões utilizando uma base comteana para explicar que, diferentemente de Tenneman, entende haver um movimento da razão numa certa ordem:

“A Filosofia é a ciência da razão, ou por assim dizer, a ciência do raciocínio.

Todas as ciências respondem a esta sensação e à necessidade que o homem tem de saber, de conhecer.

Podemos distinguir 3 graus no conhecimento humano.

Primeiro ele faz para ele uma representação das coisas nas quais ele crê.

Em seguida, ele deseja saber por que ele crê. Então ele raciocina sobre suas crenças.

Enfim, ele deseja uma comprovação de sua maneira de raciocinar, e ele então demonstra, ele experimenta.

De onde se deriva, assim, os três ramos fundamentais do conhecimento humano:

1º A ciência das crenças - Religião. 2º A ciência dos raciocínios - Filosofia.

3º A ciência das demonstrações, das provas - Ciência propriamente dita.

Em todo o conhecimento humano e em todas as épocas, há uma mistura, em maior ou menor proporção, destas três coisas: Religião,

Filosofia e Ciência. Porém essas três noções não devem destruir

uma à outra. Elas se depuram e se aperfeiçoam mutuamente.90 O Homem terá sempre a necessidade de crer, de raciocinar e de comprovar e concluir. Pela razão, ele adquire uma crença refletida;

90 É justamente neste ponto que Claude Bernard vai discordar do pensamento de Auguste

Comte, que afirma que os estados religioso e filosóficos serão banidos pelo positivismo, o verdadeiro estado científico.

pelas provas experimentais ele tem uma crença que assume um caráter de certeza.

Tudo isso constitui a maneira de raciocinar da humanidade que é igual em cada homem. Quando não conhecemos as coisas e queremos conhecê-las lançamos sobre elas uma hipótese, uma crença; supomos que as coisas devem ser de uma determinada maneira. Se nos mantemos assim, temos uma crença religiosa para a humanidade, e uma hipótese para o estudioso. Em seguida o raciocínio intervém, ainda sem a experiência, e enfim a experiência. Há ciências que podemos chamar de ciências do raciocínio, como as matemáticas: embora elas sejam também experimentais, no sentido a demonstração sempre pode ser feita.

A experiência é, portanto, a demonstração do princípio de partida, seja pelo cálculo, seja pela experiência física.” 91

Nota-se, portanto, que apesar de usar uma base comtiana, diferentemente de Comte, Bernard acrescenta que todos os três ramos são essenciais ao intelecto humano e não se excluem ou ultrapassam um ao outro, mas, ao contrário, se complementam mutuamente. Esse é apenas o primeiro de muitos momentos onde Claude Bernard vai discordar do que entende ser o positivismo de Comte.92

Assim, no Introdução..., vemos novamente o mesmo pensamento, agora mais elaborado:

“O espírito humano, nos diversos períodos de sua evolução, passou sucessivamente pelo sentimento, razão e experiência. No

91 Bernard, Philosophie, 3-4; grifos do autor.

princípio, o sentimento, impondo-se à razão, cria as verdades da fé ou teologia.

A razão ou filosofia, a próxima mestra da mente, faz vir à luz o escolasticismo.

Por último, o experimento, o estudo dos fenômenos naturais, ensina ao homem que as verdades do mundo exterior não se encontram formuladas nem pelo sentimento, nem pela razão. Elas são somente nossos guias indispensáveis, mas, para obter a verdade das coisas é necessário descer à realidade objetiva das coisas onde elas se encontram escondidas em forma de fenômenos.” 93

Essa abordagem pode ter ajudado Claude Bernard a expor suas idéias, através de um modelo de interação onde religião, filosofia e ciência (principalmente ciência experimental) fazem interfaces, que permitem ao nosso autor ampliar suas discussões. Segundo Bernard, à medida que as idéias filosóficas pudessem ser comprovadas experimentalmente, passariam a ser consideradas fatos, e, por consequência, pertencentes à ciência propriamente dita. Porém, novos fatos sempre acontecem para que o homem possa novamente crer, raciocinar e experimentar.

Bernard afirma que é inerente ao espírito humano procurar pelas causas primeiras:

“O homem começa sempre por querer encontrar a causa primeira das coisas e, naturalmente isto o leva a um domínio teológico. Mas, à medida que ele estuda, ele compreende que isso não o leva a nada efetivo, e ele então concebe os fatos em decorrência de uma natureza, ou uma força ou uma lei. Mas tudo

isso é um resultado necessário do conhecimento humano que responde sempre a estas três coisas, crer raciocinar e experimentar.” 94

Explica que, ao fazer ciência, o sujeito deve renunciar às suas tendências naturais, pois a ciência não é natural ao espírito humano. Aconselha então a nos atermos ao que é importante, no caso, a ciência. Nesse sentido, as causas primeiras e últimas são úteis apenas para delimitar a área de atuação das ciências, separando filosofia e ciência, ou ciência e religião:

“A ciência não é natural ao espírito do homem, no sentido de que ele é obrigado a aprender a conhecer a essência para renunciar à procura das causas primeiras e finais. Mas isso leva simplesmente à separação entre a ciência e a religião, como houve a separação entre a filosofia e a religião.” 95

Acrescenta ainda que, “Toda vez que o homem quiser retornar às causas primeiras, terá que entrar no domínio teológico.” Que não é algo que se possa evitar: “Eu não penso que se possa suprimir essa tendência da mente do ser humano, pois isso para ele será sempre pertencente ao desconhecido.” 96

Embora admita que tudo tem, necessariamente, um começo e um final, alerta que não podemos formar qualquer concepção sobre o início e o fim, só podemos apreender a parte intermediária – isso é a ciência:

“Na verdade a ciência é como o espírito, mas a divisão de trabalho é necessária para a execução. Portanto a especialidade não

94 Bernard, Philosophie, 25. 95 Ibid, 26.

96 Bernard coloca o fato como uma questão básica do ser humano, portanto, relativa ao

deve jamais estar na cabeça ou na porção especulativa; deve estar na mão, ou na parte ativa.”97

A questão da delimitação entre a filosofia e a ciência é um dos pontos importantes de reflexão do Philosophie e uma questão central no entendimento do processo experimental: “A filosofia é a ciência da razão, do raciocínio. Ela deve pesquisar a lei e a teoria do raciocínio”98. Ou, em outro momento:

“A Filosofia é a ciência do raciocínio. Quando raciocinamos sobre seus conhecimentos, é a metafísica. Quando pensamos sobre suas ações, é a moral. Quando raciocinamos sobre as belas artes é a

estética. Quando raciocinamos sobre a ciência é a física e outras

ciências que são divisões da física.”99

“Encontramos, desde o princípio dos tempos, todos os sistemas filosóficos imagináveis. É praticamente impossível se ter uma idéia nova [...]

O único a fazer é reverter essas idéias a uma forma que represente os fatos, uma forma a posteriori, em vez da primitiva forma

a priori.

Este será o destino da filosofia, cujos pensamentos ou sistemas a priori, que constituem o conhecimento humano, terão a tendência a ser substituídos por sistemas a posteriori ou teorias.”100

Ao diferenciar filosofia e ciência, Bernard nos apresenta a idéia de que a filosofia coloca formas que representam os fatos a priori, enquanto que a ciência trabalha com fatos a posteriori. Afirma ele que a procura pela causalidade primeira e final é inerente à natureza humana – e assim, jamais o ser humano deixará de perguntar pelo “por que” e o “para que” das coisas.

97 Bernard, Philosophie, 33. Nesta frase, deixa bem claro o valor do trabalho experimental para

a comprovação das idéias, sem o qual, a ciência é mera especulação.

98 Ibid, citação 11, 7. 99 Ibid, citação 18, 12.

Porém o conhecimento, entendido como acréscimo do saber, será sempre uma coisa a posteriori: “Não há conhecimento racional a priori. O conhecimento é sempre uma coisa a posteriori.” 101

Segundo a reflexão de Bernard, “não há idéias inatas”102, “O Homem

aprendeu tudo o que ele sabe. Não recebeu nenhum conhecimento inato e sim a aptidão a conhecer”103.

Ainda a respeito do conhecimento e das formas de conhecer percebe- se, em suas considerações finais sobre a filosofia de Comte e os sistemas filosóficos em geral, algumas anotações extremamente indignadas. Neste caso, Claude Bernard não parece negar sua formação magendiana, abandonando em alguns momentos sua habitual tranqüilidade e mostrando-se até mesmo irritado com a filosofia e os filósofos. Se pensarmos no panorama descrito no primeiro capítulo, uma leitura possível será que: um dos grandes entraves à compreensão do processo científico, talvez a maior dificuldade naquele momento, era o excesso de teorias sem comprovação. Para Bernard, a filosofia é o resultado do conhecimento e não o inverso.104 Nas anotações que se seguem, podemos apreciar a intensidade de suas convicções:

“Quanto a mim, penso que devemos simplificar: a filosofia não existe como uma ciência especial. Nada como os práticos, que são verdadeiros filósofos. Um homem que encontra um fato, o mais

101 Ibid, citação 40, 21 (grifo do autor). 102 Ibid, citação 40, 22.

103 Ibid, citação 5, 5.

simples fato a mais na pesquisa da verdade faz mais do que o maior filósofo do mundo.”105

“Eu aprecio muito a filosofia e os filósofos: são homens de grande inteligência. Mas eu não creio que a filosofia seja mesmo uma ciência. É uma distração útil ao espírito, falar sobre filosofia após o trabalho. Como é também uma distração fazer uma caminhada depois de estar muitas horas no laboratório.”106

“Mas será um grande erro se ficarmos apenas nisso; não conseguiremos nada, seremos estéreis. Devemos então adentrar uma especialidade científica e buscas compreender ao mesmo tempo, as outras ciências.”107

“Em uma palavra, só existe a ciência experimental e fora da experiência não sabemos nada. A filosofia não explica nada e não pode ensinar nada de novo por ela mesma, pois ela não experimenta e não observa. Os filósofos nunca aprenderam nada, eles apenas raciocinaram sobre o que os outros fizeram. Excetuando-se Descartes, Leibniz, Newton, Galileu: eis aqui os verdadeiros filósofos ativos; são grandes sábios. Mas Kant, Haegel, Schelling, etc. Tudo isso é oco e eles, todos eles, não introduziram a mínima verdade sobre a terra. Só existem os sábios que podem. Quanto a Bacon, é um trompete e um gritador público: ele só repetiu as verdades científicas que reinavam em sua época sobre Galileu, Torricelli, etc. Mas, ele, por ele mesmo não fez nada, senão repetir todo tempo para deixarmos a escolástica e adotarmos a experiência. Tudo o que outros haviam dito, ele falou mais alto. Porém ele não deixou nenhuma verdade para a ciência.”108

105 Ibid.

106 Ibdem, item 7, 37. 107 Ibid, item 5, 36.

Bernard poderia ter se deixado levar pela indignação de suas reflexões, mas, pelo resultado no Introdução..., vemos expressa sua maturidade, quando então, afirma não se furtar ao uso de bases filosóficas.

Esses pensamentos, que expressam a profunda indignação contra o que considera ser discurso vazio, após as primeiras reflexões solitárias em

Philosophie, enquanto observações feitas para si próprio, aparecem no

Introdução..., elaborados de uma maneira mais madura, racional e didática,

mostrando que houve um tempo certo para colher os frutos de sua formação. Bernard já era, então, um conhecido homem de ciência e poderia ter usado o peso de sua autoridade. Porém, como resultado de suas reflexões, expresso em Introdução, opta por um caminho onde reconhece, clara e respeitosamente, os limites e a utilidade da filosofia como fonte de novas idéias, inclusive e principalmente para a ciência experimental. Afinal,

“O homem de ciência que quer encontrar a verdade, precisa manter sua mente livre e calma, e se for possível, nunca ter seus olhos turvados pelas paixões humanas.” 109

“A filosofia, agitando sem cessar a massa infindável de questões não resolvidas,110 estimula e entretém movimento salutar

da ciência. Eu não admito a filosofia impondo limites à ciência, como também a ciência que pretende suprimir as verdades filosóficas que estão sob seu próprio domínio.”111

109 Bernard, Introduction..., 69 (grifo nosso).

110 E, de fato, pela violência do discurso no Philosophie, Bernard talvez estivesse se referindo a

ele mesmo.

“A filosofia, que eu considero como um excelente exercício do espírito, traz consigo, infelizmente, tendências sistemáticas e escolásticas que a tornam desvantajosas para o estudioso.” 112

“Como experimentador, eu evito os sistemas filosóficos, embora respeitando o espírito filosófico, como inspiração eterna da razão humana em direção ao conhecimento do desconhecido.”113

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