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O diálogo Crátilo nos apresenta uma cena em que Platão expõe, de maneira pontual e didática, a capacidade da imagem de produzir (ou induzir) em seu espectador o engano na alma. Esse engano, pois, leva em consideração o grau de simetria entre a imagem e o objeto que ela representa. Na passagem referida, Sócrates e Crátilo discutem a ontologia das imagens enquanto representações mais ou menos parecidas (simétricas) com o objeto ao qual se referem (modelo). Sócrates, grosso modo, quer saber de Crátilo se sua imagem (uma pintura idêntica) seria da mesma ordem ontológica de sua pessoa (modelo dessa pintura). O problema, tal como colocado no texto, remete à seguinte pergunta: a imagem e seu objeto compartilham ou não de uma mesma e igual realidade? Ou ainda, eles (imagem e objeto), por mais semelhantes, pertencem ao mesmo plano ontológico?

(...) se fossem postos juntos dois objetos: Crátilo e a imagem de Crátilo [Kratylos kaí Kratylos eikon], e uma divindade não imitasse apenas a tua figura e tua cor, como fazem os pintores, mas todas as entranhas iguais às tuas, emprestando-lhe o mesmo grau de ductilidade e calor, além de movimento, alma e raciocínio, tal como em ti, em uma palavra: tudo exatamente como és, e colocasse ao teu lado essa duplicata de ti mesmo: tratar-se-ia de Crátilo e uma imagem de Crátilo [eikon Kratylon], ou de dois Crátilos [dyo Kratyloi]? (Crát., 1973, 432 b-d).

No entanto, Crátilo parece ignorar que uma imagem, por mais fiel e simétrica que ela seja em relação ao objeto representado, é sempre uma imitação. Da mesma forma, ele não leva em consideração o problema dos universais e da multiplicidade. Um objeto (modelo, Ideia, paradigma) é Uno, universal, necessário, imutável; as imagens, por sua vez, são o contrário disso. Para um mesmo objeto, é possível uma infinidade de representações mais ou menos simétricas a ele; imagens podem ser idênticas umas das outras. Para Crátilo, tratar-se- ia (erroneamente) do mesmo ser duplicado: dois Crátilos e não apenas um, acompanhado de sua exímia reprodução. Esquematicamente, teríamos a seguinte situação: Cimagem = Cobjeto → 2C. Isto é: Crátilo representado, imagem (Cimagem), estaria, segundo essa falsa compreensão, plenamente identificado à pessoa de Crátilo (Cobjeto); resultando, assim, em dois Crátilos (2C) de uma mesma realidade ontológica.

Para Platão, é a verossimilhança, com sua verdade plausível e admissível, a causadora da ilusão e do engano. Os profissionais do engano, apáte, tais como os pintores, escultores, poetas e sofistas (dotados de um virtuosismo da técnica mimética), seriam capazes de confundir até mesmo o observador mais atento. Boa parte do Livro X, da República, tratou

desse tema; além dele, outros diálogos e passagens também nos serviram como uma espécie de advertência às artimanhas desses profissionais da ilusão. Para Platão, cada objeto, coisa ou ser é dotado – por seu criador – de uma essência una e imutável que o distingue dos outros seres. Essa característica ontológica é somente de Crátilo e de ninguém mais. Assim, o ser de Crátilo não pode ser duplicado, pois só existe um Crátilo, verdadeiramente real, e sua imitação, bem ou mal executada, é apenas uma imagem. O diálogo toma sequência pela seguinte fala de Sócrates:

Como vês, amigo, precisamos não somente procurar um critério de verdade para as imagens, diferente do que há pouco nos referimos, como também na afirmativa de que a imagem deixa de ser imagem, se algo lhe for acrescentado ou subtraído. Ou não percebes o quão longe estão as imagens de possuir todas as propriedades originais que elas imitam? (Crát., 1973, 432 c-d).

Percebemos, nessa cena, que o estabelecimento de critérios ontológicos para a imagem é apontado, pelo próprio Platão, como uma necessidade impreterível. É preciso, assim, assentar o sentido da imagem num terreno sólido, firmado na ontologia; depois disso, será possível tratar dela e de todas as suas implicações, de forma segura e clara. Dito isso, seguiremos com nosso propósito de investigar o estatuto ontológico das imagens, buscando parâmetros que esclareçam e lancem luz sobre o tema.

Talvez, a pergunta mais importante e urgente a ser respondida, neste capítulo, seja a seguinte: O que é a imagem? Seguida, imediatamente, por outra: qual o grau de proximidade entre a imagem e o Ser, ou ainda, qual sua medida ontológica? Adiantamos que tais questões, apesar de serem objetivas e diretas, não são fáceis de serem respondidas. Além disso, uma resposta contundente do tipo: todas as imagens são isto ou as imagens dizem exatamente aquilo! não seria honesta de nossa parte. A imagética, mesmo vista pelo recorte platônico, é, ainda assim, muito ampla, profunda e por diversas vezes conflitante. Platão, em algumas ocasiões de seus textos, se posicionou a respeito do tema. Dentro do conjunto de sua obra, podemos encontrar fragmentos que nos orientam para a obtenção de respostas para as duas questões levantadas; no entanto, não podemos fazer afirmações categóricas; mas, tão somente, delimitar melhor esse recorte. A imagem é algo demasiadamente amplo, fluido, intermediário; ampara-se em elementos não racionais e não objetivos (religiosos e metafísicos, por vezes) para validar-se.

É, de certo modo, frequente a aparição do termo “imagem” nos escritos platônicos. Muitas vezes, aquilo que se traduziu do grego para as línguas modernas e se apresenta nos textos como a palavra “imagem” não designa exatamente a mesma coisa. Essa tradução da

palavra imagem leva em consideração alguns elementos, dentre eles: a polissemia dos termos gregos e a adequação da palavra dentro de um contexto específico.

Ao final do Livro VI, da República (2001, 509 e-510 a), em nossa já conhecida passagem do símile da linha segmentada, Sócrates denomina por imagens (eikonas): “em primeiro lugar, às sombras [skiá]; seguidamente, aos reflexos nas águas [hýdasi phantasmata], e aqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes [phaná], e a tudo o mais que for do mesmo gênero”. Logo, no início do Livro VII, dessa mesma obra, Platão demarca qual deveria ser o itinerário visual do prisioneiro, “se [ele] quisesse ver o mundo superior” que está fora da caverna. Certamente, em “primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens [eidola] dos homens e dos objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios objetos”. Ao longo deste processo, gradualmente, o prisioneiro deve acostumar-se com a luz, de modo que “seria capaz de contemplar, não já a sua imagem [phantásmata] na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar” (Rep., 2001, 516 a-b).

Nesse mesmo diálogo, os usos para a palavra imagem e congêneres apontam para outros termos, tais como: “imagem do caráter bom [agathón eikona êthos]”; “pintura de seres vivos [eikosi zôon]” e “imagens do mal [eikosi kakías]” (Rep., 2001, 401 b). Na passagem: (Rep., 2001, 487 e), Maria Helena da Rocha Pereira traduziu por “metáfora” a junção dos termos: eikonos legoménes, cujo significado literal poderia ser descrito como: imagens faladas. O trecho é assim apresentado: “A pergunta que fizeste – esclareci – carece de uma resposta em forma de metáfora”. Por sua vez, tanto Jacó Guinsburg (Rep., 1965, 487 e) como Carlos Alberto Nunes (Rep., 2000, 487 e), traduziram a composição dos termos eikonos

legoménes, dessa mesma passagem, como “imagem”. Ao comparar as traduções dos autores

citados anteriormente, teríamos, respectivamente, “Formulas uma questão a que só posso responder por uma imagem” e “Formulas uma pergunta, lhe falei, que só poderá ser respondida com uma imagem”.

Sem querer entrar em um preciosismo semântico ou num rigor terminológico – que não é a intenção desta pesquisa – precisamos ter clareza de que a compreensão das imagens em Platão passa pela interpretação do contexto do diálogo. Por isso, mais importante do que o emprego estrito do termo “imagem” é a situação ou circunstância em que ele, ou um correlato, aparece em cena. A construção dramatúrgica e o movimento do diálogo dizem muito sobre isso. Assim, se a palavra mais adequada é metáfora ou imagem, tal uso é secundário; o essencial é que Sócrates está prestes a responder a pergunta feita pelo personagem Adimanto, não de forma discursiva racional, mas com o uso de uma alegoria (argumentação mítico-

religiosa).

Em geral, o conjunto imagético que permeia os escritos de Platão está associado, fundamentalmente, a dois termos gregos: eidolon e eikon. Eidolon deriva do substantivo

eidos, esse que, no seu sentido original, significava: aspecto, forma, aparência. O acréscimo

do sufixo -olo, -ωλο, deu origem ao termo eidolon: imagem com um ar de irrealidade ou reflexo relacionado à ilusão e ao engano (pseudos). Eidolon gera os termos: eidolikós (simbólico ou imaginário); eidolopoiía ou eidolopoiós (forma das imagens); eidololatria (idolatria). Os termos Eikon e eikonos significam: imagem ou representação, notadamente relacionadas à escultura e à pintura. Tais termos dão origem aos vocábulos: eikónion (o que reproduz ou representa algo) e eikonismós (descrição ou relato) (Chantraine, 1968, p. 316- 317; 354-355).

Apesar de ambos os termos, eidolon e eikon, significarem, em línguas modernas, “imagem”, existem distinções ou nuances que os diferenciam e conferem, a cada um deles, bem como as suas variações, um sentido específico dentro dos escritos platônicos. Enquanto

eidolon está associado a uma imagem fantasiosa (phantasía), imaginativa, irreal ou mesmo

impossível, de caráter desproporcional ao objeto reproduzido; eikon corresponde à imagem documental, ao retrato fiel e verdadeiro ou a um reflexo especular (Azara, 1995, p. 242). A etimologia marca a diferença de valor entre os dois termos e permite a oposição entre eikon (cópia da aparência sensível) e eidolon (transposição da essência). Eikon e eidolon se diferenciam, também, não somente pelo objeto que representam, pois um mesmo objeto pode ser representado de formas diferentes, mas porque eles constituem modos de representação diferentes. Tais representações podem ser fiéis ou distintas da realidade do objeto e podem estar próximas ou afastadas de sua essência ontológica (Saïd, 1987, p. 310-311).

O universo das imagens dentro do pensamento platônico é, como dissemos, muitíssimo vasto. Ele compreende desde as formas mais comuns de representação do objeto, pela pintura ou pelas artes visuais de uma forma geral, até os reflexos especulares e as sombras projetadas pela luz, por exemplo. Compreende, também, tudo mais que se refira à percepção visual humana. Fora desse conjunto visual imediato e inseridas no campo da imagem estão as expressões ou manifestações de nível psicológico e cultural, tais como o imaginário social e os conteúdos da memória coletiva. Além dessa amplitude referente aos tipos e elementos imagéticos, existe, ainda, uma infinidade de possíveis imbricações entre a imagem e seu meio cultural e religioso, além, é claro, das implicações dentro do campo político e educativo.

especialmente, quando fundamentado no cânone da tradição poética. Vale lembrar que os mitos e as narrativas que remetiam ao nascimento dos deuses, suas cosmogonias, bem como a organização hierárquica de cada um deles no Olimpo, por exemplo, faziam parte desse conjunto de crenças religiosas pertencentes à vida política. É, nesse aspecto, uma religião do Estado, com divindades e motivações que constituem parte do modo de vida social. Somando- se a esse caráter mítico, estão também os poetas e os sofistas e toda a carga cultural e política da época desse filósofo: o século V a.C. ateniense. Poetas, sofistas e adivinhos mágicos são personagens de seus diálogos, muitas vezes, cada um a seu modo, caracterizados como profissionais da imagem.

Esse fluido e inconstante conjunto imagético complementa a racionalidade e dialoga com o rigoroso universo das Ideias, conferindo-lhe maior riqueza e profundidade. Em Platão, as imagens ocupam uma posição muito importante, elas constituem parte considerável do próprio movimento do diálogo platônico. Ademais, atuam, pelo poder persuasivo, como argumentos irrefutáveis dentro da obra, haja vista que, na quase totalidade dos casos, esses mitos são inventados ou apropriados por Platão em suas obras, de modo a dar sustentação ao seu texto. Nesse sentido, é importante lembrar que, em momentos de dificuldades e tensões dentro dos diálogos, quando a razão não é suficiente para expressar ou explicar algo, é ao mito e às alegorias ou a toda sorte de imagens que Sócrates ou o Estrangeiro de Eleia recorrem.

Para Platão, existem determinadas regiões ou esferas humanas em que o método científico e a razão dialética não conseguem penetrar. São zonas cegas à racionalidade; por isso advém a necessidade dos mitos como maneira de explicar, imageticamente, aquilo que não foi possível fazer por meio da ciência. Platão, ao que tudo indica, está seguro da existência dessas regiões em que a razão não é ou ainda não foi capaz de atingir. Eis, aqui, uma das influências da religião na vida particular, inclusive do filósofo. Essas regiões estão acima dos poderes demonstrativos da racionalidade e Platão as reconhece como verdadeiras, contudo, falta um fio racional que conduza a uma explicação convincente. Nisso, o mito é infalível, seu valor reside na possibilidade de interpretação, pois, ao mesmo tempo em que não dá uma resposta pronta e acabada, ele aguça a racionalidade com a abertura de novos vieses de interpretação. O mito promove uma oxigenação no discurso dando novo fôlego à razão. Os gregos o aceitavam não por acreditarem cegamente naquilo que eles próprios veiculavam; o mito não é uma narrativa literalmente verdadeira, mas um meio ou um canal de comunicação entre a razão e o desconhecido. Para além dessa qualidade discursiva do mito, tem-se, também, em favor da capacidade de convencer o interlocutor pelos aspectos

religiosos, a potência da dúvida. Quando não estamos convictos de que a ciência é capaz de esclarecer fenômenos, o mito sobrepõe-se sobre esses pontos obscuros. O mito encobre, pois, essas zonas de incerteza, podendo ser mais agradável e prático crer nestes em detrimento da crença na ciência. Por meio dele, é possível recontar as coisas que sabemos que existem, mas que não somos capazes de compreender ou mesmo tolerar, por meio de uma demonstração científica (Guthrie, 1993b, p. 239).

A investigação sobre o estatuto ontológico das imagens está dividida em três partes, são elas: 1) identificação das imagens como um modo mimético, isto é, a investigação se dirige à sua qualidade imediata de representar ou de imitar algo; 2) verificação nas imagens de seu modo conhecimento, de maneira que a investigação relaciona-se à condição da imagem de congregar, em si mesma, alguma espécie de saber ou informação, ou ainda, investiga a seguinte questão: as imagens possibilitam um tipo de conhecimento sobre algo? e 3) contemplação daquilo que denominamos “modo moralizador das imagens”, isto é, a capacidade de promover na alma a doutrinação para uma determinada conduta: as imagens veiculam, sustentam e propagam valores morais e virtudes sobre algo a alguém?

1 – Imagem como mímesis

Abordagens sobre a mímesis estão dispersas em muitos escritos platônicos; contudo, sua descrição sistemática aparece, com maior clareza, no diálogo o Sofista. Discutir o caráter imitativo das imagens não é a proposta principal desse diálogo, no entanto, é nele que o exame da arte mimética recebeu do filósofo sua melhor delimitação. O cerne do Sofista consiste na identificação de quem é esse profissional do saber, nas próprias palavras de Platão: “procurando saber e definir o que ele é” (Sof., 1972, 218 b). Assim, pergunta-se, principalmente, “o que é o sofista?” em detrimento de “o que é a mímesis?”.

A elucidação da questão sobre o sofista passa, necessariamente, pelo tema da mimética, haja vista que a imitação é tida como sua principal técnica e, tal análise, segundo os critérios do método dialético da divisão, conduz para aquilo que Platão caracteriza como a “captura do sofista”. A busca pelas bases ontológicas da imagem no Sofista não é motivada pelo interesse artístico ou literário, ela, somente, visa desmascarar esse profissional mercenário dos saberes.

Dentro do contexto do século V a.C., os sofistas exerciam múltiplas atividades intelectuais nas cidades-estados, notadamente, de cunho pedagógico – ensinavam a virtude, a

retórica e a oratória aos jovens ricos. No entanto, nenhuma dessas atividades, pelo menos considerando a perspectiva de Platão, poderia ser considerada legítima do ponto de vista moral e epistemológico. Somente aos filósofos caberia, assim, a legitimação das práticas do conhecimento racional e da educação intelectual. O sofista não é um filósofo e isso o texto pretende deixar muito claro, visto que, no Sofista, o Estrangeiro de Eleia apresenta, inicialmente, seis definições para tal.

As definições apresentadas surgem nessa ordem (Sof., 1972, 223 b-231 a): 1) Caçador interesseiro de jovens ricos, função assumida “em que se recebe dinheiro a pretexto de ensinar”. 2) Comerciante em ciências, visto “que negocia discursos e ensinos relativos à virtude”, 3) e, também, 4) Pequeno comerciante de primeira ou segunda mão; “desde que esse comércio se refira aos ensinos de que falamos”, sejam eles fabricados pelo próprio sofista ou adquiridos de outrem, 5) Erístico mercenário, o qual “recebe dinheiro, na arte da erística, da contradição, da contestação, do combate, da luta, da aquisição” e, finalmente, 6) Refutador de argumentos, o qual tem por intuito purificar “a alma das opiniões que são um obstáculo às ciências”.

Cornford comenta que as cinco primeiras definições sobre o sofista estão vinculadas à aceitação de dinheiro como pagamento por serviços prestados. Esses serviços eram, notadamente, de ordem intelectual e moral. O sofista empreende uma caça aos jovens ricos, exaltando o virtuosismo de suas técnicas de persuasão por meio de demonstrações de oratória e retórica. O sofista anunciava e comercializava esse conjunto de saberes e de lições sobre a virtude, tal como uma mercadoria exposta em praça pública. Platão ilustra no Protágoras (1980, 317 c-319 a) a postura do sofista, vangloriando-se, junto a Pródico e Hipias (dois sofistas menores), de ser capaz de ensinar as virtudes para aqueles que pudessem pagar por elas. Platão denomina esse tipo de instrução, empreendida pelos sofistas, de doxopaideutiké, termo traduzido como “educação espúria”, por Cornford (s/d, p. 162-163); e como técnica “aparentemente instrutiva”, por Carlos Alberto Nunes (Sof., 1980, 223 b).

A sexta divisão define o sofista como: a) refutador, segundo a tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Sof., 1972, p. 150); e b) “purificador da alma das fantasias, que são um obstáculo para o conhecimento”, segundo a tradução de Cornford (s/d, p. 166). Essa divisão se diferencia das cinco anteriores, dado o tom mais sério e amigável referindo-se à sofística. A refutação, enquanto técnica, visa purgar a alma e “afastar [dela] tudo o que há de mal, conservando o resto” (Sof., 1972, 227 d). Platão não considera a ação de expurgar a maldade como uma atividade de infusão de virtudes na alma, pois, segundo ele, essa ação não pretende incutir nada de bom e belo no indivíduo, mas eliminar o que há de mal, instaurando,

de certa forma, o equilíbrio na alma.

Conforme o próprio Estrangeiro reconhece (Sof., 1972, 230 e), a purificação é uma prática muito elevada para qualificar o sofista. Essa definição contrasta com tudo aquilo que foi mencionado antes no diálogo a respeito desse profissional. O paralelo estabelecido entre a purgação sofística e a catarse socrática torna-se, devido à semelhança entre ambas, inevitável. A técnica maiêutica também promove a refutação das opiniões, as quais impedem o acesso ao verdadeiro conhecimento, purificando a alma de sua corrupção sensível. Contudo, essa suposta comparação entre Sócrates e os sofistas é rejeitada, logo em seguida, pelo Estrangeiro: o sofista é um gênero escorregadio, difícil de ser capturado. Ele se esconde sob um véu filosófico. Se fosse possível tal analogia, ela seria, seguramente, da mesma ordem que a existente entre o lobo e o cão. O primeiro, um animal selvagem e bárbaro e, o segundo, doméstico e civilizado. Demarca-se, nesse mesmo sentido, a oposição entre aquela educação espúria e a educação moral – paideia. Para Platão, o tipo de instrução oferecida pelo sofista (o lobo) é não apenas desprovido de boas virtudes, mas contrário a elas.

A descrição do sofista no Sofista, bem como em outros diálogos que abordariam esse gênero da sofística, é demasiadamente negativa e combativa. Platão está muito distante de uma posição de neutralidade. Sob o ponto de vista histórico, por exemplo, foram os sofistas que introduziram as mudanças e os avanços relativos à educação e à cultura intelectual. Reformularam a antiga paideia musical, fundamentada na poesia tradicional e na religião arcaica, conferindo-lhe um caráter enciclopédico, democrático e racional. A palavra sofista advém dos termos gregos: sophos e sophia, habitualmente traduzidos como sábio e sabedoria, empregados, desde os tempos mais antigos, para designar uma qualidade intelectual ou espiritual, ou seja, para assinalar uma determinada capacidade ou perícia sobre algo.

Um construtor de navios em Homero é ‘experimentado em toda sophia, um cocheiro, um piloto de navio, um áugure, um escultor são sophoi cada um em sua ocupação. Apolo é sophos na lira, Tersites um caráter desprezível, mas sophos em sua língua; há uma lei em Hades (com intenção cômica) que todo aquele que superar seus companheiros artesãos em ‘uma das grandes e

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