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Estatuto ontológico e função educativa das imagens em Platão

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DANIEL FIGUEIRAS ALVES

ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA

DAS IMAGENS EM PLATÃO

CAMPINAS

2016

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DANIEL FIGUEIRAS ALVES

ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA

DAS IMAGENS EM PLATÃO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração de Filosofia e História da Educação.

Orientador: Profª. Drª. Lidia Maria Rodrigo

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO DANIEL FIGUEIRAS ALVES, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LIDIA MARIA RODRIGO

CAMPINAS 2016

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Alves, Daniel Figueiras,

AL87e AlvEstatuto ontológico e função educativa das imagens em Platão / Daniel Figueiras Alves. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

AlvOrientador: Lidia Maria Rodrigo.

AlvTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

Alv1. Platão. 2. Educação. 3. Imagem. I. Rodrigo, Lidia Maria,1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Ontological statute and educational function of the images in Plato Palavras-chave em inglês:

Plato Education Image

Área de concentração: Filosofia e História da Educação Titulação: Doutor em Educação

Banca examinadora:

Lidia Maria Rodrigo [Orientador] Ignacio García Peña

Samuel Mendonça

Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Roberto Akira Goto

Data de defesa: 29-02-2016

Programa de Pós-Graduação: Educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA

DAS IMAGENS EM PLATÃO

Autor: Daniel Figueiras Alves

COMISSÃO JULGADORA:

Orientador: Profª. Drª. Lidia Maria Rodrigo Prof. Dr. Ignacio García Peña

Prof. Dr. Samuel Mendonça

Prof. Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Prof. Dr. Roberto Akira Goto

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais e irmãs pelo apoio e pelos esforços sem medida.

Agradeço à professora Lidia Maria Rodrigo pela exímia orientação e por toda a ajuda prestada ao longo desses anos.

Agradeço ao professor Ignacio García Peña, meu anfitrião na Universidade de Salamanca – Espanha, pela acolhida e pelo amparo acadêmico.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp pelo financiamento e pelo suporte técnico impecável, bem como ao contribuinte paulista.

Agradeço ao parecerista anônimo da Fapesp, que, apesar de oculto, contribuiu de forma significativa para o andamento do projeto.

Agradeço aos amigos e colegas de curso: Maria das Dores Mazziero, Laisa Guarienti, André Camargo, Henrique Lima, Sarah Machado, Volmir von Dentz, Simão Zambissa, Aline Bagetti, Flora Athayde, Yung-chi Tseng e, especialmente, Tatiana Bagetti, Agida Santos e Christian Lindberg, por tornarem meu caminho até a defesa desta Tese menos sofrido.

Agradeço aos membros do Grupo Paideia – Unicamp, professores e colegas, como um todo; aos funcionários do programa de Pós-Graduação da FE, com especial atenção à Nadir Camacho e à Rita Preza; às professoras Angela Santi, Aline Monteiro e Maja Vargas, pelas discussões frutíferas nos encontros do Grupo Lise – UFRJ; ao professor António Mesquita pela recepção na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ao professor Walter Kohan – UERJ, pelo gentil acolhimento em suas aulas.

Agradeço, também, aos membros titulares e suplentes, tanto dessa banca de defesa de doutorado quanto à do exame de qualificação, pela leitura atenciosa e cuidadosa da Tese e pelas relevantes e válidas contribuições para seu aperfeiçoamento.

Agradeço a você que se dispôs a ler este texto e, de alguma forma, confiou no conteúdo do meu trabalho.

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Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP – processo nº 2011/17429-4 e processo nº 2014/06895-2.

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RESUMO

A problemática inicial, que originou boa parte das inquietações presentes nesta Tese, pode ser sintetizada pela seguinte pergunta: de que modo as imagens seriam capazes de nos educar? Para respondê-la, contudo, é necessário darmos um passo atrás, isto é, retornarmos às bases que sustentariam a solução dessa questão. Tomamos Platão como referencial teórico para nossa discussão, a qual fora organizada em três capítulos. O primeiro deles pretende situar a educação pelas imagens dentro de um percurso educativo, ilustrado na República, de modo que as imagens, devido ao seu caráter sensível e estético, consistem na etapa inicial. O segundo capítulo dedica-se ao exame do estatuto ontológico das imagens sob três abordagens ou modos: de imitação, de conhecimento e de moralização. As imagens, sendo representações sensíveis dos objetos inteligíveis, estão mais próximas da verdade e das Formas do Bem, esse aspecto se verifica quanto mais simétricas elas se encontram em relação a tais objetos. O terceiro e último capítulo visa apresentar o modo pelo qual as imagens são capazes de incutir ou extrair da alma determinada moralidade, orientando esta para uma boa e correta conduta em benefício do Estado.

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ABSTRACT

The initial problem of the discussing issues in this thesis can be summarized in the following question: how could images educate us? To answer it, however, it is necessary to take a step back, which is to return to the roots that sustain the solution of this question. This thesis is based on Plato’s theoretical framework, which is being divided into three chapters. The first chapter inserts the education through the images within an educational route, which is illustrated in the Republic. Images due to its sensitive and aesthetic character mark the initial stage of this route. The second chapter is dedicated to the examination of the ontological statute of images in three approaches or ways: imitation, knowledge and moralization. The images, which are sensitive representations of intelligible objects, are closer to the truth and the Form of the Good when more symmetrical these objects. The third chapter shows how images are able to introduce or extract the moral virtues in the soul. These images guide the soul to good and proper conduct to the State.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………. 11

CAPÍTULO I: O percurso educativo e a teoria do conhecimento na República …... 16

1 – A proposta educativa de Platão na República ……….……… 16

2 – Sentido educativo da teoria do conhecimento ………. 33

2.1 – Os modos de conhecimento na exposição da linha segmentada ……….. 34

2.2 – Os modos de conhecimento na alegoria da caverna ……….… 38

3 – Sentido do percurso educativo proposto na República ……… 42

CAPÍTULO II: Estatuto ontológico das imagens ………..… 50

1 – Imagem como mímesis ……… 55

2 – Imagem como dóxa ……….……… 63

3 – Imagem como areté ……….……… 74

CAPÍTULO III: Sentido da educação imagética em Platão ……….. 83

1 – Educação como processo de reminiscência da alma …………...……… 83

2 – Interdependência entre imortalidade e reminiscência na compreensão do sentido educativo das imagens ………...……… 92

2.1 – O mito de Er na República: elogio didático-moralizador à vida justa …..……… 94

2.2 – O mito da parelha alada no Fedro: anamnese como delírio divino ………...….. 101

3 – O processo educativo mediado pelas imagens ………... 112

CONSIDERAÇÕES FINAIS ………..…… 121

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INTRODUÇÃO

Ao longo das próximas páginas, trataremos de um conjunto de questões e temas relativos, mais especificamente, ao campo da Educação (especialmente, à área de Fundamentos da Educação) do que, propriamente, ao campo da Filosofia. Embora o referencial teórico esteja, majoritariamente, composto por obras clássicas da Filosofia (os diálogos de Platão e, também, comentadores importantes) é para os problemas diretamente relacionados à atividade ou intento educativo que o foco dessa pesquisa está voltado. A problemática inicial, que originou boa parte das inquietações presentes nesta Tese, pode ser sintetizada na seguinte pergunta: de que modo as imagens seriam capazes de nos educar? Para respondê-la, contudo, é necessário darmos um passo atrás, isto é, retornarmos às bases que sustentariam a solução dessa questão, tal como colocada. Ademais, para além desse exercício, teríamos, ainda, que justificar sua validade epistemológica. Seria, pois, uma pergunta válida ou pertinente à Educação? Antes de buscarmos aclarar os modos ou maneiras que tornariam possível uma educação por imagens (seu modus operandi), faz-se necessário averiguar a possibilidade de realização do mesmo. Em outras palavras: é possível uma educação por imagens? Se sim, qual sua fundamentação, propósito, ou mesmo, contexto?

Encontramos a viabilidade dessa fundamentação nos textos de Platão. Embora o conjunto de sua obra não contemple uma discussão específica em torno da educação pelas imagens, podemos extrair dele elementos e ideias que sustentam a nossa tese de que: sim, as imagens educam! Tal afirmação pode ser verificada ao se levar em conta a concepção platônica, inserida no contexto da História da Educação, da qual somos herdeiros. As imagens carregam em si a potencialidade de educar e o fazem sob circunstâncias específicas, voltadas para um público e para determinada finalidade. Consideramos que os escritos de Platão podem nos ajudar a explicitar o sentido da educação, enxergada aqui como um processo gradual de formação do indivíduo, remontando a noção de percurso educativo. A riqueza filosófica presente nos textos de Platão é demasiado profunda. De seu texto (e contexto) filosófico, podemos retirar um interessante material teórico para discutir questões relacionadas ao campo da Educação, tais quais: a formação moral e intelectual, os critérios de verdade ou bondade, a função do conhecimento, das imagens e da opinião no intento pedagógico, dentre outras. Pensar tais questões em (ou com) Platão, mesmo que demarcadas pela estrutura, pelo discurso, e pelas regras estipuladas pelo filósofo em seus textos, consiste em mergulhar num exame ou ensaio muito denso e profícuo sobre determinados assuntos e

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problemas relativos à Educação que, para nós, educadores, interessam – ou deveriam interessar.

A proposta inicial desta Tese, nascida enquanto projeto de pesquisa, considerou a divisão deste trabalho em três partes ou momentos; transformados, ao final, em capítulos. Cada um deles está a cargo de verificar, no texto de Platão, o movimento lógico que conduziu ou orientou a construção dos argumentos que deram suporte à hipótese da pesquisa. De forma sucinta, desejávamos comprovar a seguinte proposição: “existem imagens, dotadas de um conteúdo moral, capazes de influenciar a nossa conduta e tendenciar nossa vontade para uma determinada escolha”. Tínhamos em mente, como principal ilustração desse caráter educativo na modernidade, as fábulas de La Fontaine, em que, ao final de cada uma delas, havia uma “moral da estória” específica para acentuar ou coroar a mensagem pretendida. Contudo, não precisamos avançar até o período moderno para identificar as bases desse pensamento. As fábulas de La Fontaine consideravam as peculiaridades da infância, pois já havia na época em que foram escritas a noção de infans (sem voz). No entanto, os gregos do período clássico compreendiam essa mesma etapa da vida como uma condição inferior da existência humana, em que os indivíduos (futuros adultos) ainda eram fracos e incapazes de se defenderem ou de articularem ideias; e, assim como as mulheres, eram excluídos da cidadania. A infância grega (paidiá), tal como percebida na época, entendia a criança como um ser inferior ao adulto, um indivíduo em miniatura, alguém débil. Nesse sentido, não havia, por extensão, uma concepção educativa específica para esse público, tal como foi proposto por Rousseau no Emílio (1762), por exemplo. Platão não sugeriu um conteúdo exclusivo, eminentemente voltado para a formação das crianças e dos jovens, mas, tão somente, fez um recorte da tradição, separando o adequado do inadequado para esses mini-educandos.

Esta Tese está estruturada de forma a tentar corroborar a hipótese de pesquisa já descrita, verificando, no texto filosófico, passagens e conceitos que a fundamentem. Partimos do caráter mais geral do pensamento platônico, incluindo o seu contexto histórico e as tensões que originaram sua concepção educativa, para o âmbito particular: a resposta à questão da educação pelas imagens. A breve descrição dos capítulos, logo em seguida, visa informar o leitor sobre o sentido do itinerário proposto, de modo a antecipar boa parte do conteúdo nessa espécie de síntese comentada.

No primeiro capítulo, trataremos do percurso educativo proposto por Platão na

República. A escolha desse diálogo, como base para a compreensão das etapas da formação

sensível e intelectual dos cidadãos se deve, sobretudo, à posição de centralidade da República em relação às questões pedagógicas, morais e políticas. Além disso, é nessa obra em que estão

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concentrados os principais temas da filosofia platônica. O diálogo consiste, assim, no alicerce teórico para as especulações (posteriores) em torno de assuntos mais específicos: a ontologia das imagens e a educação imagética. Não obstante, Platão também aborda a temática da educação em outros escritos, tais como as Leis, o Protágoras e o Mênon, por exemplo. Contudo, não poderíamos tomá-los como base para explicitar o percurso educativo platônico, pois a melhor configuração dele (sua estrutura lógica) encontra-se disposta na República, em especial, nas passagens da alegoria da caverna e do símile da linha segmentada. Essa noção de percurso educativo surge a partir da verificação de que a formação dos educandos, tal como sugerem os Livros II e III da República, é algo que se dá por etapas. Nosso intento de validar tal noção (não utilizada pelo filósofo no texto) esbarra nos limites que a interpretação do diálogo nos permite alcançar. Ao passo que desejamos atribuir a Platão a ideia de uma educação pautada por etapas, e a isso damos o nome de “percurso educativo”, nossa compreensão dela, por sua vez, se vê atrelada ao que o filósofo realmente escreveu em seu texto. A noção de percurso é, assim, um artifício empregado na Tese para concentrar e denominar (dar corpo) o sentido educativo pensado por Platão (com início, meio e fim). Tal processo resulta, pois, de uma liberdade de interpretar o texto. A primeira parte deste capítulo tem como objetivo situar as imagens (localizar sua posição) dentro do percurso educativo, bem como destacar sua função epistemológica e atuação pedagógica.

No segundo capítulo, examinaremos o estatuto ontológico dessas mesmas imagens, isto é, o grau de proximidade e semelhança entre elas e o Ser do objeto (modelo, Forma ou Ideia). Para isso, identificaremos e interpretaremos aquilo que Platão compreende por “imagem”, tendo como base alguns de seus escritos, dentre eles Crátilo, Sofista, A República,

Carta VII, Parmênides, Protágoras e o Banquete. A palavra “imagem”, assim traduzida para a

língua portuguesa, bem como outras igualmente relacionadas aos elementos visuais ou imaginários, tais como pintura, metáfora, reflexo e sombra, geralmente, aparecem nesses textos relacionadas a dois termos gregos, eikon e eidolon. Neste momento da Tese, tentaremos jogar luzes à singularidade desse conceito (agregador de múltiplos elementos) no conjunto dos diálogos, particularmente, no que tange ao seu papel educativo. A imagem, tal como a interpretamos, será a peça fundamental para a construção dos argumentos em torno da formação sensível. Essa construção, por sua vez, passa pela desconstrução (ou revisão) dos dualismos imputados a Platão pela História da Filosofia. O Parmênides e o Sofista foram, quanto a isso, decisivos para a compreensão do caráter intermediário da imagem. Condição essa, que tornará possível (pelo caráter flexível da imagem) a junção e edificação de diferentes partes e conceitos platônicos. Grosso modo, a imagem seria a argamassa ontológica

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capaz de mediar as diferentes realidades epistemológicas. Este segundo capítulo é, de longe, o mais denso (talvez, até mesmo, exaustivo) de todos. Nele trataremos do “núcleo duro” da filosofia platônica. A compreensão das questões relativas ao conhecimento e ao Ser é capital para a demarcação da posição e da condição das imagens dentro do percurso educativo (capítulo I) e a verificação do modus operandi da educação imagética (capítulo III). O exame acerca do estatuto ontológico das imagens, conforme anunciado, privilegiará três aspectos centrais do pensamento platônico: a mímesis como representação, o conhecimento como dóxa e a moralidade como areté, os quais, tomados um a um, estão relacionados com a potência educativa das imagens.

A discussão proposta pelo capítulo três dá ênfase à explicitação do modo pelo qual essas imagens poderiam educar a alma, ou ainda, demonstrar, com base em diversos diálogos e passagens dos textos de Platão, a maneira como determinadas imagens infundiriam algumas virtudes nos indivíduos. Por sua vez, esse procedimento imagético de formação moral mantém um forte vínculo com duas qualidades inerentes à alma humana; a primeira delas, a condição de imortalidade e; a segunda, a possibilidade de rememorar conhecimentos anteriormente apreendidos (anámnesis). O texto principal a ser utilizado nessa etapa da pesquisa é o diálogo Fedro. Nele encontramos os elementos primordiais para uma discussão em torno do caráter educativo (e erótico) das (belas) imagens e seu impulso moralizador. No entanto, para além desse diálogo, utilizaremos, ainda, A República, o Fédon, o Mênon e o

Banquete. Pretendemos extrair de cada um deles respostas para o problema da educação,

notadamente, sobre a potência educativa das imagens e da sua capacidade de moralizar a alma. Diferentemente da tônica que demarcou a investigação no capítulo II (examinar o “núcleo duro”), o último capítulo exigirá do leitor uma espécie de cumplicidade em torno do caráter mítico-religioso do discurso platônico. Utilizaremos dois mitos para introduzir o leitor no universo (psicológico) de Platão. Não entraremos no mérito da crença ou não do filósofo sobre o conteúdo de seus argumentos. O importante será verificar a intencionalidade em atribuir ao mito um lugar de destaque dentro do discurso, por vezes, atuando em paralelo à razão; e, outras vezes, até mesmo, superando-a (enquanto fonte de conhecimento acreditado). A partir desse conteúdo mítico (também de sua estrutura), formularemos as bases para a compreensão do modus operandi da educação pelas imagens.

Para finalizar essa apresentação, reiteramos que o intuito deste trabalho consistiu em apoiar-se na teoria platônica, de modo a tomar emprestado seu pensamento, para refletir sobre a Educação. Durante os anos de escrita desta Tese, tendo o filósofo como companhia diária e permanente, indicando caminhos e abrindo novas perspectivas para entender o fenômeno da

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educação; correr-se-ia o risco, talvez, de cair na tentação (hýbris) de tomar por nossas as suas palavras. Nosso exercício de investigação teve que lidar com essa sedução; esquivar-se do canto doce das Sereias que quase enfeitiçaram Odisseu. Há muitas passagens e argumentos (especialmente míticos) em que não foi possível concordar com Platão, contudo, considerá-los e, mais, ainda, entender a lógica e o movimento do pensamento que lhe conferem sustentação é um procedimento para o qual chamamos a atenção e destacamos como profundamente válido para a compreensão do filósofo. Seu tempo e espaço não são os nossos; o contexto histórico que recebeu e concebeu Platão também está implícito nas entrelinhas de seus argumentos.

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CAPÍTULO I: O percurso educativo e a teoria do conhecimento na República

1 – A proposta educativa de Platão na República

A proposta educativa de Platão, no diálogo A República, é bastante ampla e abrangente, abarca desde questões diretamente relacionadas à formação básica das crianças e dos jovens, incluindo a seleção do conteúdo com base na tradição, até a formação última do filósofo-governante. Poderíamos considerar que, de forma indissolúvel, ela encontra-se intimamente relacionada às preocupações ou problemáticas em torno da política. Platão, enquanto planeja e sugere modelos pedagógicos e procedimentos para a educação dos indivíduos, tem em mente, sobretudo, resolver os problemas do Estado. Tais problemas, comumente recorrentes em sua época, versavam, geralmente, a respeito da capacidade intelectual e, especialmente, da conduta moral dos governantes. Nesse aspecto, proporcionar as condições necessárias para a boa formação, tanto intelectual como moral, dos cidadãos seria uma tarefa da educação. Tomando isso como eixo norteador, observamos que a educação dentro da República converge para dois pontos: para a política e para a boa convivência entre os cidadãos que compõem o Estado.

A tradutora da versão portuguesa de A República, Maria Helena da Rocha Pereira, comenta, na introdução da obra, que o termo “República”, o qual dá título ao livro, deve ser compreendido em sua própria etimologia e, com vistas a uma melhor contextualização, deve, ainda, ser retomado em seu momento histórico particular, a Atenas do século IV a.C.. Dentro desse panorama, a palavra que confere título à obra platônica, “Politeia”, possui o seguinte significado: “constituição ou forma de governo de uma pólis ou cidade-estado”, reunindo em torno de sua acepção, “tudo o que diz respeito à vida pública de um Estado, incluindo os direitos dos cidadãos que o constituem” (2001, p. XLVII). Segundo Pereira, foram os romanos que traduziram o termo do grego para seu equivalente latino “Respublica”, ou seja, a coisa pública, algo que pertencente a todos os cidadãos. Desse modo, o termo não designa, apenas, uma determinada forma de governo, mas, de um modo geral, abrange todas elas.

Para Jaeger (2001, p. 749-750), o pensamento de Platão orientou-se, desde o início, para os problemas inerentes ao bom cumprimento das leis e das normas dentro do Estado. A tirania, a corrupção das regras ou a degeneração moral dos governantes, por

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exemplo, são problemas (ou desvios de uma organização perfeita e ideal) muito graves dentro dessa comunidade política. A constituição do Estado e toda a sorte de conflitos que emanam dela foram aspectos políticos que marcaram profundamente o pensamento de Platão. Não obstante, é visível, dentro do conjunto geral de sua obra, o espaço concedido às reflexões e às discussões em torno desse tema. O testemunho deixado pelo filósofo na Carta VII demonstrou que o problema do Estado, ou os problemas relativos ao Estado, eram de ordem concreta e, necessariamente, passavam pela questão do governo. Tais problemas tinham como origem principal a degeneração política provocada, especialmente, pela catastrófica conduta moral e intelectual de seus governantes. Platão chama a atenção para a necessidade de uma conduta fi losófica para os ocupantes do cargo:

Por fim, cheguei à conclusão de que as cidades do nosso tempo são mal governadas, por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem para melhor. Daí, ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, como proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas de justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades (Carta VII, 1975, 326 a-b).

A degradação das cidades-estados gregas, conforme mencionado na passagem acima, teve como causa principal a incapacidade do seu mandatário de exercer um bom governo, bem como sua negligência para com os assuntos públicos. Grande parte da crítica platônica aos Estados existentes em sua época tinha como foco a desastrosa atuação dos seus líderes e legisladores. Platão faz referência direta a Dionísio, governante de Siracusa, pólis mais importante da Sicília grega. Segundo menciona o filósofo, na Carta VII, Dionísio exercia um governo tirânico, despótico e incompetente na manutenção da ordem social. O regime da tirania, tal como Platão o compreendeu, consiste não especificamente como forma brutal de governo – sanguinário e truculento – , mas como um tipo de poder absoluto concedido a alguém que se utiliza de meios ilícitos e imorais para governar. O tirano é, assim, um líder ilegítimo. Dionísio era o tipo de governante que Platão queria distante de sua utópica República, posto que, tal como foi descrito na Carta VII, contrariava, em grande parte, tudo aquilo que Platão almejava para sua Cidade ideal. Sob a óptica platônica, estaria depositada no filósofo (pela contemplação das verdades inteligíveis) e não no tirano a possibilidade real e efetiva de transformar o Estado concreto, politicamente decadente, num Estado justo. O triunfo

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político do Estado dependeria, assim, da permanência do filósofo no cargo de governante.

Entretanto, perguntaríamos, por que, para Platão, a solução dos problemas do Estado dependeria de um governo filosófico ou de um governante -filósofo? A resposta mais provável seria a de que a autonomia e a solidez política estariam condicionadas à capacidade pessoal de um grande líder, ao seu nível intelectual e ao seu caráter moral incorruptível. Nesse aspecto, Platão deposita suas expectativas no papel a ser desempenhado pelo melhor dentre os cidadãos, o aristocrata da razão, para a eficaz e correta condução das questões do Estado. Na República (2001, 475 b-c), veremos que o filósofo é descrito como alguém que deseja a sabedoria em sua totalidade, ou ainda, pretende acercar-se dela e buscar compreendê-la segundo uma epistemologia voltada para a contemplação das Ideias. O filósofo mantém uma atitude de philía – amizade – pela sabedoria, sophia. Daí advém uma das acepções do termo filosofia: desejar de forma desinteressada o saber, ou seja, desejar o conhecimento em sua forma autêntica e pura. Tal qualificação cabe muito bem ao indivíduo que Platão deseja colocar no poder. O Estado necessitaria, portanto, de filósofos no governo para a concretização de um governo comprometido com o saber e com as virtudes mais elevadas, principalmente, com a justiça. “O filósofo é o único homem apto a governar o Estado; pois, só ele contemplando as essências eternas, é capaz de modelar a pólis terrestre com base na Ideia de justiça” (Gobry, 2007, p. 114).

Para Platão (Rep., 2001, 500 c-502 a), o Estado concreto, a pólis terrestre, deveria tomar como paradigma a Cidade ideal, isto é, o modelo político em sua condição pura de conhecimento e constituída no mundo das Ideias, sem qualquer contaminação dos vícios e deficiências do mundo sensível. Somente o filósofo-governante possuiria as qualidades intelectuais necessárias para apreendê-la enquanto Ideia e implementá-la na concretude da esfera corruptível, isto é, nas cidades-estados existentes no cotidiano da época. Seria, desse modo, por meio do governo filosófico, que seriam mantidas a estabilidade política, pelo empreendimento e o cumprimento de leis justas e racionais, bem como a continuidade sucessória de líderes interessados em cuidar da coisa pública, da respublica. O filósofo-governante teria por tarefa adequar o ideal ao concreto, ou seja, tentar reproduzir a Cidade desenhada na República nos Estados e nas Constituições políticas existentes na época.

Na República, o filósofo propõe uma nova concepção de Estado, a qual co nsiste em um espaço regido por um conjunto de leis fundamentadas na razão e no conhecimento puro das Ideias. Contudo, a fundamentação desse Estado perfeito não

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deveria tomar como referencial as formas de governos existentes em sua época, tais como as cidades-estados já instituídas. Apesar da simpatia e admiração por regimes políticos mais austeros (especialmente a Constituição de Licurgo – um dos fundamentos da pólis espartana), Platão não enxerga nessas estruturas políticas, nem em Atenas, nem em Esparta e menos ainda em Siracusa, modelos de organização viáveis para a implementação de seu projeto de Estado justo. A politeia platônica somada a seu sentido de coisa pública, a respublica romana, sempre estiveram orientadas para o interior da

psykhé, da alma humana, tendo nela seus fundamentos epistemológicos e ontológicos.

Assim, as bases para a construção dessa nova pólis firmaram-se, de forma sólida e inabalável, às mesmas estruturas que constituem o humano, tornando-se parte dele.

O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos veem a medula da República, não tem outra função senão apresentar-nos a imagem reflexa e ampliada da alma e de sua estrutura respectiva. E nem é numa atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates m over todo o Estado (Jaeger, 2001, p. 751-752).

É nessa atitude modeladora da alma que repousa, majoritariamente, o sentido educativo proposto na República. A origem do modelo político adotado por Platão ou o objeto primordial de tal modelo estão inseridos nas estruturas da alma humana, de modo que examinar a constituição da alma no interior do indivíduo resultaria numa compreensão da composição do Estado e vice-versa. O exercício para a criação da Cidade ideal é interior, ou seja, deve partir de uma observação ou de um estudo voltado para a mais profunda análise da psykhé. O Estado deve estar em consonância com as mesmas regras que regem a constituição humana, para o filósofo, inclusive, essa Cidade não seria mais do que uma projeção ampliada das mesmas estruturas funcionais que atuam na alma. Recordemos, pois, da tríplice divisão feita por Platão nesse diálogo com respeito às classes ou às categorias sociais, são elas: os governantes, os guardiões e os produtores, sendo cada uma delas gerenciada pelos caracteres intrínsecos da alma de cada um desses indivíduos. A função da educação no interior desse panorama político seria a de modelar as almas. A educação, em seu sentido essencial, estaria em sintonia com esse projeto de extrair do interior humano o conteúdo necessário para a edificação do Estado. Da mesma maneira que um ceramista confere forma ao barro, transformando -o em vas-o, a verdadeira educaçã-o tenderia, p-or fim, a m-oldar a alma até t-orná -la filosófica. O Estado, por sua vez, necessita de almas filosó ficas para bem geri-lo. Para

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Jaeger (2001, p. 888-889), trata-se de um processo de conversão filosófica da alma, ou seja, uma atividade de direcionamento da natureza humana para uma finalidade específica: formar o governante.

A educação surge, assim, como uma tentativa de caráter prático para a solução de problemas políticos concretos, especialmente, no que tange à questão da formação do governante por intermédio de ações efetivas no campo da educação. Nesse sentido, colocar no poder os filósofos como legítimos dirigentes ou transformar os governantes dessas cidades-estados em filósofos seria, na percepção de Platão, a garantia para a instalação de um governo justo. É visível que Platão deposita uma grande expectativa na formação moral e intelectual dos cidadãos a ponto de fazer deles autênticos aristocratas da razão. Em função dessa importância, a educação tem sido um tema de frequente recorrência na República, estando, sem dúvida, inserida organicamente no seio da proposta política para a constituição do Estado, tal como o planejou Platão. Esse Estado disporia da educação, por sua vez, entendida como um projeto ou conjunto de ações para a formação dos cidadãos (Crombie, 1990, p. 213), como seu instrumento de controle e organização política. Não há possibilidade de compreender a paideia, a educação humana, em sua forma ampla, sem contextualizá-la no projeto político da politeia platônica, ou sem levar em consideração as estruturas presentes no interior da alma humana. A atitude modeladora de almas comporta-se, assim, como uma estratégia do Estado.

No entanto, em que consiste para Platão o Estado? O Estado, tal como idealizado pelo filósofo na República, é constituído como uma comunidade de indivíduos que se unem em prol da satisfação de suas necessidades mais orgânicas, tais como a alimentação e a segurança. Assim, segundo teoriza o filósofo, o surgimento das cidades tem como razão principal a possibilidade de, por meio de uma organização política, sanar grande parte das necessidades mais primordiais dos seres humanos.

Uma cidade tem a sua origem, segundo creio, no fato de cada um de nós não ser autossuficiente, mas sim necessitado de muita coisa. Ou pensas que uma cidade se funda por qualquer outra razão? (...) Assim, portanto, um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda para outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem numa só habitação companheiros e ajudantes. A essa associação pusemos o nome de cidade (Rep., 2001, 369 b-c).

Os indivíduos habitantes dessa cidade deveriam permanecer dispostos em três classes sociais hierarquicamente distintas: os produtores, os guardiões e os governantes. Cada uma dessas classes seria responsável pela execução de determinadas tarefas dentro

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do Estado. Aos produtores, caberiam as atividades de comércio, manufatura e agricultura, as quais se caracterizam por ser de caráter manual, visando suprir as necessidades materiais da comunidade. Aos guardiões, caberia a defesa do espaço territorial frente aos inimigos externos e a manutenção da ordem pública dentro do s limites geográficos, tarefas que equivalem, dentro dos Estados modernos, à dos soldados e da polícia. Aos governantes, por sua vez, caberia a condução do Estado, ponderando racionalmente e instituindo leis voltadas para o bem geral da comunidade, tendo p or princípio ideal e norteador da conduta moral a dikaiosýne, isto é, a justiça.

No Estado projetado por Platão, os indivíduos não possuiriam o mesmo status de igualdade política, haveria uma hierarquia rigorosa organizada segundo a capacidade intelectual e a moralidade de cada um deles. Platão considera que tais diferenças são naturais e inatas nos indivíduos. Os governantes deveriam, pois, considerar tais qualidades como força, destreza, inteligência, beleza, dentre outros atributos, para selecionar os indivíduos para as funções que lhes caberiam realizar. Platão empreende em seu texto uma legitimação de caráter religioso e metafísico daquilo que considera como desigualdades naturais dos indivíduos. Por meio do mito das raças, o filósofo pretende convencer seu interlocutor de que tais qualidades inatas aos seres humanos resultariam, na verdade, da composição metálica que cada indivíduo levaria em sua alma por designação e vontade dos deuses. Essa concepção mítica não era algo novo para os gregos daquela época, muito antes de Platão assimilá-la na República, essa crença de almas metálicas já estava presente na cultura tradicional, como em Hesíodo, de modo que pode ser vista, grosso modo, como algo amplamente aceito na época de Platão:

Vós sois efetivamente todos irmãos nesta cidade – como diremos ao contar-lhes a história – mas o deus que vos modelou, àqueles dentre vós que eram aptos para governar, misturou-lhes ouro na sua composição, motivo porque são mais preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e demais artífices. Uma vez que sois todos parentes, na maior parte dos casos gerareis filhos semelhantes a vós, mas pode acontecer que do ouro nasça uma prole argêntea, e da prata, uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos outros (Rep., 2001, 415 a-b).

Platão estabelece, pois, uma hierarquia entre as classes sociais apoiando -se numa justificativa mítica, a qual, perfeitamente, condiz com suas pretensões para o Estado. Segundo conta a tradição poética, a alma de todos os indivíduos é constituída por espécies de metais, tais quais ouro, prata, ferro e bronze. Na ocasião do nascimento desses seres mortais, os deuses depositaram, em cada um deles, uma quantidade específica de determinado metal. A combinação dos metais e sua quantidade na alma de

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cada ser seria a métrica natural para delegar funções no ambiente da sociedade. Desse modo, os indivíduos que possuem ouro nas almas ou, ainda, aqueles que possuem mais ouro do que outro metal na sua constituição anímica, por exemplo, deveriam com por a classe dos governantes, pois, naturalmente, fariam parte de uma raça áurea, superior por excelência. Os que tiveram suas almas forjadas com prata iriam compor a classe dos guardiões, intermediária. Já os indivíduos que não apresentassem nenhum dos do is metais preciosos em sua constituição anímica, mas ferro e bronze, por exclusão, deveriam compor a classe dos produtores, o nível mais elementar da sociedade.

Para constituições anímicas diferentes, seriam necessários, também, modelos educativos igualmente diferenciados. A educação tradicional, pautada pela poesia e pela oralidade, foi durante muitos séculos (desde 800 a.C. até o período áureo ateniense), o grande modelo pedagógico entre os gregos. Platão sustenta um quadro de pretensas desigualdades naturais a partir de elementos internos da tradição e pretende, imbuído dessa ideia, fundamentar a sua proposta educativa. Notamos, no texto platônico, a inversão de um raciocínio discursivo, de modo que a criação de argumentos visa justificar a postura política de Platão, tendo em vista as qualidades ou atributos naturais da alma humana. O filósofo parece atuar num sentido contrário ao que propõe, pois lança mão de um mito e faz uso de elementos da crença popular, tal como a menção ou retomada de aspectos do mito das raças de Hesíodo, para incutir no seu interlocutor a ideia de que a organicidade ou a naturalidade do Estado está em consonância com o cosmos do qual todos fazemos parte. Para imprimir em seu leitor a ideia anteriormente referida, o projeto político platônico tende a ser colocado como objeto teleológico ou como finalidade última, sendo desenhado como uma necessidade a ser alcançada, tendo em vista seu caráter universal e necessário. Nesse sentido, o pressuposto da natureza humana, como fonte e origem do Estado, assemelhar-se-ia muito mais a uma estratégia discursiva do texto. Estratégia que tenta, sobretudo, nos convencer da organicidade política e das estruturas naturais desse Estado, do que, propriamente, da busca por sua autêntica fundamentação epistemológica e da clareza de sua ontologia.

Ao assumirmos que o sentido da educação platônica tende para a formação do bom cidadão para as específicas atividades internas do bom Estado, ou ainda, para a transformação do indivíduo humano em um ser político obediente à razão e ao filósofo-governante, poderíamos nos questionar a respeito do tipo de educação que o Estado deveria fornecer para seus súditos. Estamos cientes de que, dada as desigualdades naturais, advogadas por Platão, nem todo habitante do Est ado estaria capacitado a

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governá-lo. Além disso, tornar-se filósofo não é algo que estaria ao alcance de qualquer indivíduo e, seguindo a lógica platônica, apenas uma minoria teria tal capacidade. Desse modo, de qual espécie ou modelo de educação estaríamos tratando, haja vista que o Estado necessita de que todos os cidadãos recebam, pelo menos, um grau mínimo de instrução? A proposta educativa platônica já, aqui, assume seu caráter aristocrático. Contudo, a aristocracia que Platão pretende educar não é a m esma que a tradição retratou em suas epopeias. Aquela, por sua vez, tinha em vista a formação do guerreiro viril, do nobre dotado de conhecimentos bélicos e preparo físico para as constantes batalhas entre as tribos gregas. O aristocrata platônico não é outro, senão, o ser pensante, ou seja, o sábio que reconhece sua ignorância, mas que busca supri -la por meio do conhecimento. Outro predicado que pode ser atribuído por este aristocrata é o de portar um horizonte e um norte voltado ao mundo das Ideias.

De acordo com a proposta educativa de Platão, para os indivíduos ou classes diferentes são necessários modelos de educação igualmente diferenciados e adequados às suas naturezas. Essa atividade de ensino, de caráter público e ministrada pelo Estado, não pode ser identificada como um direito cidadão, pois a noção de direito universal à educação é um conceito recente. No período clássico, mesmo nas cidades mais liberais, como Atenas, berço da democracia e centro de convergência das artes e do comércio, a educação estava vinculada ao tempo de ócio, scholé, característica do estilo nobre e aristocrata. Com o advento da sofística, esse círculo de atuação ampliou -se para a classe do demos detentora de bens materiais – os metecos. Faziam parte do currículo formativo dessa nobreza as instruções militares e a formação pela ginástica e pela música; contudo, esse modelo pedagógico não era uma atividade voltada para a educação geral dos habitantes da cidade-estado. Segundo Platão, a deliberação sobre os assuntos educativos d eve ser da alçada do filósofo estadista – o filósofo-governante. Caberia ao governante, por exemplo, decidir o que deve ou não ser oferecido às crianças, aos jovens e aos adultos. Além disso, caberia a ele, ainda, a seleção de quem deve ou não ser instruíd o para realização de determinada atividade. A educação, como qualquer outro tema estratégico do Estado, deve ficar sob o comando do governante, visto que ele é o indivíduo que possui maior conhecimento e melhor discernimento sobre os assuntos mais importan tes relativos à pólis (Rep., 2001, 379 a).

E, como se faz para que os filósofos assumam o governo ou os governantes se tornem filósofos? Educando os habitantes do Estado, de modo que neles seja infundido, aflorado e naturalizado o desejo por um bom governo, um governo justo. O ideal de

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justiça deve ser lapidado dentro da alma de todo indivíduo que compõe o Estado, independente da função que ele assuma na sociedade. O procedimento educativo consiste em fomentar, nos indivíduos, as condições espirituais e, no Estado, as condições materiais. Isso possibilitaria, por sua vez, a criação das condições para a implementação e a manutenção de um regime político estável e sóbrio.

Para Platão, a educação é uma atividade que se articula em duas frentes: na configuração das classes sociais dentro do Estado – uma macro educação, e na orientação das atividades da alma – uma micro educação, modeladora das almas. Platão enxerga uma equivalência entre as potências da alma e as estruturas do Estado. A educação é uma atividade que ocorre no interior dos indivíduos e se exterioriza na organização política do Estado. Este é um reflexo, uma projeção ampliada daquilo que acontece na alma humana. Acompanhando a lógica dessa fisiologia, se a alma estiver saudável, o Estado, seguramente, prosperará politicamente. A educação deve, em benefício do Estado, corrigir as deficiências da alma humana tornando o indivíduo excelente. Essa noção de excelência ou virtude, areté, deriva do próprio modo de vida do aristocrata, o áristos. Essa virtude, num sentido moral, é aquilo que força a alma para o bem, para seu sentido natural e orgânico.

A educação promove, internamente, a harmonia entre as potências que constituem a alma humana. Na República (2001, 429 e-441 c), Platão “distingue três espécies de virtudes. Em função das potências da alma e das classes sociais”. Vejamos de que modo o filósofo distingue essas potências, as quais serão três: 1) concupiscência, epithymía, “que tem sede no ventre e preside a vida vegetativa; 2) o coração, thymós, que tem sede no peito e preside a vida afetiva (...) e, por fim, 3) a razão, lógos, que tem sede na cabeça e preside a vida intelectual” (Gobry, 2007, p. 20). No âmbito interno, a educação estabelece o controle da racionalidade sobre as partes concupisc ível e irascível, organizando as partes da alma de forma a conduzi-las em direção à justiça. Assim, a estabilidade política do Estado depende da equilibrada organização interna na alma do indivíduo. A justiça se manifesta, inicialmente, dentro do indivíduo , como uma espécie de saúde da alma, e, depois, se exterioriza nas estruturas do Estado. As potências da alma, quando adequadamente organizadas, conferem condições para que os indivíduos possam realizar suas atividades dentro do Estado, desempenhando suas funções da melhor maneira possível, ou melhor, de forma excelente. Essa harmonia entre os papéis e as virtudes, Platão denomina justiça (Rep., 2001, 439 d).

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é o resultado da perfeita ordenação tanto das potências da alma quanto das três classes sociais. Uma alma torna-se justa quando permite que a razão a domine e a conduza. Do mesmo modo, um Estado se torna justo quando permite que o governante filósofo o governe. Na alma, a potência racional deve se sobrepor à potência irascível, assim como o guardião deve obedecer ao governante. Platão definirá a temperança, sophrosýne; a coragem, andreía e a sabedoria, sophia, ao longo do diálogo. Dessa forma, “a temperança é uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos prazeres e desejos” (Rep., 2001, 430 e). É a virtude que tem o papel de regular a concupiscência, característica própria da classe dos produtores. A coragem regula o coração, a vida afetiva, e é própria dos guardiões. A sabedoria, própria dos governantes, regula a razão e, por ser a mais elevada, comanda as demais virtudes (Gobry, 2007, p. 20).

O propósito da educação é, assim, a manutenção da dikaiosýne, por meio da alma ou por meio do Estado justo. Essa virtude tem sua origem na alma e seu fim no Estado. Por meio de soluções dispostas no mundo das Ideias – por paradigmas ideais que orientam nossas ações, os governantes-filósofos deverão sanar os problemas políticos concretos no Estado. A Ideia de justiça constitui um desses paradigmas, assim como outras virtudes similares. Diz Sócrates: “Creio que a nossa cidade, se de fato foi bem fundada, é totalmente boa (...). É, portanto, evidente que é sábia, corajosa, temperante e justa” (Rep., 2001, 427 e). Essas são as quatro virtudes cardeais, conhecidas desde os tempos antigos pelos gregos. A justiça como harmonização das partes, das virtudes e das classes, manifesta concretamente o destino natural do Estado e da própria alma humana. Nesse sentido, a educação é um processo de conversão: abandonar o modo de vida injusto e instaurar a harmonia e a dikaiosýne como seus elementos norteadores.

As atividades anímicas individuais e particulares possibilitam a estabilidade política na macro esfera. A razão deve reinar soberana nes sas duas instâncias assegurando que a alma obedeça à sua natureza; essa, por sua vez, explicitada pelo mito das raças. Uma alma justa é aquela que permite que a razão a guie, desempenhando, assim, seu papel dentro da engrenagem política de forma excelente. A razão é a parte superior da alma, assim como o governante é a figura superior do Estado. A justiça também consiste na obediência ao que é racionalmente superior. A educação, nesses termos, é política, na medida em que tem como função conferir às almas s uas bases morais e intelectuais, tornando o indivíduo apto ao exercício de seu papel político. Essa participação se concretiza, por meio das classes sociais, organizadas em torno de suas funções e sempre em benefício do Estado (Alves, 2010, p. 38 -40).

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O período específico de formação para cada classe social e o tipo de instrução que lhe deve ser oferecido é um longo assunto tratado por Platão na República, sobretudo nos Livros II, III e VII. Segundo o filósofo, essa formação deve ter início ainda na infância e se estender até a plena maturidade intelectual, por volta dos cinquenta anos de idade. Todas as crianças nascidas no Estado, inclusive as do sexo feminino, deverão receber um tipo de instrução básica, elementar, até a idade de sete anos. Platão não deixa explícito nessa parte do diálogo qual deveria ser a proposta educativa para esse público iniciante; no entanto, ele nos apresenta uma série de preceitos sobre o que se deve ou não ensinar às crianças. Ainda em idade pueril, devem ser submetidas à educação geral, a qual é promovida para todas as crianças, tal formação visa moldar a moralidade e dotá-las de condições para seguirem com os estudos de nível abstrato.

Quando são adolescentes e crianças, deve empreender-se uma educação filosófica juvenil, cuidando muito bem dos corpos, em que se desenvolvam e em que adquiram a virilidade, pois eles são destinados a servir à filosofia. À medida que avançam na idade, em que o aluno começa a atingir a maturidade, devem intensificar os exercícios que lhe dizem respeito; quando as forças os abandonarem, e os puserem à margem da política e da guerra, então devem deixar-se pastar em liberdade, como os animais sagrados, e não fazer mais nada, a não ser como passatempo, se se quiser que vivam felizes e que, depois de alcançarem o termo da vida que lhes coube, entrem na posse do destino no além que está à sua altura (Rep., 2001, 498 b-c).

De acordo com a proposta educativa disposta na República, o Estado deve assegurar que todas as crianças recebam o mesmo tipo de formação até a idade dos sete anos. Após essa idade, todas elas serão submetidas a uma rigorosa avaliação em que somente as que apresentarem aptidões físicas, morais e intelectuais permanecerão recebendo educação do Estado. As crianças, de ambos os sexos, deverão ser educadas juntas, num ambiente em que os governantes possam observar de perto o percurso dessa formação. Platão considera que, todas as crianças nascidas na cidade, são filhas do Estado, ou ainda, pertencem a ele. Os filhos e filhas de todas as classes, ainda bebês, deverão ser afastados de suas famílias, de modo a adaptar a criança ao convívio comunitário. Essa primeira seleção visará, ainda, escolher, dentro do conjunto de todas as crianças da cidade, quais irão compor a classe dos produtores e quais pertencerão à classe dos guardiões.

As crianças reprovadas no exame de seleção serão encaminhadas para as atividades profissionais, passarão a fazer parte da classe dos produtores e nela permanecerão por toda a vida. Cada uma delas, a julgar pelo seu perfil e pela sua aptidão, será designada ao cumprimento de uma tarefa específica no Estado. Para Platão, cada indivíduo é capaz de

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executar apenas uma atividade com perícia; por isso, requer-se a especialização em determinada tarefa e não a atuação em múltiplas funções. Assim, um ceramista consegue executar com habilidade somente a função que lhe cabe: fabricar utensílios de argila e, dessa forma, executará seu papel de forma justa, única e excelente. Cada indivíduo ocupa sua posição exercendo não mais que a sua profissão; pois, segundo diz Platão: “penso também que, em primeiro lugar, cada um de nós não nasceu igual ao outro, mas com naturezas diferentes, cada um para a execução de sua tarefa” (Rep., 2001, 370 a-b).

Para a classe dos produtores, parcela que realiza os trabalhos manuais e o comércio, bastará uma formação inicial geral e comum a todas as crianças. Esse tipo de instrução abarca os conteúdos gerais da cultura oral e pretende infundir a temperança como virtude preponderante na alma dos educandos. A temperança, por sua vez é a virtude própria da classe dos produtores, apesar de não estar restrita a eles. Para Platão, os guardiões e os governantes, igualmente, devem adquirir a temperança, cuja aquisição se dá ao longo da instrução geral recebida por todas as crianças. O domínio dos prazeres e do excesso de riquezas constitui um valor fundamental e desejável não apenas para os produtores. Platão é consciente dos riscos de se permitir que os produtores percam a medida daquilo que é verdadeiramente necessário para a vida na cidade. Assim, quando se aprende a lidar com os desejos, submetendo-os sempre ao julgo da razão (sua potência anímica superior), há, para Platão, no âmbito do Estado, o pleno funcionamento das atividades vitais, que será materializado no bom governo.

Os produtores são comparados, na República (2001, 375 a), a rebanhos de gado ou de ovelhas. A existência dessa classe está condicionada ao cumprimento de funções voltadas para o trabalho manual, para a produção de bens materiais e de riquezas. Essa classe não dispõe de tempo livre para o desenvolvimento moral e intelectual, indispensáveis à aristocracia. Além disso, não oferece riscos ao regime político pelo fato de não ter preparo militar, mas, apenas, instruções elementares voltadas para o cumprimento de suas tarefas técnicas. Por se tratar da camada mais inferior do Estado, de alma concupiscível e opinião facilmente influenciável, Platão deseja mantê-los constantemente dependentes da defesa, por parte dos guardiões, e do comando, por parte dos líderes. Rebanhos, de acordo com a alegoria platônica, sejam eles constituídos por ovelhas ou bois, podem ser controlados sem maiores dificuldades pela força física e pela ofensiva de cães de guarda obedientes e treinados, de modo que os guardiões desempenhariam esse papel sem maiores dificuldades, seguindo a ordem de seus pastores governantes.

Não é do interesse do Estado a continuidade da formação da classe dos produtores, porque isso seria algo perigoso para a estabilidade política. Platão julga que a massa não é

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capaz de pensar os problemas e as questões do Estado e que, portanto, deve ser permanentemente vigiada e conduzida. Não é do interesse dos governantes estabelecer um equilíbrio de forças entre a massa dos produtores e as elites guardiãs e governantes. Além disso, ao oferecer uma instrução mais prolongada aos produtores, eles teriam menos tempo e disposição para o cumprimento de suas obrigações produtivas. Se os produtores não trabalhassem, a aristocracia teria de fazê-lo e isso, segundo a ordem natural das coisas, não seria algo que competiria aos nobres. O trabalho era considerado uma atividade degradante na antiguidade, uma tarefa a ser cumprida pelos escravos ou pelos estrangeiros da cidade. A equitação, os treinos militares, o estudo da música e dos poetas eram atividades típicas da aristocracia – modelo de educação tradicional, paideia antiga. A vida ociosa, a scholé – da qual deriva o termo escola – significava, para o grego clássico, o principal fator de diferenciação entre os indivíduos e entre as classes. O ócio era tido como um direito natural da aristocracia, garantido mais pela sua superioridade física, moral e intelectual, do que pelos bens materiais (Austin; Vidal-Naquet, 1972, p. 106).

Após essa primeira seleção, tem início a etapa de formação preparatória para a classe dos guardiões. A partir desse momento, somente as crianças e os jovens com potencial para o cargo de governo receberiam a educação do Estado. Durante todo esse período de formação propedêutica, dos sete aos vinte anos de idade, os discípulos frequentariam os espaços designados a um tipo de instrução apropriada para sua idade e profissão. Essa primeira etapa teria por objetivo a formação física e moral desses jovens e crianças. É, essencialmente, nessa fase da vida do discípulo, que ele, sob os cuidados dos mestres preceptores, teria maior propensão em moldar sua moralidade e sua constituição física. Entre os sete e os vinte anos de idade, receberia uma formação básica e preparatória, pautada pela música e pela ginástica – nos moldes da antiga divisão estabelecida pela tradição: música (mousiké), para a formação da alma e ginástica (ginastiké), para o fortalecimento do corpo (Rep., 2001, 376 e). O tempo dedicado à educação musical deve ser mais prolongado que o treinamento físico, pois Platão considera que a alma deve receber maiores cuidados do que o corpo. Além disso, a formação moral da alma deve ter seu início muito antes da ginástica. Desse modo, somente ao final dos dezessete anos de idade, após o período musical, o educando tomaria contato com as atividades físicas. Essa primeira etapa, sensorial e moralizadora, pretende estabelecer os fundamentos morais na alma dos guardiões. Trata-se, ainda, de uma condição necessária para a continuidade dos estudos, em um nível cada vez mais abstrato, ou seja, a formação intelectual dos governantes. A educação pelos conteúdos da tradição é de caráter cívico e militar, tendo como objetivo inculcar certos valores imprescindíveis para a boa atuação dos

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guardiões dentro do Estado, principalmente, a coragem (andreía) enquanto virtude hegemônica.

Para Platão, a educação da alma, promovida pela música, requer maiores cuidados e atenções, devido à condição de superioridade e imponência da alma (psykhé) em relação ao corpo (sóma). A música, entendida aqui como arte das Musas ou conjunto geral da poesia grega, visa promover a formação moral da alma do jovem guardião.

Platão exige que se comece pela formação da alma, isto é, pela música. No sentido lato da palavra grega mousiké, esta não abrange apenas o que se refere ao tom e ao ritmo, mas também – e até em primeiro lugar, segundo o acento platônico – a palavra falada, o lógos (Jaeger, 2001, p. 768).

Todas as referências à boa ou à má conduta são exemplificadas por meio da cultura tradicional, especialmente pela poesia homérica. O caráter musical desse modelo educativo tradicional está atrelado, principalmente, às raízes de uma oralidade poética que remonta à literatura e à sonoridade de um modo geral, aspectos culturais que ma rcaram decisivamente a paideia grega. Devido ao seu teor aprazível, sedutor e principalmente educativo, a literatura deveria ser vigiada e controlada por regras e limites, de modo a infundir na alma do guardião apenas os elementos apropriados, tais como a virtude da coragem, da valentia, bem como a irrestrita obediência aos governantes.

A música detém, dentro do texto platônico, uma função propedêutica, qual seja: conferir à alma dos guardiões as bases morais e sensíveis para a continuidade dos estudos no nível abstrato. Na República (2001, 377 b), Platão assume que, somente a música é capaz de penetrar no espírito e infundir nele as atitudes nobres e essenciais para o desenvolvimento do seu caráter intelectual; por isso, a educação musical deve ser ministrada numa etapa anterior ao desenvolvimento intelectual, por meio de conteúdos e exercícios abstratos, como os estudos matemáticos. A música deveria, ainda, ser anterior ao fortalecimento do corpo, o qual se dá por meio da ginástica. O motivo para essa predileção pelos estudos musicais (pelo menos numa idade inicial do discípulo) consiste na atuação do conteúdo musical para o estabelecimento, na alma dos guardiões, de um conjunto de valores morais basilares para a execução de suas funções, especialmente, no que tange à identificação do bom e do belo, distinguindo-os dos vícios e caracteres inferiores. A educação musical é preparatória para a assimilação do conhecimento científico, verdadeiro e inteligível, que, somente, poderia ser alcançado por uma alma justa, ou ainda, por um indivíduo capaz de verificar nas ações, nos objetos e nas instituições o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, o que é virtuoso e aquilo que é nocivo. Sobre o aprimoramento dessa habilidade de averiguar qualidades,

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Platão propõe o desenvolvimento da capacidade intelectiva. Assim, somente poder-se-ia conhecer o Bem, sendo bom ou identificando-o com propriedade nas instâncias do mundo sensível.

O corpo, por sua vez, ainda que inferior à alma, é um instrumento essencial para a defesa do Estado, sobretudo, contra os inimigos externos e os dissidentes internos. Por isso, o guardião deve ter como requisitos elementares boa saúde e adequado preparo físico para o exercício de sua função. A ginástica, como segunda parte dessa primeira etapa educativa, teria como função não apenas a promoção da saúde e o fortalecimento do corpo, mas também a prática do estímulo da potência irascível da alma do guardião. O irascível deve sempre estar submetido à razão, embora Platão deseje que os guardiões do seu Estado sejam educados de forma austera e rigorosa. A prática da ginástica deve começar por volta dos dezessete anos e seguir até os vinte anos de idade, visando fortalecer o elemento colérico nos jovens e também tornar o guardião mais corajoso diante das adversidades no cumprimento de sua função bélica.

Passada essa primeira etapa de instrução, haverá outra avaliação entre os jovens guardiões, a fim de selecionar os melhores para a continuidade dos estudos. Os jovens física e moralmente mais bem preparados para as atividades de defesa e mais intelectualmente capacitados para as atividades mais abstratas continuarão nos estudos, enquanto os demais alunos serão designados para a execução de tarefas de menor importância no Estado.

A segunda etapa educativa consiste numa formação mais elevada dos aspirantes ao governo do Estado. Trata-se de um conjunto de instruções de nível intelectual que começa aos vinte e um anos e se estende até os cinquenta. Em um primeiro momento, por um período de dez anos, o discípulo deverá tomar contato com as ciências matemáticas: a aritmética, a geometria, a estereometria ou geometria dos sólidos, a astronomia e a harmonia musical. Nessa segunda etapa, todos os conhecimentos anteriormente adquiridos durante a etapa educativa propedêutica seriam estudados na sua essência pelas ciências matemáticas e pela dialética. A educação matemática atuaria, pois, na formação da cognição, situando-se num estágio intermediário entre a sensibilidade e a pura abstração. Aos jovens selecionados e maiores que vinte e um anos, seriam apresentadas as ferramentas para a criação de hipóteses sobre a essência dos objetos sensíveis, isto é, seriam exibidos a tais jovens conhecimentos em sua forma pura, Ideias ou paradigmas. O objetivo desses estudos é desenvolver no guardião habilidades inteligíveis por meio do gradual afastamento do sensível e aproximação do caráter inteligível das Ideias quantificado pelos números.

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da dialética, graças à qual o filósofo pode chegar a conhecer a essência das Ideias. Por quê? Porque os entes matemáticos não são Ideias. Eles são entes relativos. As Ideias, pelo contrário, são realidades qualitativas e absolutas. De fato, os números um, dois, três, não importa qual seja o número, só tem uma realidade, ou seja, aquela que está relacionada a outro número (...). Do mesmo modo, uma figura geométrica pode representar uma superfície delimitada que esteja relacionada com outra. Por exemplo, um círculo pode conter um quadrado, um triângulo ou o inverso. As Ideias representam as realidades absolutas, às quais nada poderíamos cercear ou reduzir, tais como as Ideias de belo, de justo, de homem e de cavalo atribuem a tudo que é belo, justo, homem e cavalo suas qualidades de beleza, de justiça, de humano e de equino (Piettre, 1989, p. 28-29).

O valor da matemática, como ciência preparatória para a dialética, consiste em conduzir o raciocínio para os números em si mesmos, independentemente das unidades sensíveis, isto é, da quantidade de objetos concretos. Em relação à geometria, por exemplo, o exercício do raciocínio não está voltado para a figura geométrica, nem, tampouco, para sua representação, mas voltado está à possibilidade de se obter relações geométricas independentes dos objetos geométricos representados. A relevância dessa ciência, assim como da matemática como um todo, está em seu caráter puramente intelectual, dissociado dos sentidos. A matemática e a geometria permitem o raciocínio sobre elementos perfeitamente idênticos. Os números e as figuras iguais são possíveis, somente, devido à existência inteligível desses entes matemáticos, os quais são concebidos pela intuição intelectual ou pela ciência das Ideias.

Num segundo momento, dar-se-ia a iniciação aos estudos da dialética, disciplina ministrada unicamente para aqueles que demonstrassem capacidade intelectiva e compreensão da natureza abstrata dos objetos matemáticos. Por meio da dialética, o discípulo seria introduzido ao conhecimento puro das coisas, à sua essência, à sua Ideia original. Essas essências ou Ideias, por sua vez, somente poderiam ser alcançadas mediante o uso da razão dialética, isto é, sem o intermédio dos sentidos ou de qualquer instrumento passível de materialidade. As hipóteses matemáticas servem como instrumentos intermediários para o preparo intelectual do discípulo, provisórias, importantes para os estudos da dialética – ciência filosófica. Na geometria, poderíamos tomar como exemplo o caso das formas geométricas. Há a forma em si mesma, isto é, o círculo em si mesmo, a Ideia de triângulo, retângulo, etc. – objetos puros do conhecimento, e, também, suas representações: o desenho de um triângulo, o formato cilíndrico de um vaso, ou ainda, a linearidade de um traço. Nesse sentido, afirma-se que: “O filósofo vai além das hipóteses consideradas, pois ele se interroga sobre o que seja um círculo, um triângulo, um quadrado, o número um ou dois, um número par ou ímpar. Em resumo, ele raciocina no absoluto” (Piettre, 1989, p. 29).

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