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Estilização, estilização paródica e manejo de personas

1.3 Por uma sociolinguística integrativa: da complementariedade entre a “poética sociológica” de Bakhtin e a “teoria da prática” de Bourdieu

1.3.3 Estilização, estilização paródica e manejo de personas

As reflexões de Bakhtin ([1975]1988) acerca da estilização nos mostram ainda um outro processo de “aclaramento recíproco internamente dialógico das linguagens” (BAKHTIN, [1975]1988, p. 160) no qual as intenções do discurso que representa levam à “destruição desmascaradora” do discurso representado. Tal fenômeno foi chamado por Bakhtin de “estilização paródica”. De acordo com o pensador, o processo de estilização propriamente dito e a paródia em sua essência constituem limites, como duas pontas de uma linha na qual se distribuem

(...) formas as mais variadas, formas de linguagem mutuamente esclarecidas e híbridos diretos, determinados pelas inter-relações as mais variadas das linguagens, de desejos verbais e discursivos que se encontram no interior de um único enunciado. O conflito que ocorre em relação àquele que o parodia, o grau de representação das línguas sociais assim como o grau de sua individualização na representação, o plurilinguismo que o cerca, enfim, sempre funciona como fundo dialógico e ressonador –cria a variedade de

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procedimentos da representação da língua de outrem (BAKHTIN, 1988, p. 161).

No meio de tal contínuo, estaria a estilização paródica, fenômeno ao qual nos voltamos neste trabalho. Para o filósofo, a estilização paródica é fenômeno por meio do qual “recria-se a linguagem parodiada como um todo substancial, que possui sua lógica interna e que revela um mundo especial indissoluvelmente ligado à linguagem parodiada” (BAKHTIN, [1975]1988, p. 161).

Dados tais pressupostos, ao refletir sobre a natureza do fenômeno da estilização paródica, Bakhtin expõe que o que a difere do fenômeno da estilização propriamente dita é o fato de que na estilização paródica haveria um uso não produtivo, mas destruidor, do discurso representado, o que configuraria uma forma de resistência do discurso estilizante ao discurso estilizado:

Num outro tipo de aclaramento recíproco internamente dialógico as intenções do discurso que representa não estão de acordo com as do discurso representado, resistem a elas, representam o mundo real objetivo, não com o auxílio da língua representada, do ponto de vista produtivo, mas por meio de sua destruição desmascaradora (BAKHTIN, [1975]1988, p. 160-161)

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Ao refletir, portanto, sobre os fenômenos que discutimos até aqui, Bakhtin observa que as línguas do plurilinguismo que adentram o romance são representadas conforme um plano social e histórico mais ou menos objetivado:

todas estas linguagens, mesmo quando não são encarnadas num personagem, são concretizadas sobre um plano social e histórico mais ou menos objetivado (apenas uma linguagem que não se assemelha a outras pode ser não objetivada) e, por isso, atrás de todas elas, transparecem as imagens das pessoas que falam, em vestimentas concretas sociais e históricas. (BAKHTIN, [1975]1988, p. 137).

As vestimentas sociais e históricas que se fazem presentes no trabalho de estilização são reflexo de um trabalho bastante seletivo, por meio do qual determinados

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elementos ganham relevo e outros se tornam menos salientes. Assim, é importante compreendermos que, como propõe Bakhtin, o que caracteriza fenômenos como a estilização e a paródia é o fato de que o discurso neles não apenas representa, mas é representado (BAKHTIN, [1975]1988, p. 138). A linguagem se tornaria, então, objeto de reprodução livre e artisticamente orientada. Para Bakhtin ([1975]1988), o distanciamento entre a linguagem representada e a realidade empírica pode ser muito importante:

não só apenas no sentido de uma seleção parcial e de um exagero dos elementos disponíveis desta linguagem, mas também no sentido de uma criação livre, no espírito desta linguagem, de elementos que são absolutamente estranhos ao seu empirismo. (BAKHTIN, [1975]1988, p. 138).

Desse modo, Bakhtin ([1975]1988) conclui que o problema central da estilística do romance é o problema da representação literária, da imagem da linguagem. A questão, como observa o pensador, já havia sido pressentida por outros estudiosos, não tendo, no entanto, o problema recebido o devido tratamento, com a amplitude e o rigor necessários.

Embora a teorização de Bakhtin ([1975]1988) tenha sido tecida numa abordagem voltada à estilística do romance, todo seu trabalho influenciou muito do que vários sociolinguistas produziram a respeito da construção do estilo em interações reais. Apresentaremos, como essa aproximação se revela no posicionamento teórico assumido por Nikolas Coupland.

O conceito de estilização está, como bem observa Coupland (2007, p. 149), originariamente associado aos estudos feitos por Bakhtin acerca da teoria do romance. Embora nosso enfoque neste trabalho não seja aquele proposto pelos estudos literários, nesse momento discutiremos a relação entre a elaboração bakhtiniana de tais conceitos e a importância que, mais tarde, eles adquiriram nos estudos sociolinguísticos.

Para compreender o trabalho de seleção parcial ao qual Bakhtin ([1975]1988) se refere quando trata dos fenômenos sobre o estilo, Coupland (2001, p. 346) propõe que o trabalho de estilização, enquanto trabalho sociolinguístico sobre os estilos de fala atribuídos a outros, pressupõe a incorporação de elementos selecionados de estilos presentes em nossa cultura e que podem, portanto, ser por nós reconhecidos. Coupland argumenta que a

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estilização é um fenômeno que deve ser observado em contextos comunicativos específicos e em níveis semióticos e linguísticos determinados, nos quais os efeitos desse fenômeno seriam criados e experienciados muito mais localmente do que na configuração bakhtiniana. Assim, para o linguista, uma observação do fenômeno da estilização sob uma perspectiva que se volte para contextos e efeitos locais é mais reveladora, justamente porque opera sobre um modo específico de ação social, a saber, a performance, aqui tomada no sentido teatral.

Coupland (2001, p. 347) defende, ainda, que essas performances precisam ser interpretadas em relação a outros tipos de construtos discursivos do dado analisado. Assim, a estilização é um fenômeno fundamentalmente metafórico porque traz à tona valores semióticos e ideológicos associados a outros grupos, situações ou tempos, de modo a deslocar o falante e os enunciados do contexto de fala imediato (COUPLAND, 2001, p. 350). A estilização instigaria, portanto, processos de comparação e reavaliação tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista moral, sendo que tais processos estariam focados tanto nas identidades reais quanto nas identidades metafóricas dos falantes.

Um outro aspecto importante discutido por Coupland é a natureza criativa e performática da estilização. Para o linguista, alguns grupos de falantes aderem mais que outros à estilização e conferem a ela valores particulares. Como no trabalho de estilização o que está em jogo é a habilidade de enfatizar significados sociais dissonantes, os estilos alvo desse trabalho são representados de maneira enfática e exagerada (COUPLAND, 2007, p. 154).

Ressaltemos que Coupland opta por falar em estilização numa perspectiva que abarca uma série de fenômenos linguísticos e desconsidera, portanto, a diferenciação que Bakhtin propõe entre estilização e estilização paródica. Entretanto, a nosso ver, as formulações de Coupland se aplicam aos dois fenômenos visto que o que os diferencia é a natureza da vontade estilizante.

Como vimos até aqui, em trabalhos de estilização linguística, a linguagem é o local onde se dá a ação social. A estilização cria um universo de ações imediatas, mas também desloca tais ações no tempo e no espaço, de modo a afastá-las do contexto imediato. Assim, o que mais importa na estilização são as pistas para o reconhecimento

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desse deslocamento, uma vez que elas possibilitam, no processo de interlocução, a reconstrução das intenções norteadoras do trabalho de estilização.

Dado esse cenário teórico, compreendemos que a estilização e a estilização paródica são formas complexas de ação porque ao mesmo tempo em que são pautadas por um conjunto de disposições para ação elas também são um espaço de incorporação dessas disposições. Acreditamos que por meio desses fenômenos revela-se um conjunto de disposições para agir (um habitus em termos bourdiesianos) no qual estão incorporados os valores sociais a serem atribuídos à variedade linguística representada e, por conseguinte, ao grupo social alvo da estilização.

A nosso ver, na estilização paródica, o habitus norteador dessa ação verbal se reforça, uma vez que coloca em oposição a voz estilizante e a voz estilizada, conferindo a esta um status de desqualificação enquanto aquela, ainda que indiretamente, surge como opção redentora, como forma oposta de ser e agir no mundo. Portanto, ao colocar em ação esse conjunto de disposições de avaliação, tanto na estilização quanto na estilização paródica, o habitus da voz que representa acaba por influenciar a constituição de um habitus para o grupo alvo da estilização, uma vez que ele passa a ser definido tanto pelo que ele é quanto por como é visto.

Como vimos, tanto na perspectiva de Bakhtin quanto na de Coupland a estilização é vista como um trabalho linguístico que se faz sobre o estilo atribuído a vozes outras que não aquela presente no contexto imediato de produção. A articulação proposta entre os trabalhos desses dois autores, desse ponto de vista, revela uma perspectiva na qual se concebe a variação linguística como parte de um processo de construção de identidades e de significados sociais.

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Capítulo 2

Dos necessários recortes metodológicos para o empreendimento da pesquisa sobre esquetes de rádio