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A estrada dos sonhos e fantasia: Cathleen no universo dos contos de fadas

Capítulo 4: Romantismo e nacionalismo de Yeats: o Folclórico e o Político em The Countess Cathleen

2. A estrada dos sonhos e fantasia: Cathleen no universo dos contos de fadas

Com The Countess Cathleen, esquecemos o presente, embarcamos em um conto de fadas, somos tirados da nossa realidade, ficamos relegados a vagar perdidos dentro da própria história, que nos apresenta como que uma terra mágica, afinal, o enredo nos conduz a uma “Irlanda nos velhos tempos” (p.64). Dessa forma, deixamos o tempo histórico e passamos a viver em um mundo quase mágico com seres sobrenaturais, como já havia sido assinalado por Bettelheim (2012) no tocante ao universo dos contos maravilhosos. Numa época em que os homens acreditavam em superstições, a obediência a Deus definia a própria existência, enquanto o diabo observava os homens buscando apreendê-los por seus pecados.

Porém, mesmo mergulhando em uma terra de fantasias e sonhos, a realidade que se faz presente na peça aparecerá através de detalhes que nos situam historicamente. A igreja de Carrick-orus, (p.5) a qual criaturas sombrias circundam, no início da peça, segundo o The Collected Works of W.B. Yeats Vol II: The Plays (2001), de acordo com o próprio Yeats, seria a ruína da antiga Igreja de Carrickfeorais, no condado de Offaly, na Irlanda.

Em The Countess Cathleen, as ruínas são importantes para a compreensão da trama, pois é disso que Cathleen dependerá, precisando se apoiar no que restou,

recolhendo os cacos da história para se tornar a heroína de que aquela vila e a Irlanda tanto precisam para se livrar dos demônios. São, portanto, os escombros de tempos ideacionais que darão vida a um novo país. As terras mágicas pelas quais Cathleen deverá caminhar, através das histórias que ouvirá de Aleel, não serão apenas relatos sobre um mundo sobrenatural para a Condessa, mas sim narrativas sobre uma terra real que emana seu poder.

Além das marcas históricas mais pontuais, a peça nos deixa ver a dura realidade irlandesa através da fome. Contudo, o aparente “realismo” no texto, é, na verdade, elemento simbólico. Como bem disse Propp (1984), a realidade não é o motivo dos contos de fadas, são apenas alusões que nos fornecem símbolos e alegorias necessárias para que possamos compreender a ficção em profundidade. Aliás, a fome é o motivo principal de conflito na peça, movendo as engrenagens do enredo. É importante deixar claro, então, que a fome pode até ser a base da peça, o principal evento complicador da trama, mas a peça toda gira em torno da figura de Cathleen, de sua ascensão como heroína, da consolidação de uma figura que representa, em seus atos, a Grande-Mãe irlandesa.

Quando Cathleen chega à pequena vila, acompanhada por Oona, sua ama, cristã, e Aleel, um poeta andarilho e pagão, ela está procurando por sua casa perdida da infância, que não mais consegue encontrar. Ao invés de um retorno à terra da inocência de sua infância, a personagem encontra na região uma situação que nunca sonhou vivenciar antes: a fome. Os aldeões estão famintos, em estado de miséria, a seca se alastra devastando tudo. Há a sensação de que esse cenário catastrófico foi criado por uma força maléfica, que tricota um denso véu sobre aquelas terras, poderes de uma “grande treva como jamais as lendas imaginariam, uma noite que nem o Sol ou Lua dissipariam” (CENA 3, p.93)198.

Esse cenário de caos faz acordar em Cathleen um sentimento heróico consubstanciado por um desejo de empreender-se na busca de uma solução que venha a sanar os problemas de todos. Porém, não será tão fácil para a personagem fazer isso. Ela

198 “For here some terrible death is waiting you,Some unimagined evil, some great darkness. That fable

não sabe a força que tem guardada dentro si, pois simplesmente esqueceu muitas coisas, dentre elas, seu poder, sua história e sua ancestralidade.

Dessa forma, Cathleen precisará redescobrir seu heroísmo, através de processos iniciatórios, para ter a capacidade de se lançar contra o mal e combatê-lo como deve. Contudo, não é apenas a face heróica da personagem que está entorpecida. Com o passar do tempo, percebe-se que os símbolos dos quais Cathleen era guardiã ficaram para trás, esquecidos em algum pedaço da história irlandesa. São as tramas do destino que despertam a personagem, fazendo-a emergir como uma heroína.

Contudo, para que Cathleen relembre esse passado e reavive suas forças, ela precisa ser restaurada por um artista que possa escavar com cuidado o que há de mais profundo e escondido dentro dela. Esse papel cabe a Aleel, que a auxiliará em sua jornada durante a peça. Assim, o caminho que a Condessa percorre lembra muito as propostas teóricas postuladas por Propp (1984) e Campbell (2007) sobre a jornada do herói.

Descrita como olhos de safira, Cathleen, está sempre relacionada ao branco, ao celeste. O que transforma a alma da personagem em algo suave, sublime, já que o branco é a cor da aurora, da transformação da consciência, devido a sua associação aos símbolos solares, da leveza e da paz, de acordo com Chevalier (2012) e Cirlot (1990), em seu Dictionary of Symbols . A personagem representa um novelo de dignidade que é tecido em um manto de virtudes sem fim. Diferente de outros personagens da peça, como Shemus, Cathleen não é ambígua em seus atos, pelo contrário, é sempre pura, límpida e cristalina, estando sempre pronta para fazer o bem e ajudar o próximo.

Mesmo que o problema que destrói a vila, pela fome, não tenha sido causado por ela, Cathleen se vê na obrigação de combatê-la por conta de um sentimento de “amor heróico” grandioso que carrega consigo. É importante salientar que é esse “amor” de Cathleen que guia seus passos até sua “coroação” como heroína, pois a personagem segue seu caminho impulsionada por um sentimento maior, o desejo da vida, e pela ressurreição de tempos extraordinários.

O heroísmo de Cathleen emana de duas fontes que a influenciam diretamente. Por um lado, a personagem terá esculpido em si traços heróicos que têm como origem

os antigos enredos folclóricos dos mitos e dos contos de fadas Celtas. Além disso, Cathleen também se apóia em bases que lembram os personagens do panteão mitológico bíblico-cristão.

Como já havia indicado Volobuef (1993), tratando das personagens dos contos de fadas, as lutas que vemos Cathleen travar são todas externas, ou seja, elas não têm a intenção de modificar a protagonista ou os outros personagens por dentro, pelo contrário. São conflitos, em sua maioria, que visam apenas confirmar os papéis intentados por cada um deles. Dessa forma, o caráter psicológico fica fora do palco. As ações orquestradas pelos personagens, principalmente por Cathleen, emanam de enfrentamentos que surgem a sua volta.

Cathleen é uma figura frágil que, ao contrário dos grandes heróis Celtas, que lutavam bravamente para defender seu povo com o auxílio da própria força física, não possui capacidade de fazer isso. Em boa parte da ação da peça, quem precisa de proteção e cuidados é ela. Cathleen, porém, não pode usar de força física para defender seu povo, pois, não há como valer-se de tal capacidade. Sua força não emana do seu corpo físico e ela não está pronta para se tornar um escudo contra o mal, sendo esse de cuidado a que todos precisam.

Para se transformar em uma figura heróica que ecoe suas origens ancestrais, Cathleen deve se preparar. O primeiro passo é inevitavelmente demolir os muros de proteção que foram erguidos por aqueles que estão ao seu redor. Fazendo isso, o próximo estágio é submergir em um mundo de fantasia que só o folclore irlandês pode lhe proporcionar, retornando dessa terra com o elixir necessário para expurgar o mal. É apenas através do folclore que Cathleen pode construir, e costurar a sua nacionalidade Irlandesa, pavimentando sua ascensão como heroína.

Na peça, o folclore não serve apenas como um elemento em que Cathleen se apoiará para alicerçar-se historicamente em busca do seu passado heróico. Os fios de enredos folclóricos dos antigos Celtas que se desvendam nas falas e atos dos personagens de The Countess Cathleen nos fornecem símbolos para que possamos entender o processo de iniciação da personagem e sua maturação enquanto heroína.

Cathleen deseja um futuro que resgate o que há de mais valoroso na sociedade. A personagem, porém, está assolada e presa em uma terra na qual o passado foi esquecido, que ela mesma não recorda e do qual precisa ser lembrada, para, com isso, fazer a ligação com o que se perdeu, e assim poder enfrentar o mal.

Pelo acima exposto, nossa análise se concentra em duas etapas. No primeiro momento, vamos acompanhar as raízes do mal na vila irlandesa, analisando como a fome está relacionada diretamente às forças maléficas. Em seguida, vamos acompanhar como Cathleen se prepara para destruir esse mal e como ela passa a representar o emblema máximo do nacionalismo irlandês: a figura da Grande-Mãe, a protetora de todos.