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Estratégias de Apresentação

Desde o momento em que soube que conseguiria entrevistar homens e mulheres homicidas passionais, estabeleci como prioridade elaborar uma estratégia de aproximação para meus interlocutores. Logo de início, ponderei algumas possíveis dificuldades, como a recusa em me verem ou o uso de

discursos já “decorados” e “ensaiados” no decorrer de audiências, entrevistas e de conversas com psicólogos e assistentes sociais.

Tendo consciência desta primeira dificuldade, tracei um plano de entrevista que teria como elemento chave a construção de um ambiente em que pesquisador e entrevistados tivessem a sensação de que nosso convívio era estabelecido em tom de conversas informais, com ritmo de “bate-papo”. Obvio que esta escolha trazia consigo um grande desafio: como fazer isso sem que parecesse forçoso demais? Como evitar que minha abordagem caísse na teia de desconfiança deles? Meu desafio estava claro. Tinha que me aproximar amigavelmente, mas sem cair no cinismo de uma amizade genuína, espontânea, afinal, estávamos num ambiente que por si só anulava a espontaneidade e a liberdade.

Após algum tempo de espera, que incluiu apresentação formal aos diretores dos presídios, conversas com os assistentes sociais responsáveis, leitura de processos e seleção dos entrevistados, finalmente havia chegado o dia em que iria realizar o primeiro contato com os meus interlocutores. Iniciei este processo com as duas únicas internas do IPF que, pelos dados contidos nos processos, haviam cometido crimes que se “enquadravam” nas características de homicidas passionais.

Cheguei ao presídio às 13:00h, logo após o período de almoço. Estava preparada para dar o primeiro passo rumo ao contato inicial com minhas entrevistadas. Já sabia como iria me apresentar, o gravador estava carregado, tinha levado pilhas extras, estava com o termo de consentimento de entrevistas em mãos. Tudo estava pronto. Assim que me viu, o guarda da recepção comunicou que eu aguardasse um pouco, pois o assistente social estava à minha espera. Não demorou muito e ele veio me receber. Ele sabia que naquele dia eu iria entrar efetivamente no ambiente carcerário e por isso foi me apresentar aos demais policiais e agentes penitenciários. Antes de entrar, fui avisada que deveria deixar meus pertences guardados nos armários da recepção. Perguntei se poderia entrar com gravador, caneta e agenda, afinal, iria fazer uma entrevista. Ele inspecionou os objetos e deixou que eu entrasse com eles. Fiquei bastante aliviada. Fazer uma entrevista com papel e caneta

não estava nos meus planos. Eles deveriam servir apenas como material de apoio para eventuais informações em destaque.

Passado este momento, segui para a outra etapa de segurança, o detector de metais. Ao me aproximar do funcionário encarregado, ele me examinou com os olhos, verificando novamente meus pertences e avaliando possíveis objetos de metal. Depois disso, ele pediu que eu passasse pela estrutura do detector de metais, que correspondia aos aparelhos encontrados em aeroportos. Assim, não houve nenhum tipo de toque ou de aproximação por parte do policial. Foi uma ação rápida e impessoal. Sabia que o relato desta experiência “desapontaria” muitas pessoas. Todos que sabiam que eu estava desenvolvendo minha pesquisa em presídios me questionavam sobre o processo de revista. Eles queriam saber se eu teria de passar pelo mesmo procedimento pelo qual mulheres e visitas de presidiários são submetidas e que envolve nudez, abaixamentos e avaliação ocular de genitálias. Felizmente não tive que passar por essa experiência, vivenciando um procedimento bem menos dramático.

O detector de metais não disparou nenhum sinal de que estivesse portando objetos metálicos e logo recebi a autorização para entrar no interior do presídio. O policial acionou um botão e o grande e maciço portão de metal foi aberto. O assistente social pediu que um dos homens encarregados pela segurança avisasse via rádio que eu estava entrando. Até ali, eu pensava que ele iria me acompanhar até o local onde seriam realizadas as entrevistas. Entretanto, ele avisou que eu iria sozinha. Disse para eu me informar lá dentro e buscar pelo parlatório. Ao que parecia, este era o local designado ao encontro de internos e advogados, bem como demais visitas impessoais.

A imagem encoberta pelo grande portão se mostrou para mim como um enorme corredor gradeado nas laterais. Assim que ultrapassei os limites do portão, escutei um ruído forte que indicava que a porta tinha sido fechada atrás de mim. Apesar de me sentir segura, instintivamente me senti desconfortável com aquela experiência. As trancas, juntamente com as grades e os constantes olhares de vigilância geravam em mim uma sensação de estranhamento e angústia. Tentei não demonstrar meu desconhecimento ou

curiosidade e dizia para mim mesma que deveria andar como se soubesse para onde estava indo.

Caminhei sozinha pelo grande corredor que dava acesso ao parlatório e às celas. Olhava pelas grades e via um enorme pátio do lado de fora, juntamente com guaritas de segurança que comportavam homens armados. Antes de vivenciar esta experiência, achava que o que mais iria me incomodar naquele ambiente seriam as armas dos policiais e dos agentes penitenciários. Estava surpresa em perceber que o que mais estava me inquietando era a sensação de estar presa, de não poder ir ou vir sem a permissão de outras pessoas.

Tentava assimilar o que estava sentindo na medida em que me aproximava de um grupo de funcionárias que se encontravam ao final do corredor. Chegando até delas, disse que procurava pelo parlatório. Uma das mulheres foi logo dizendo “ah, você que é a pesquisadora, né?” Confirmei a informação e disse que estava indo realizar uma entrevista. Ela gentilmente me indicou o local desejado e foi me acompanhando. Entramos noutro corredor que ficava à nossa esquerda. Desta vez, não havia grades, mas paredes e salas que deduzi que serviam como pontos de atendimento de médicos, psicólogos e assistentes sociais. A ausência de janelas e luz natural fazia aquele ambiente escuro e abafado, aumentando a sensação de que estava presa.

Após alguns passos, a moça anunciou que havíamos chegado ao parlatório. Era uma sala com estrutura de grades, onde todos que passassem no corredor podiam ver e ouvir as pessoas que ali estivessem. No centro da sala, uma mesa de alvenaria que alcançava toda a sua extensão. Ao longo dela, uma enorme grade que chegava até o teto. A extensão da mesa era dividida por parciais estruturas de madeira que delimitavam pequenos ambientes, dando a sensação de privacidade. Por fim, havia cadeiras dos dois lados da mesa, onde internos e visitas podiam se sentar e conversar sem que houvesse a possibilidade de contato físico.

Assim que entrei no parlatório, escolhi uma das “cabines” disponíveis. Não havia mais ninguém no local, apenas eu. Não seria assim por muito tempo.