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No século XXI, mesmo com os avanços das tecnologias, da legislação e do gerenciamento, os usos múltiplos da água vêm acarretando inúmeros conflitos pela posse e gestão deste recurso em diversas escalas, devido às necessidades sociais e produtivas e à percepção de uma eminente crise hídrica, mediante a qual alguns terão acesso à água e outros não. Essa expectativa de limitação ou mesmo exclusão de acesso tem gerado fenômenos de acirrada competição dos indivíduos e/ou firmas para obter a posse da água. A observação da disputa gera aos pesquisadores de fenômenos sociais a possibilidade de obter amplo leque de interpretações dos pares antagônicos presentes nesta relação, formando um fenômeno de alta complexidade.

Do ponto de vista epistemológico, existem várias interpretações e argumentações teóricas a respeito da categoria geográfica “território”. Ao longo do tempo, autores como Gottmann (1952), Vagaggini e Dematteis (1976), Raffestin (1993), Souza (1995), Dematteis (2008), Quaini (1979), Haesbaert (2004) e Saquet (2004) fizeram interpretações do conceito de território. Tais obras e autores, cada qual com suas preocupações e abordagens, contribuíram como as bases teóricas para refletir a respeito das relações de poder nas quais o elemento água é o eixo norteador de formação dos

territórios. Porém, quanto à explicação de como ocorre o “controle político de espaços materiais” e da formação de território, consideramos ser a de Antônio Carlos Robert de Moraes a conceituação da construção social do território que se aproxima do que constatamos na pesquisa, como pode ser visto a seguir:

O processo de construção de um território é um processo bélico (de conquista e apropriação de espaços), além disso, é também um processo jurídico (de legitimação do domínio), e ainda um processo ideológico (de afirmação de uma identidade referida àquele espaço). Embora os territórios não se constituam necessariamente nessa sequência, apresentam sempre esses componentes em sua formação. Trata-se de um processo socialmente conflituoso. A construção nacional é sempre um desejo político de homogeneização cultural, de controle social, e de domínio territorial. E, enquanto tal enfrenta resistências, sofre questionamentos que também se colocam no campo da geografia, como outras formas de consciência do espaço e como outras territorialidades. Para entender esse movimento, a geografia tem que articular as diferentes formas de ver o espaço que se expressam em conceitos e em escalas” (MORAES, 2008, p. 09).

Os referidos intelectuais estudaram profundamente os fenômenos que caracterizam a formação de territórios. Mostram suas interpretações a respeito desta categoria teórica eminentemente espacial que, em qualquer interpretação estudada, tem-se um elemento concatenado: o poder (político, econômico e social), sua espacialidade e possíveis resistências. Dada a complexidade e dinâmica organizacional do espaço geográfico ao longo do tempo, novas espacialidades ou territorialidades foram norteando os estudos da Geografia Humana, de acordo com os paradigmas científicos vigentes em cada época.

A teoria e os conceitos geográficos são construídos, renovados e ampliados conforme a dinâmica das práxis em cada período de construção do conhecimento geográfico, sob o tripé das esferas social, temporal e espacial, de forma a enriquecer o conceito de maneira crítica e dinâmica.

Numa perspectiva temporal, pode-se afirmar que determinados bens da natureza foram subestimados em sua importância para a perpetuação da vida em nosso planeta. Da mesma forma, os estudiosos de cada época negligenciaram esses elementos da natureza ao não os perceber enquanto um poderoso ferramental de coerção e domínio do território. No caso da água, desde a Antiguidade conferia-se certo destaque ao mapeamento da água para fins povoamento e/ou estratégia de guerra.

É evidente que a apropriação da natureza oferece ao seu possuidor possibilidades de acumulação de capital, poder econômico, social e político. Isto pode ser percebido inclusive em escalas maiores, como o caso de Estado-Nação, a exemplo da exploração

dos recursos naturais no processo de ampliação territorial com a posse de “novas colônias”. De maneira secular tal realidade foi vivenciada por nossa nação desde o descobrimento.

Segundo Souza (1995), o maior questionamento que auxilia a identificação da formação de um território é: “quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como? ” (SOUZA, 1995, p. 78-79). O questionamento, em síntese, significa: quem concretiza o exercício do poder? É possível que a preocupação de observar elementos da natureza como ferramental de dominação social não tenha ocorrido justamente por não haver escassez de determinados elementos naturais, entre eles, a água, como ocorre na atualidade.

Hoje, o controle dos grandes estoques de água nordestinos já possui novos donos, quais sejam: a hidroeletricidade e o agronegócio, respectivamente. Trata-se da modernização capitalista, a partir da qual o Estado dá seu aval sob a justificativa de ele ser codinome de eficiência produtiva. Nesse contexto, a disputa pelo território que possui água, necessária para a sobrevivência (humana ou do capital), estabelece-se o polígono de disputa por este bem, espaço delimitado que interpretamos como hidroterritórios.

Dessa forma, a resistência se estabelece no âmbito das lutas de classe, a resistência contra a modernidade destruidora do capital, que se apropria dos recursos naturais existentes no território para transformá-los em riqueza privada com o aval do Estado. A resistência é estabelecida pelos antigos “usuários” da natureza, os camponeses e ribeirinhos da beira do rio, luta desigual do “atrasado” contra o “moderno”. Como afirma Dourado (2015, p. 156),

os hidroterritórios (TORRES, 2007) se constituem num ambiente conflituoso, porque colocam em disputa modelos de desenvolvimento antagônicos, revelando as urdiduras do capital e do Estado para garantir o controle de áreas com abundância hídrica. Mesmo com todo o aparato midiático, as personas do capital não conseguem camuflar o fato de que a criação dos perímetros irrigados acaba fomentando a plasticidade e a mobilidade do trabalho, tanto nas comunidades próximas à sua localização quanto na cidade. A demarcação de territórios pelo capital em função da disponibilidade de água é uma realidade neste limiar de século XXI, com sérios agravos para os milhões de miseráveis de todo o mundo e, principalmente, da América Latina, a quem foi atribuída a responsabilidade de prover a manutenção do “desenvolvimento” do restante do planeta devido à riqueza de sua sociobiodiversidade (DOURADO, 2015, p. 156).

O poder hegemônico global ou de um lugar legítimo representante do capital, a fim de se apossar dos estoques de água, principalmente nos períodos de escassez, elabora dispositivos sociais de coerção e violência para posse e dominação da água. Por outro

lado, nesta mesma perspectiva, em seu par dialético, a abundância da água em um determinado território potencializa as possibilidades de produção, como também suas decorrentes transformações territoriais e sociais, de acordo com o acesso de uso privado ou comunitário.

As tramas de pares dialéticos presentes nos conflitos hídricos, em virtude da escassez qualitativa e/ou quantitativa, apresentam pares dialéticos de escassez e abundância; vida e morte; dominação e submissão; acatamento e resistência; riqueza e pobreza; subjetividade e utilidade; tradição e modernidade; cultura e religião; desenvolvimento e desertificação humana48. Enfim, desvela-se uma complexa

transformação da práxis mediante o cenário da qualidade e quantidade de água nos territórios.

Logo, a eficiência das políticas que influenciaram e mudaram o Rio São Francisco não são diferentes das políticas hídricas contemporâneas que nortearam a formulação do aparato legal vigente. Em particular, a política que instituiu o comitê de bacia do Rio São Francisco, seus objetivos, metas e ações desenvolvidas desde a sua formação inicial até a gestão atual. A gestão de bacia possui temporalidades, ritmos e ciclos específicos inerentes a cada segmento de suas regiões fisiográficas. Em uma perspectiva escalar globalizada, percebe-se notadamente uma tendência à sujeição aos poderes que priorizam a privatização da água. Barth (1999) alertava que, mesmo com uma lei nacional, a mudança de perspectiva de uma água sem valor econômico para o novo tipo de gestão deveria ser feito de acordo com as particularidades do local: (AINDA COM LETRAS DE TAMANHOS MELNORES)

[...] a implantação do gerenciamento de recursos hídricos deve ser vista como um processo político, gradual, progressivo, em etapas sucessivas de aperfeiçoamento, em consonância com as características e condições brasileiras, respeitadas as peculiaridades de cada bacia ou região (BARTH, 1999, p. 01).

A primeira pergunta que pode ser lançada neste capítulo é: Para que foram criados os comitês de bacia? A resposta, em sua gênese, pode ser bastante simples ou complexa, a partir da lente ideológica do observador. Simples, quando entende a água como um

48 Em Algarve, Portugal, estudos acadêmicos de dinâmica de populações e suas mobilidades têm verificado um fenômeno de esvaziamento populacional em locais com severa escassez hídrica. Fonte: (DCEA/FCT/UNL; 2002). DCEA/FCT/UNL (2002) – Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente/Faculdade de Ciências e Tecnologia/Universidade Nova de Lisboa. Relatório da Sessão de Participação– Desertificação na Serra: Que Sinais? Que Soluções. Comissão Nacional de Coordenação do Programa de Acção Nacional de Combate à Desertificação. Alcoutim.

recurso econômico cobiçado para a captura e “criação” de riqueza concentrada nas mãos daqueles que possuem recursos econômicos e poder de geri-la nos territórios. Complexa, enquanto abarca a concepção de elemento vital para a vida no planeta e, por conseguinte, elemento inalienável, cuja gestão não se pode transferir, vender ou ceder de forma privada. Ademais, a água existe ao longo do tempo, proporcionando os serviços ambientais49 da natureza, que provêm a vida de todos. Portanto, nessa lógica, é lançada

uma segunda pergunta: Quem tem o direito de tirar a vida de outrem (Já que a água é um elemento indissociável à vida)?

No sistema capitalista, foram criados elementos dinamizadores da economia baseados na acumulação de riqueza através da concentração da propriedade dos meios de produção e da expropriação do trabalho. A contradição está no fato de que a produção social se reverte em apropriação privada, fazendo com que o processo produtivo inteiro seja controlado por poucos agentes econômicos. Destarte, o acesso a bens e serviços se faz por meio da renda e do entesouramento de cada indivíduo.

A competição e excludibilidade são elementos metodológicos, “do modo capitalista de ser”. A excludibilidade se refere à condição de uso de um determinado bem privado que veta o direito a outros do seu uso, exceto quando autorizado pelo proprietário. Nesse sentido, o aparato teórico da Economia e seu mainstream neoliberal afirmam que, em caso de bens cujos direitos de propriedade não são bem definidos, ou seja, não têm dono, podem ocorrer problemas, as chamadas “falhas de mercado”50.

Seguindo esses fundamentos, os detentores do capital se apropriam da natureza em um processo de mercantilização dos recursos naturais. Tal fenômeno de mercantilização da natureza tornou-se tema de pesquisa nos estudos ambientais críticos, já que este inquietante fenômeno tem se popularizado globalmente. O “ambientalíssimo de mercado” tornou-se alvo dos teóricos da Geografia Crítica e da Ecologia Política, combatendo, assim o discurso promovido pela chamada “Economia Verde”, que vê a mercantilização como uma solução para a degradação ambiental.

49 Serviços ambientais ou serviços ecossistêmicos são os benefícios que a natureza, direta ou indiretamente, proporciona às pessoas através dos ecossistemas, a fim de sustentar a vida no planeta.

50 A teoria tradicional microeconômica considera que, estabelecidos alguns pressupostos básicos, os mercados poderiam funcionar perfeitamente sem qualquer intervenção estatal, de modo que os preços e as quantidades estabelecidos neles seriam de eficiência econômica. Entretanto, a dificuldade em verificar os pressupostos empiricamente e as repetidas crises sistêmicas pelas quais passaram as sociedades revelam que os mercados apresentam falhas de funcionamento que justificariam a intervenção pública, desde a regulação econômica dos mercados até a entrada do Estado na produção de bens e serviços.

Dessa forma, um novo pensamento dialético se confronta: os defensores da expansão das normas de mercado, relações e modos camuflados de governança privada e seu contraditório, aqueles que se oponham a esta expansão. Os críticos enfatizam como problemática as incoerências, consequências físicas e éticas indesejáveis provocadas pela mercantilização dos recursos naturais.

Com a expansão do capitalismo, no intuito de se apropriar das riquezas naturais em amplitude e profundidade, elementos anteriormente externos ao sistema de mercado se tornam "mercadorias”, a saber: água, ar, energia solar etc. No caso do ar, o crédito de carbono é título emitido quando, por exemplo, uma empresa diminui a emissão de gases que provocam o efeito estufa e o aquecimento global em nosso planeta. Com isso, a corporação obtém estes créditos, podendo vendê-los nos mercados financeiros nacionais e internacionais.

Os créditos de carbono são considerados commodities. Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 (dióxido de carbono) que deixou de ser produzido. Com

relação à energia solar, a Espanha já institucionalizou que nenhuma pessoa pode instalar placas solares para geração de energia, mesmo para uso doméstico, sem a autorização do governo espanhol, a fim de cobrar impostos pela geração da energia solar.

A vigilância do sistema se estabelece no discurso, nas entidades e processos para que, no cotidiano, considere-se natural até mesmo a mercantilização da vida.

A forma de instituir a privatização da água e a transformação da água em commodities51 assemelha-se à instituição da propriedade privada na “economia-mundo

capitalista”. Conforme explica Wallerstein (2010, p. 03),

de que forma é que uma pessoa obtinha direito de propriedade da terra que, neste sentido legal específico, previamente não era propriedade de ninguém? O que normalmente acontecia era uma pessoa apropriar-se dessa terra e simplesmente autoproclamar-se seu proprietário. Isto por vezes era feito com a autorização legal de um grande suserano (como um rei). Outras vezes, resultava da conquista de uma região por parte de um Estado, que então autorizava esse tipo de apropriações. Habitualmente, o Estado conquistador começava por conceder autorizações de apropriação aos participantes na conquista. Posteriormente, esta autorização poderia ser alargada a todos aqueles que o Estado conquistador em causa permitisse apropriarem-se das terras. Normalmente, a esta situação dava-se o nome de “desenvolvimento” da terra – ou, para usar a maravilhosa expressão francesa, “miseenvaleur”. Analisemos um pouco a expressão francesa – amplamente utilizada até, pelo menos, 1945. Literalmente, a palavra “valeur” significa “valor”. Assim, quando atribuímos (mise) valor a alguma coisa, significa que adquiriu valor

51 Significa mercadorias em inglês que possui como característica a padronização e possível negociação em bolsas de valores nacionais e internacionais, portanto seus preços são definidos em nível global, pelo mercado.

dentro de um sistema económico capitalista. Presumivelmente, antes da “miseenvaleur”, não tinha esse valor; posteriormente, já o tinha.

Na sociedade capitalista, cada vez mais “coisas” se transformam em mercadorias, inclusive a comercialização das commodities, que já podem ser classificas dentre quatro tipos:

• Agrícolas: soja, suco de laranja congelado, trigo, algodão, borracha, café etc.; • Minerais: minério de ferro, alumínio, petróleo, ouro, níquel, prata etc.;

• Financeiras: moedas negociadas em vários mercados, títulos públicos de governos federais etc.;

• Ambientais: créditos de carbono.

Esta última tipificação, adjetivada como uma commodities ambiental, é bastante recente, pois se deu a partir de 1997, quando foi assinado o Protocolo de Kyoto, no momento em que algumas nações firmaram o compromisso de reduzir a emissão de gases. No entanto, na prática, o início efetivo do protocolo aconteceu em fevereiro de 2005. A partir daí, cresceu a possibilidade de o carbono se tornar um mercado, dada a gradativa “transição” para Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL).

O MDL foi estabelecido a fim de conceder créditos para projetos que reduzam ou evitem emissões nos países em desenvolvimento. Trata-se de um mecanismo de grande importância, pois funciona como um canal através do qual os governos e as corporações privadas transferem tecnologias limpas e promovem o desenvolvimento sustentável. Os créditos são obtidos na forma de Reduções Certificadas de Emissões (RCEs)52 (FELIPETTO, 2007, p. 14).

O objetivo dessas reflexões é corroborar uma melhor compreensão do papel central da água na formação e organização do espaço. A apropriação econômica deste elemento afere o controle político e social; e, por conseguinte, imprime características peculiares e particulares no espaço. O poder atribuído ao possuidor do controle da água favorece a formação de territorialidades particulares, presentes em diversas escalas espaciais de análise geográfica. Vale dizer: espaço, território ou lugar (TORRES, 2007).

Para a apropriação e acumulação de riquezas, pode-se perceber que, dependendo dos interesses de cada época, diferentes elementos da natureza foram motivadores de

disputa. Devido ao valor econômico do recurso natural ao longo do tempo, novos arranjos territoriais eram formados. Assim:

Adam Smith elaborou o paradoxo do valor, que mostrava as formas econômicas de catalogar as coisas, podendo essas serem bastante abstratas. Ele demonstrou que a água apesar de sua intensa utilidade para a vida, não tinha nenhum valor econômico naquele dado momento, enquanto o diamante, elemento de nenhuma utilidade, já possuía um alto valor econômico. Como se pode verificar, o valor econômico de um elemento da natureza pode ser classificado apenas temporalmente, pois, de acordo com as novas técnicas e espaços temporais, vai sendo mudado e diversificado ao longo da existência humana (TORRES, 2007, p. 60. Grifo do autor).

Raffestin (1993) comenta o fato da transformação da percepção da importância do carvão na sociedade, já que, ao longo tempo, só passa a ter valor quando a técnica torna este elemento da natureza algo útil como combustível, matéria-prima essencial à mudança tecnológica da época, agora com novas propriedades e valores econômicos, mas não deixando de ser o mesmo elemento físico, extraído da natureza. O grau de importância (valor de uso e valor de troca) de um elemento da natureza pode ser alterado ao longo do tempo, inclusive por descobertas tecnológicas.

Nesta tese, também interpretamos que, com o passar do tempo, determinados elementos até então destituídos de valor econômico passam a tê-lo, assim como assinala Raffestin (1993). No entanto, acrescentamos mais um elemento que pode adquirir valor: o interesse do capital de mercantilizar algo, seja por moda, por uma determinação da práxis social de cada época, por mecanismos sofisticados de criar a raridade53 de algo que

não estava escasso (TORRES, 2007). Quando se fala em valor social, este é interpretado como o reconhecimento de uma sociedade do valor de algo. Ele descreve este fenômeno nos seguintes termos:

A referência a uma matéria é sempre caracterizada por um ponto de vista que permite integrar tal ou tal substância numa prática [...]. De fato por ocasião de outras práticas outras propriedades podem aparecer. Assim o homem não esgota nenhuma realidade material, a menos que suponha uma estagnação definitiva de suas práticas. Essa hipótese é admissível local e temporalmente, mas não definitiva e genericamente(RAFFESTIN,1993, p.224).

53 A raridade é colocada na questão ambiental a serviço do capital, quando um determinado espaço tem seu valor elevado por estar situado próximo a uma faixa de mata, em uma região urbana e concretada. Porém, em um período anterior, o desmatamento foi concretizado para que o capital imobiliário se expandisse, com a construção de prédios. Ou seja, a própria especulação criou a raridade da área verde. Lefebvre, em 1970, já compreendia que os “elementos” – a água, o ar e a luz - estavam ameaçados, encaminhados na iminência de uma “utopia negativa”. Estes valores de uso se transformaram em valores de troca. Assim, a natureza é “[...] posta em pedaços, fragmentada, vendida por fragmentos e ocupada globalmente” (LEFEBVRE, 2008, p. 54).

No decorrer do tempo, no tocante ao valor da água, vem sendo construído um caminho que leva à universalização da mercantilização deste elemento, em um movimento globalizado pelo discurso da raridade. A água, em virtude do valor e poder que aufere a quem a possui, torna possível a observação de determinados territórios cujo motivador da formação de espacialidades, em diferentes escalas de poder econômico e político, seja a disputa pela água local ou global.

Como se pode perceber, o domínio da água não se estabelece na atualidade pela violência e coerção dos coronéis. Agora, ela existe de forma sofisticadamente camuflada pelos detentores do poder, que orquestram as leis através do Estado. As resistências também foram enfraquecidas pela lei, ao estabelecer a representação de classes para compor a gestão hídrica “democrática”.

A partir da Lei n. 9.433/97, as instruções normativas para a implantação da Política Nacional dos Recursos Hídricos (PNRH) e de formação de Comitês de Bacia vem sendo implementadas no Brasil. O comitê do Rio São Francisco, objeto de estudo desta pesquisa, passa a existir no ano de 2001, com a formação dos primeiros membros