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CAPÍTULO III: QUESTÕES E PERSPECTIVAS EM ORDEM AO FUTURO

3.1.2. A estrutura da autocefalia/autonomia das Igrejas locais e seus limites

A questão da Igreja local, na sua relação com um sentido mais amplo de Igreja inteira ou universal, é uma das que mais debate tem provocado ao longo dos anos. Grande parte dos autores ortodoxos acusa a Igreja católica de postular uma eclesiologia universalista, que apenas veria na Igreja local uma parte da Igreja universal198.

O Comité Misto de França sustenta que, se todas as Igrejas locais são manifestação plena num determinado lugar da única Igreja de Cristo, então elas não podem estar isoladas e enquadradas numa autonomia ‘auto-suficiente’, que reduziria a Igreja universal a uma abstracção199. Também hoje em dia outros autores admitem que a autocefalia nem sempre

é uma resposta totalmente satisfatória à vocação eclesial à unidade. Por isso, «sem negar o fundamento da autocefalia no cerne da Igreja indivisa, nem os fundamentos escriturísticos e tradicionais do primado romano, podemos todos (católicos e ortodoxos) considerar as suas figuras actuais (primado e autocefalia) como formas legítimas e fundadas de resposta a um problema idêntico e comum»200. Só assim é que se pode entrar num diálogo doutrinal em pé de igualdade, onde uns e outros se sentiriam solidários numa mesma dificuldade, e poderiam, portanto, solidarizar-se ainda mais na procura de uma resposta a elaborar em comum, sem negação mútua201. Um dos textos da Comissão Mista Católica-ortodoxa de França explicita muito bem esta perspectiva eclesiológica que, porém, não belisca a concepção de Igreja por parte dos católicos nem sequer se opõe a uma acentuação mais visível da Igreja universal:

«Da mesma forma que o Cristo inteiro [Christus totus] – e não um bocado de Cristo – está presente em cada assembleia eucarística, também a Igreja inteira – Corpo de

198 Cf. CMCO, La primauté romaine, 115. 199 Cf. CMCO La primauté romaine, 114. 200 LEGRAND, H., Bréve note, 56. 201 Cf. LEGRAND, H., Bréve note, 56.

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Cristo – está presente, ‘reside’ em cada Igreja local. A Igreja local não é uma província da Igreja universal, e o seu Bispo não é o prefeito de um poder central. Todas as Igrejas locais estão em comunhão umas com as outras porque cada uma delas se identifica com o Corpo de Cristo»202.

Mas a Igreja Católica Romana não é a única que coloca problemas a uma noção de Igreja local centrada na sua autocefalia203. O próprio Zizioulas verifica o estado actual de confusão teológica que reina na Ortodoxia. Ele afirma que há uma linha teológica que «denomina geralmente de ‘Igreja local’ as Igrejas autocéfalas, o que muitas vezes conduz à absorção da diocese, de tal modo que esta última se encontra totalmente colocada à parte, seja por um sínodo permanente seja pelo chefe da Igreja autocéfala, que contudo não representam sempre e absolutamente, nem um nem outro, todas as dioceses-Igrejas locais do território em questão»204. A Igreja local (eparquia) ficaria então esvaziada na sua legítima autonomia, e o seu bispo poderia ser visto como um mero executor da vontade do metropolita ou chefe da Igreja autocéfala205. Assim, no que concerne à questão da autocefalia, admite Legrand que «os ortodoxos poderiam reconhecer paralelamente que ela não é uma resposta satisfatória do ponto de vista da vocação eclesial à unidade, como parece demonstrar a impossibilidade actual de superar a multiplicidade das jurisdições ou de convocar um sínodo pan-ortodoxo»206.

Também o sistema sinodal, que deveria ser um acontecimento verdadeiramente eclesial, acabou por se tornar – assim considera G. Getcha – uma instituição permanente e muito burocratizada, uma espécie de «corpo directivo que se veio sobrepor à própria diocese, a verdadeira Igreja local, e que acabou por absorvê-la»207. Poderá não ser

imediatamente visível, mas esta realidade parece traduzir uma espécie de esquema

202 ARGENTI, C., Liberté des Églises locales et unite de l’Église, in CMCO, 106.

203 Cf. GETCHA, J., L’Église locale: une problématique œcuménique, in Istina 51 (2006) 59. 204 ZIZIOULAS, J., L’être ecclésial, Labor et Fides, Genéve, 1981, 187.

205 Que, nalguns casos, assume a forma de uma Igreja nacional.

206 Cf. LEGRAND, H., Il Concilio di Sardica, esempio di accettazione del primato di Roma da

parte dell’Oriente e dell’Occidente, in Nicolaus 34, 2 (2007) 30.

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eclesiológico universalista, que os próprios ortodoxos condenam, ao fazer da diocese (ou eparquia) uma ‘parte’ da Igreja. Por isso, considera J. Getcha que «seria um erro dizer que, ao contrário da Igreja Católica, onde o Papa é a autoridade suprema da Igreja, na Igreja Ortodoxa é ao concílio (ou sínodo) que recai esse papel»208. O mesmo autor afirma que o

sínodo regional, em vez de ser uma instituição governativa, transformou-se numa instituição elitista, na qual só os bispos escolhidos participam, e não a totalidade dos bispos, o que seria mais conforme à Tradição da Igreja209.

Outro dos limites que se pode atribuir às Igrejas Ortodoxas na sua noção de Igreja local é o problema da diáspora ortodoxa, ou seja, a dispersão dos fiéis ortodoxos em países onde ainda não se tinham estabelecido comunidades. Estas verdadeiras diásporas nacionais tornaram-se, então, entidades eclesiais de carácter étnico sobrepostas umas às outras210 e trouxeram para a reflexão teológica algumas perspectivas nem sempre coincidentes com a eclesiologia ortodoxa, como a ideia de uma ‘Igreja nacional’ sem limites geográficos precisos ou a possibilidade de uma jurisdição universal.

Esta foi uma realidade não prevista por parte dos ortodoxos, que esperavam uma diáspora com carácter temporário, o que nem sempre se verificou e tem verificado. Mas este problema das «jurisdições paralelas no seio da diáspora, contrárias à eclesiologia e à tradição canónica das Igrejas Ortodoxas»211, tem o condão de interpelar a sua consciência e mostrar os limites da sua eclesiologia, como se vê pelos conflitos que daí resultaram ao nível interno ortodoxo e que fomentaram o desejo de se convocar um concílio pan- ortodoxo.

Várias questões se podem colocar, sobretudo se os ortodoxos acabarem por ‘constituir’ Igrejas nos países da diáspora com uma ligação jurídico-canónica a Constantinopla. Seria verosímil e legítimo, do ponto de vista eclesiológico, considerar a

208 Cf. GETCHA, J., L’Église locale, 59. 209 Cf. GETCHA, J., L’Église locale, 59. 210 Cf. GETCHA, J., L’Église locale, 60. 211 Cf. GETCHA, J., L’Église locale, 61.

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sobreposição de dioceses com outras dioceses católicas, sabendo que é um princípio geral da teologia da Igreja local a existência de apenas um bispo por diocese ou eparquia? A este propósito, Getcha faz notar que a prática actual do Patriarcado de Constantinopla vai no sentido de atribuir outros títulos (fictícios) aos bispos que se encontram no território da Igreja de Roma212, o que não deixa de ser apenas um modo ‘inteligente’ de contornar aquela verdade já prevista no oitavo cânone do Concílio de Niceia213 e que os ortodoxos puseram em prática ao longo dos séculos através da afectação do bispo a uma determinada Igreja214. Desta forma, percebe-se o alcance limitado desta autocefalia presente nas Igrejas locais ortodoxas, que nem sempre tem em conta, pelo menos na linguagem, a condição de possibilidade para uma ‘coexistência’ efectiva entre uma unidade fundada na comunhão das Igrejas locais e seus respectivos bispos e a realidade de uma divisão interconfessional.