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I. O LODO , DE ALFREDO CORTEZ

2. Abordagem literária

2.3. Estrutura e contextos cénicos

Partindo da análise das ações apresentadas nos três atos que constituem a obra, verificamos que a mudança de ato não corresponde a uma mudança de espaço físico, uma vez que a ação decorre sempre no mesmo local (sala de uma casa de família que é, simultaneamente, uma casa de prostituição). No ato primeiro, são apresentadas as personagens que compõem a família, assim como as que com elas interagem e que permitem perceber o contexto em que vivem. Este ato apresenta a situação em que as personagens se encontram no presente, ainda que se verifiquem analepses, ajudando a contextualizar a ação. O ato segundo é dominado pelo diálogo entre Maria da Luz e Domingas e constitui o reencontro de uma mãe e de uma filha que há muito estavam afastadas por circunstâncias que serão esclarecidas através da apresentação retrospetiva de alguns factos. É neste ato que ficamos a saber (ou a intuir) as razões que levaram Maria da Luz a abandonar a casa dos padrinhos e as razões que motivaram a desgraça de Domingas. Na verdade, este ato ocupa-se do passado e das consequências que esse mesmo passado teve na situação presente das personagens. O ato terceiro é dominado pelo diálogo entre Maria da Luz e Júlia, através do qual se vão abrindo possibilidades várias sobre o futuro das duas irmãs e da própria família.

Para além da estrutura tripartida, é também relevante uma breve análise sobre os contextos cénicos em que as personagens se apresentam em cena, pois os elementos que os constituem fornecem pistas que permitem uma aproximação à intencionalidade subjacente à obra de que nos ocupamos.

A ação decorre numa “sala pobre e desleixada”, espaço interior que acompanha cada um dos três atos da peça. A primeira didascália explicita este ambiente:

Sala pobre e desleixada. Janela à direita. Duas portas à esquerda. À direita fundo, porta que comunica com um átrio que dá saída para a rua. […] … sobe uma escada para o primeiro andar. […] … perto da janela, e sobre a mesa, um candeeiro de petróleo aceso, objectos de costura, etc. O restante mobiliário adequado (143).

Nos dois atos seguintes recupera-se a caracterização feita na primeira didascália, através do determinante “mesmo”, o que pode sugerir a imutabilidade da ação e da situação em que as personagens se encontram:

O mesmo cenário. O mesmo candeeiro aceso sobre a mesa. A mesma disposição em todas as coisas. Tudo como ficou ao concluir o primeiro acto (157).

O mesmo cenário. A mesma disposição em todas as coisas. Tudo como ficou ao concluir o segundo acto (171).

Deste espaço interior é possível chegar a outros espaços interiores e ao espaço exterior, através de elementos de transição que a eles conduzem (a escada, as portas e a janela).

Na primeira fala da peça, Domingas reage ao barulho provocado por uma porta que conduz do exterior ao interior da casa. Através das didascálias da sexta e oitava falas, percebemos que o espaço em que decorre a ação é um espaço de prostituição, de artificialismo e de marginalidade, materializado através da referência à “nota” (materialismo e marginalidade) e ao pó de arroz (artificialismo e clandestinidade) que Sara coloca no rosto:

Entrega-lhe uma nota. Domingas vai a uma gaveta fazer o troco, guarda uma parte, entrega-lhe o resto […]. Sara, carrancuda, guarda o dinheiro.

[…] a encharcar-se em pó-de-arroz que traz na saca […] (144)

Pela porta que comunica com o exterior, Júlia entra neste espaço de marginalidade (Ouve-se bater à porta da rua, 144) acompanhada por um homem, que sobe ao espaço superior e ao espaço de materialização da clandestinidade e da prostituição (o quarto):

O homem sobe a escada (144).

Uma outra porta interior separa a terceira personagem feminina da tríade familiar – Maria da Luz.

Júlia

Olá!... (A olhar para a porta B. B.) Pelo visto sempre cá temos o pespego… Não a acordes, coitada!... (145).

Embora partilhe o mesmo microespaço físico (a casa), Maria da Luz distingue-se deste grupo de personagens pelo facto de, ao contrário das restantes, se encontrar a dormir às três horas da manhã. A excecionalidade da “filha que dorme” no quarto interior é reforçada pelos cuidados de Domingas, materializados no ato de fechar a porta e secundado na didascália (Fecha de novo a porta com cautela…,148).

Marcolina (Criada vulgar, de alcoice, já idosa…,147) chega à sala, vinda do espaço superior, e, após um breve diálogo com Domingas, dirige-se à porta da rua e depara-se com a sexta personagem a ser apresentada em cena:

Marcolina dirige-se à porta da rua, abre-a, e, deparando-se com Manuel Facão) Oh!

Também as portas têm ouvidos! (149).

Os objetos presentes em cena são “objetos praticáveis” e em número bastante reduzido. São apresentados nas didascálias que acompanham o início de cada ato e, pontualmente, no texto secundário ao longo da obra. No ato primeiro, a didascália inicial destaca uma mesa, um candeeiro de petróleo, alguns objetos de costura e o restante

mobiliário adequado a esse espaço. Ao longo deste ato, damos conta da existência de

uma cadeira, de um cálice e de uma garrafa de aguardente (150). No ato segundo, mantêm-se os mesmos objetos apresentados no ato anterior, a que se juntam um jarro, um castiçal (157) e alguns objetos de escrita (170). No ato terceiro, temos os objetos anteriormente apresentados e uma corda (180).

Estes objetos apresentados em cena podem ser agrupados, de acordo com a sua função prática. Assim, encontramos objetos que se enquadram na vida doméstica, como é o caso da mesa, da cadeira, do candeeiro, dos objetos de costura, do jarro e do castiçal; objetos que remetem para a marginalidade e para devassidão, concretizadas no cálice e na garrafa de aguardente; material de escrita, que remete para a exemplaridade de Maria da Luz relativamente às restantes personagens; e a corda, que será utilizada para encobrir o crime.