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I. O LODO , DE ALFREDO CORTEZ

2. Abordagem literária

2.1. Título

O título da obra é constituído por duas palavras, num total de cinco letras44, sendo que o algarismo cinco é a soma dos algarismos três (símbolo do elemento masculino “céu”) e dois (símbolo do elemento feminino “terra”)45. É o símbolo do Homem e do Universo e, por isso, pode apontar para a procura de conhecimento do homem, integrado numa ordem maior de que faz parte. O algarismo cinco remete, também, para a apreensão sensorial do mundo, assim como para as chagas de Cristo, que representam o sofrimento.

Assim, podemos verificar que este algarismo pode ser associado à dialética humanidade (terra) / divindade (céu) e à relação homem/mulher, preocupações presentes ao longo dos tempos, dos mais remotos relatos bíblicos às abordagens contemporâneas. A título de exemplo, recuperamos o relato bíblico presente em Génesis 5, versículo 5, em que se apresenta o primeiro homem falecido de morte natural (Adão) e não assassinado, como Abel (Génesis 4, versículo 8), o que parece demonstrar a importância simbólica deste algarismo, ligado à figura de Adão, o pai da raça humana.

A desobediência de Adão teve como consequência a morte para todos os homens pois, ao ser seduzido por Eva, instituiu o pecado no mundo, marcando para sempre a condição humana, condenada à culpa e à morte. A morte e a angústia que a sua inevitabilidade traz constituem traços distintivos do homem que têm merecido a atenção dos que procuram o conhecimento da condição humana, com especial destaque para o pensamento existencialista, como referimos anteriormente.

Eva deu à luz Caim (Génesis 4, versículo 1) e Abel (Génesis 4, versículo 2), os protagonistas da primeira morte provocada. O primeiro tornou-se agricultor e presenteou Deus com os frutos da terra, numa oferta que não Lhe agradou, enquanto o segundo se tornou pastor e presenteou Deus com os “frutos” do seu rebanho, numa oferta que foi recebida com agrado. Sentindo-se ofendido pelo desagrado de Deus relativamente à sua

44 Parece haver, em Alfredo Cortez, uma tendência para títulos de obras que apresentam cinco letras, distribuídos por uma

ou várias palavras: Zilda, O Lodo, À la fé, O Oiro, Domus, Tá-Mar, Saias, Bâton, Lá-Lás, Moema. Excluem-se os inéditos,

Lourdes, com sete letras, e Gladiadores, com doze letras. 45

“O cinco simboliza a união, o centro e o equilíbrio, pelo facto de ser um número central na soma de nove e de ser a soma do elemento masculino céu, representado pelo número três, e o elemento feminino terra, representado pelo número dois. O número cinco é ainda o símbolo do Homem e do Universo, da ordem, da perfeição e dos cinco sentidos. […] o cinco é desde Pitágoras considerado o numero da união, da harmonia e do equilíbrio. Está associado ao homem, já que o seu corpo pode ser dividido em cinco partes e os seus cinco sentidos são utilizados para a perceção do mundo. […] Para Pitágoras, o cinco era a harmonia suprema que foi representada na arquitetura das catedrais do período gótico, com as estrelas de cinco pontas, as rosáceas de cinco pétalas e a cruz que também simboliza o número cinco, com as suas quatro retas por oposição a um centro. Para os esotéricos, o cinco era também o quinto elemento ou a quinta-essência, o éter, para além do fogo, da água, do ar e da terra ” (cinco (simbologia). In Infopédia [Em linha].

oferta e enciumado pelo protagonismo do irmão, Caim atraiu Abel à floresta, onde protagonizou o primeiro homicídio (fratricídio).

Estes dois relatos bíblicos parecem sugerir que o homem ao ser colocado no mundo foi presenteado com a liberdade que o distingue dos outros seres e que lhe acrescenta, para além da sua existência concreta, um universo de possibilidades. Os atos que os referidos relatos apresentam são consequência do exercício da liberdade, sendo que o crime de Caim decorre, também, do exercício da liberdade por parte de Adão e Eva, pois Caim e Abel nasceram depois de os seus progenitores terem sido expulsos do paraíso. Assim, a primeira desobediência acarretou as restantes desobediências e instaurou a noção de culpabilidade e de pecado que, na linha dos pensadores existencialistas, implica sofrimento e angústia. Adão desobedeceu, porque foi dotado de liberdade, liberdade essa que distingue todos os homens e que pode ser utilizada no exercício do bem ou do mal, uma vez que anula o determinismo e a influência que fatores como o meio ou a carga genética possam ter, como defendido pela estética naturalista.

Para além da numerologia, Alfredo Cortez, na obra O Lodo, parece ter tirado partido da simbologia associada ao nome que constitui o título desta obra. O vocábulo “lodo” remete para dois dos elementos primordiais da natureza – a água e a terra - que, associados, se transformam num elemento desprovido de beleza e que resulta da junção de dois pólos antagónicos: a água em que o lodo se forma reflete o céu, morada dos deuses, mas envolve a terra, morada dos homens. Simbolicamente poderá representar a distância entre a aspiração à perfeição e a constatação da imperfeição que parecem caracterizar o homem.

Nesta obra de Cortez, o “lodo” é a substância lamacenta que é a junção dos referidos elementos primordiais, o que nos permite perceber que o título anuncia o protagonismo da marginalidade e da clandestinidade para as quais o vocábulo agora remete e que se estende a quase todas as personagens intervenientes. O nome comum que constitui o título, antecedido pelo determinante definido, que consubstancia o substantivo, retira o protagonismo às personagens humanas que integram a obra e coloca o destaque num elemento natural de extremo valor estético-simbólico, pois a carga semântica negativa que o vocábulo encerra parece remeter disforicamente para o ambiente, constituindo, por isso, uma metáfora epocal e situacional. Por outro lado, este vocábulo poderá remeter para a única personagem masculina em cena que, metaforicamente, representará a clandestinidade, a marginalidade e o Mal a que anteriormente nos referimos.

Para além da ocorrência no título, a palavra “lodo” é retomada explicitamente em várias falas ao longo do texto e, indiretamente, através de palavras que remetem para o mesmo campo lexical.

Este vocábulo é mais frequente no discurso de Domingas, pois é quem melhor exemplifica a imperfeição humana e sofre as consequências do exercício da liberdade, ainda que as escolhas feitas no passado não tenham sido conscientemente entendidas como tal, como adiante esclareceremos. É também esta a personagem que mais se debate com a angústia e o desespero e com a necessidade de libertação face ao jugo de um suposto determinismo que lhe tolhe a vontade. Assim, o lodo em que a mesma se movimenta impede-a de acreditar que é possível sair do “charco” e procurar a luz e a felicidade há muito perdidas.

A referência ao “lodo” surge, indiretamente, em dois momentos do ato primeiro, através da palavra “lama”, no momento em que Júlia descreve a sua vida de miséria e a inutilidade do esforço e que conclui que “… não calha uma ocasião em que se tire o pé da lama” (146)46. Este mesmo conceito é explorado por Marcolina que afirma que Júlia não descansará enquanto não arrastar Luz para a vida que a mesma leva (“… enquanto a não vir também na lama, não descansa.” 148).

No ato segundo, o vocábulo surge em várias falas de Domingas, associado ao relato de um episódio da infância protagonizado pela própria e pelo “lodo”: “E o lodo a engolir! […] E o lodo a engolir sempre devagar! […] E o lodo até aí duma moleza desleixada, criou logo forças para lutar” (162-163). Domingas procura explicar a Luz que este incidente marcou para sempre a sua existência e constituiu o início da sua desgraça que se prolongou por toda a sua vida. Esta conclusão leva-a a questionar Luz (“Julgas que o lodo desistiu de mim? “) e a concluir: “O lodo fez-se vida para me afundar…” (163). Luz procura contrariar o fatalismo que domina Domingas, incentivando-a a lutar contra o determinismo que parece tolher a sua vontade: “Por que não tenta sair do lodo segunda vez?”.

Disposta a aceitar a ajuda da filha, Domingas parece ter percebido que alguém, pela primeira vez, poderá fazer algo por ela: “O que desejas é arrancar-me do lodo” (169). No entanto, a esperança que a ilumina é rapidamente ofuscada pela constatação da inevitabilidade que tem marcado a sua vida e que, segundo ela, continuará a determinar a sua existência: “O lodo não perdoa” (169).

Para além da palavra “lodo”, encontramos ao longo desta obra outros vocábulos que remetem para o mesmo campo lexical, como é o caso da palavra “charco”. Esta palavra surge no ato segundo, no diálogo entre Luz e Domingas, no momento em que

46 Recordamos que, por forma a facilitar a leitura, as páginas indicadas entre parêntesis se referem à peça que integra a

aquela afirma não compreender que a mãe e a filha convivam no mesmo ambiente, recuperando o valor disfórico da palavra:

Luz

E pode esta mãe, esta, a mesma!... negociar outra filha e conviver com ela neste charco!... (129)

Domingas também usa o mesmo vocábulo, ao descrever as tentativas que, no passado, empreendeu para se convencer de que a vida não lhe metia medo e de que a podia tomar nas suas mãos: “O desespero com que me debati, como em criança, no charco…” (164). Depois de admitir, perante Luz, por que não quer abandonar aquela casa (para não estar longe do homem que ama), Domingas assume, profeticamente, que o futuro também não lhe sorrirá: “E o meu medo todo é que lá no fundo, no fundo do charco, ainda me esperem coisas piores…” (167), o que mostra que não vê qualquer forma de contrariar o que considera como o destino que tem marcado a sua vida. Esta afirmação produz um efeito que surpreende, pois Luz percebeu a verdadeira dimensão do sofrimento de sua mãe, forçada a viver “esta vida, ao mesmo tempo de crime e de expiação” (167).