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Estruturas múltiplas através de encaixe

Estas estruturas sintácticas, para além de se sucederem, podem relacionar-se por encaixe (usando um termo comum na linguística significando o nesting, a que Douglas Hofstadter faz alusão no seu livro Gödel, Escher, Bach150). Podemos, nestes casos, ter uma oposição binária de oposições binárias; uma oposição binária de uma estrutura sequencial versus uma estrutura singular; uma sequência de oposições binárias de estruturas sequenciais versus uma estrutura circular de oposições binárias… é possível fazer múltiplos encaixes de encaixes num caminho que, de facto, não tem fim. Um dos exemplos mais claros deste gesto encontra-se na Sequenza I per flauto (cf. acima o

BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), op. cit., p.101. 149

HOFSTADTER, Douglas, Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid. A metaphorical fugue on 150

exemplo 53). Já o início de Outis (1995-1996) oferece muito claramente uma estrutura pluridimensional:

Ex. 75: Outis, redução para piano, página inicial com pequenas incisões nos compassos 6 e 8151.

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Pouco depois estas incisões tornar-se-ão mais notórias152:

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Estabelece-se, assim, um discurso com mais do que um nível, resultante da concepção beriana de estruturas por encaixe. Algo que, como veremos, é um elemento essencial na caracterização da prática musical de Luciano Berio.

BERIO, Luciano, Outis - azione musicale in due parti; testo di Dario Del Corno e Luciano Berio, 151

Riduzione per canto e pianoforte a cura di Paul Roberts e Nicholas Hopkins, Milano: Ricordi, 1996, p.1. Ibidem, p.2.

ESTRUTURAS IMPURAS

Comecemos por pensar La vera storia, de Berio, face às heranças (i) de Stravinsky e Bartók, e (ii) de Schoenberg, Webern e Alban Berg, face à relação que estabelece (iii) com os seus contemporâneos e (iv) com sua própria obra. Caracterizemos também a obra beriana pela adopção que faz de objectos que classificamos de impuros, e que são cada vez mais recorrentes, sobretudo a partir da sua obra Sinfonia. De facto, tendo herdado de Stravinsky e Bartók, e também de Alban Berg, o fascínio pelos objectos impuros, Berio herda o gosto pelo total cromático de Schoenberg, faz acompanhar a subalternização do objecto à sua função, explorando caminhos que abarcam a própria percepção humana, juntamente com os seus contemporâneos, e, por fim, tende cada vez mais a estabelecer um campo harmónico claro para as suas alturas, marcado por objectos de mais simples classificação e reconhecimento por parte do ouvinte.

Sendo mais concretos, Berio herda de Berg, Stravinsky, e Bartók a utilização de objectos impuros (cf. os exemplos 55, 56 e 57 citados acima), mas recusa a sua utilização de forma quase primitivista, digamos, por Stravinsky e Bartók (que estabelecem alternâncias binárias) e o carácter pós-romântico de Alban Berg. Em vez disso, prefere abraçar a tradição dos anos 60, pondo em causa a própria capacidade de reconhecimento humana, mas aplicando-a a um contexto de pendor mais diatónico. Retomando os exemplos 71 e 72, citados acima, note-se como, apesar de estes exemplos serem semelhantes em relação à sua organização interna (falamos, nomeadamente, da sua estrutura sequencial) eles são claramente distintos em relação aos objectos que os compõem: no caso de “Quarta Festa” composto por objectos tonais ou quase tonais, no caso de Sequenza VI composto por objectos tendencialmente possíveis apenas em contextos atonais.

A adopção de objectos impuros, baseados na sobreposição de características unas e múltiplas, contrapõe-se, como dissemos no início deste capítulo, ao uso de objectos cristalizados, que caracterizou grande parte da música do século XX, em particular a música dodecafónica tradicional (cf. o exemplo 54 citado acima), e está presente nas restantes estruturas. Pensamos, assim, que determinados gestos próprios

destas estruturas impuras pertencem, pelas suas características internas, a mais do que um contexto. Não podem ser, por isso, classificados de tonais, modais, ou atonais de forma definitiva. Pensamos, muito concretamente, nos exemplos de Stravinsky e Berg que demos (cf. os exemplos 55 e 56): o primeiro acorde de Stravinsky é a dominante de LAb [SOL - SIb- REb-MIb] com a apojatura não resolvida das suas notas uma 2ª menor acima. Estes gestos afastam-se claramente de uma definição acabada da sua condição. São, por isso, objectos em devir, e é esta sua condição de ser-em-devir que entra em contradição com o facto de pertencerem a uma qualquer linguagem pré-definida. Por isso, pertencem a estruturas impuras. Voltemos a Stravinsky e lembremo-nos das inúmeras discussões sobre se este acorde é tonal, modal, e portanto uma expansão do acorde octatónico, ou simplesmente atonal153. Na nossa opinião, este acorde é tudo isso ao mesmo tempo, e é isso que o faz singular.

Em “La notte” (Parte I), por exemplo, onde deparamos com três personagens – Leonora, Luca e Ivo –, deparamos também com três linguagens que se distinguem claramente entre si, embora discretamente. Que esta penumbra linguística ou estilística aconteça a propósito de um momento que se chama “La notte”, é algo que não nos podemos impedir de mencionar. No entanto, preferiríamos realçar o modo como esta presença de diferentes nuances linguísticas reflecte, antes de mais, a consideração por parte de Berio da natureza da obra de arte de uma forma radicalmente diferente da de muitos dos seus contemporâneos. Referimo-nos, muito concretamente, às consequências que tem para todo o pensamento musical e filosófico de Luciano Berio a consideração de uma forma radicalmente nova da natureza da obra de arte na época

da sua possibilidade de reprodução técnica, tal como Walter Benjamin a pensou num

dos seus mais conhecidos ensaios154. Esta questão, que abordaremos em detalhe no

Cf. TOORN, Pieter C. van den, The Music of Igor Stravinsky, New Haven and London: Yale 153

University Press, 1983; TYMOCZKO, Dimitri, “Octatonicism Reconsidered Again” Music Theory Spectrum 25 (2003), pp.185-202; TARUSKIN, Richard, “Chez Petrouchka: Harmony and Tonality ‘chez’ Stravinsky”, 19th Century Music, Vol. 10, Special Issue: Resolutions I (Spring 1987), pp.256-286, URL: http://www.jstor.org/stable/746439, acedido em 13 de Fevereiro de 2005; e, finalmente, um trabalho interessante que convoca a teoria interpretativa de Harold Bloom para melhor clarificar o modo como a tradição musical é recebida na música do século XX, centrando-se o seu autor em Stravinsky, para além de outros compositores da primeira metade do século XX: STRAUS, Joseph N., “The 'Anxiety of Influence' in Twentieth-Century Music”, The Journal of Musicology, Vol. 9, No. 4 (Autumn, 1991), pp. 430-447.

In A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin/3, op. cit., pp.207-241. Berio, de resto, 154

próximo capítulo, tem como seu principal vector a questão de que as características internas de um objecto deixam de poder ser encaradas de forma que diríamos ingénua, ao não contemplarmos a subjectividade de quem as enuncia. Mais concretamente, em qualquer filme estaremos ante o olhar do realizador em face de determinado objecto, e ante o objecto propriamente dito. As consequências desta constatação são imensas: na verdade, embora possamos dizer que esta alteração radical da forma de perceber o objecto artístico tem a sua eclosão ainda em meados do século XIX (com a invenção da fotografia), as consequências no domínio da arte musical não se fizeram sentir tão cedo como noutros campos artísticos, em particular o das chamadas belas-artes. Mas regressemos brevemente ao exemplo de “La notte”. Neste número, cada personagem apresenta a sua nuance linguística, a ponto de considerarmos que a linguagem caracteriza a personagem. Ao mesmo tempo, a extrema fineza desta nuance leva-nos a considerarmos que a sua percepção dependerá irredutivelmente da nossa consciência linguística, no que à arte musical diz respeito.

Ex. 76: La vera storia, Parte I “La notte”155

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A adopção de objectos impuros é, talvez, uma das características da música beriana que mais equívocos poderá fazer surgir na sua recepção. Esta construção de objectos impuros pode, nomeadamente, ser encarada como não intencional.

BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I), op. cit., p.136. 155

Especificamos: o compositor seria vítima da sua própria intuição e, assim, em vez de fazer um objecto puro e verdadeiramente atonal, construía um objecto que, apesar de ter características inegavelmente modernas, era vítima do peso da tradição, que assim simultaneamente também o caracterizaria. Pensamos que tal visão não é rigorosa. Queremos, aliás, a este propósito, falar da concepção da história da música inerente a esta prática artística. Na verdade, quando um compositor como Berio adopta um gesto carregado de significações históricas, tem como primeira intenção inserir a sua produção no imenso caldeirão cultural que caracteriza as nossas sociedades, evitando, deste modo, qualquer visão mais puritana do fazer artístico: “We can refuse history, but we cannot forget about it, even with the new technologies […]”156. Porque assim seria sempre o caso, por mais que qualquer compositor o tentasse evitar.

Devemos, pois, com certeza pensar na questão da relação da produção musical contemporânea com a tradição sob uma perspectiva dupla: se, por um lado, a tradição tenderá a esmagar a produção contemporânea, contextualizando-a num todo que esta última tende a rejeitar, por receio de que a primeira lhe imponha significados que ela não deseja, por outro lado, o resgate, pela produção contemporânea, de determinados gestos da tradição poderá ser precisamente um modo de os encarar na sua leveza original, sem preconceito, permitindo que sobressaia, acima de tudo, uma potência de ser que lhes é natural157. Esta última possibilidade encontra-se de forma particularmente clara no primeiro andamento de Sinfonia (primeiro sistema da página 1; cf. o exemplo 64, acima neste capítulo), em que os tempos fortes são claramente os que se sucedem a cada pausa, e os tempos fracos são a sua subdivisão, sugerindo uma subdivisão do tempo conforme à tradição tonal. Considerando agora o seu segundo sistema, a mesma atitude também se encontra de forma clara: o ritmo é constituído por uma sucessão de tempos regulares marcados pela percussão (embora esta não faça exclusivamente isso) face à qual os cantores inserem notas fora do tempo:

BERIO, Luciano, Remembering the Future, op. cit., p.67. 156

Não podemos deixar de fazer referência ao artigo de David METZER sobre o modo como Luciano 157

Berio e John Cage lidam, precisamente, com a tradição: “Musical Decay: Luciano Berio's "Rendering" and John Cage's "Europera 5"”, Journal of the Royal Musical Association, Vol. 125, No. 1 (2000), pp. 93-114.

Ex. 77: Sinfonia, I, segundo sistema158.

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Inerente a este procedimento estão dois níveis de criação rítmica: a criação dos tempos fortes — regulares ou irregulares —, e a criação das durações que preenchem esses tempos — também elas regulares ou irregulares. Esta atitude face à história atravessa, aliás, toda a produção beriana: para além do já citado exemplo da “Scena VII”, baseado na Sequenza IX per clarinetto (cf. o exemplo 45 atrás neste capítulo), não queremos deixar de incluir nesta enumeração de objectos impuros a Sequenza VIII per

violino, com a sua acumulação de diferentes níveis rítmicos, como se pode confirmar no

exemplo 68, acima neste capítulo.

Não podemos deixar de fazer referência ao lado eminentemente político da opção – aparentemente apenas estética – de se incluirem objectos puros ou impuros no fazer musical. Ao mesmo tempo, gostaríamos de realçar a forma como Luciano Berio vê o mundo de hoje: um mundo plural, em expansão, e não apenas em mutação no que ao devir das suas ideias diz respeito. E portanto um mundo que se relaciona de forma

BERIO, Luciano, Sinfonia, op. cit., p.1. 158

singular com a pluralidade da sua história. Em conversa com Rossana Dalmonte, Berio afirma:

Non, la tabula rasa, en musique surtout, n’existe pas. Mais cette tendence a travailler avec l’Histoire, à extraire et à transformer consciemment des «minerais» historiques et à les absorber dans les processus et par des matériaux qui ne sont pas marqués par l’Histoire — cette tendence reflècte le besoin qui m’acompagne depuis longtemps, d’intégrer l’une dans l’autre différentes «vérités» musicales, afin de pouvoir également ouvrir le dévelopment musical sur différents degrés de compréhension, pour en amplifier le dessein expressif et les niveaux de perception.159

“Níveis de percepção” estes que estarão de modo particularmente evidente na complexa forma de La vera storia.

Chegados aqui, importa falar do papel do ritmo num contexto de harmonia multipolar. Poderíamos falar de ritmo enquanto harmonia (como podemos falar de dinâmica, timbre e até de espacialização enquanto harmonia) — em “Brin” (de Six

Encores per pianoforte), por exemplo, a evolução harmónica tem mais a haver com a

presença maior ou menor de certas notas do que com a sua existência. A própria concepção de um ritmo irregular associado à multipolaridade é uma característica fundamental da música de Berio — é o ritmo que caracteriza esta multipolaridade, dando peso e expressão a cada um dos componentes da harmonia que o acompanha.

Ao mesmo tempo, é a existência de pensamento e ritmo harmónicos o que permite a complexidade sintáctica e rítmica berianas com poucos meios, ou seja, podemos sempre considerar pelo menos dois níveis rítmicos na música de Luciano Berio: um primeiro, que é o ritmo propriamente dito, e um segundo, que corresponde à introdução das notas da harmonia, que classificamos como ritmo harmónico. Este fenómeno é extremamente claro no exemplo da Sequenza V per trombone (1966).

Luciano Berio. Entretiens avec Rossana Dalmonte, op. cit., p.92. 159

Ex. 78: Sequenza V per trombone160.

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Mas a articulação entre ritmo e harmonia é também, em Luciano Berio, um elemento fundamental para a viabilização do contraponto de funções sintácticas, conjugando diversidade e integração na tradição. Delicado, subtil e no entanto decisivo.

La vera storia representa um momento muito particular na produção beriana, marcado

pela emergência de figuras que se repetem com a mesma duração (como que coaguladas) e cuja posterior elaboração respeita a duração da figura original, respeitando a pulsação que lhe está subjacente. Um ritmo claramente marcado pela sua articulação à semínima (ou seus múltiplos) e pelo uso do contratempo. A aria “La Vendetta” (Parte I) é um dos muitos exemplos do que acontece em todas as arie da ópera.

Ex. 79: La vera storia, “La Vendetta” (Parte I)161.

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Mas a articulação de ritmo e harmonia, ou do ritmo com a melodia, é um fenómeno que se repete em diversos momentos de La vera storia, como, por exemplo,

Luciano Berio, Sequenza V per trombone, London, Wien: Universal Edition UE 13725, 1968, p.1. 160

BERIO, Luciano, La vera storia - Azione musicale in due parti (Parte I),op. cit., p.85. 161

na “Ballata I: se sai cos’è un figlio” (Parte I). De facto, a articulação entre melodia e ritmo evita a não previsibilidade do ritmo atonal irregular, porque o ouvinte que está perante ele antecipa o seu desenrolar. O mesmo fenómeno acontece com a peça “Fiamma (Nicolodi)”, de Duetti per due violini (1983; vd. o exemplo 70 atrás neste capítulo).

Tanto o fenómeno das alturas como o do ritmo reflectem, quanto a nós de forma singular, dois conceitos deuleuzianos. E são eles o conceito de diferença e repetição e de regime de signos. Porque a diferença em si não é o negativo do mesmo, e porque a repetição em si não confirma a generalidade, estamos perante a relação entre singularidades absolutas na música de Berio.

Nous voulons penser la différence en elle-même, et le rapport du différent avec le différent, indépendamment des formes de la représentation qui les ramènent au Même et les font passer par le négatif.162

E, entretanto, num mundo em constante devir, repetir não é confirmar, é garantir a reiteração da mesma sensação num contexto diferente:

Répéter, c'est se comporter, mais par rapport à quelque chose d'unique ou de singulier, qui n'a pas de semblable ou d'équivalent.163

Se a diferença e a repetição em si permitem uma integração relativa, digamos, dos objectos num todo, que os salvaguarda de serem esquecidos, paralelamente percebemos que a mútua afecção (no sentido espinosiano) dos objectos em relação é que confere sentido ao objecto sonoro beriano. Por isso Deleuze é oportuno em apontar para uma infinitude de sentidos na constituição do regime de signos:

[…] what is retained is not principally the sign's relation to a state of things it designates, or to an entity it signifies, but only the formal relation of sign to sign insofar as it defines a so-called signifying chain. The limitlessness of signifiance replaces the sign.164

Tudo isto se conjuga, quanto a nós, com o conceito, bem mais simples, de sensação. A sensação que habita o objecto artístico constitui o garante de suspensão de

DELEUZE, Gilles, Différence et répétition, op. cit., pp.1-2. 162

Ibidem, pp.7-8. 163

DELEUZE, Gilles, Félix Guattari, A Thousand Plateaus, op. cit., p.112. 164

todo e qualquer aparato teórico que possa estar a montante do mesmo, consciente ou inconscientemente. Na música de Berio, em particular, e na sequência do que acabamos de descrever em detalhe quanto à articulação sintáctica dos seus elementos, não há uma percepção intelectual do que acontece, mas um imperativo de sensação para o qual somos inelutavelmente conduzidos.

E se sensação diz respeito ao instante imediato, no que ao objecto artístico se refere, temos que a mesma simplicidade acontece com a desterritorialização e reterritorialização, num tempo mais dilatado. Toda a arte beriana deve ser percebida, na verdade, como resultante de algo que é antes de mais sensorial, intuitivo. Concretizamos: quando falamos de desterritorialização, falamos do sentimento de afastamento de um objecto; e quando falamos de reterritorialização, falamos da aproximação de um outro objecto, ou do mesmo sob uma outra forma, seja ele em estruturas simples ou mais complexas. Não se trata, portanto, de uma qualquer laboração teórica, mas de uma música que parte desta dinâmica de sensações para construir o seu aparato e se constituir como objecto artístico junto do seu público.

Suspenso e Não Centrado

Chegamos, por fim, ao último aspecto a salientar quanto ao objecto sonoro beriano: o seu carácter suspenso e não centrado. A descrição deste aspecto liga-se a uma perspectiva mais distanciada deste mesmo objecto, e tendo como pano-de-fundo desta perspectivação todos os aspectos anteriomente apontados, ligados a uma análise harmónica e rítmica mais detalhada. Na nossa opinião, longe de se entender como fragmento, é o carácter rizomático da sua música o que Berio procura, consubstanciado nas características de suspensão e não centramento, porque esta ambiciona integrar-se no todo histórico de que inevitavelmente faz parte. Diríamos melhor: no todo da

imanência que norteia o pensamento filosófico deleuziano, e a que Berio não é alheio.

Assim, por suspensão entendemos também a da própria História na sua música, no sentido em que os gestos e traços da música no tempo são, em Berio, matéria contemporânea, digamos. Por não centramento entendemos também o facto de o objecto sonoro beriano se ver antes de mais como ponto de partida, como potência de ser, num todo onde se integra, e não como algo que constitua um ponto privilegiado de observação desse mesmo todo. O objecto sonoro beriano é suspenso e não centrado, por assumir uma postura distraída de si mesmo, ao abraçar objectos-outros e ao se sedimentar na relação que cultiva com os mesmos; na escuta, o ouvinte também é chamado a distrair-se do que ouve, ao concentrar a sua atenção não num só corpo, mas num corpo plural em transformação contínua. Por isso, para se ponderar, este aspecto suspenso e não centrado não se deixa descrever num só exemplo ou conjunto de exemplos, mas alicerça-se em todos os exemplos dispostos ao longo da análise neste capítulo.

De facto, como já o afirmámos acima, compreender o objecto sonoro beriano não se basta à constatação da sua matriz fragmentária. Diríamos antes que o fragmentário na escrita de Berio é a condição necessária para a sua consideração de um todo rizomático que é da sua natureza — um pouco na linha da “exigência fragmentária” de que Maurice Blanchot fala no conhecido ensaio L'écriture du

désastre165. E, assim, o objecto sonoro beriano comporta-se como rizoma, multiplica-se em gestos de diferença e repetição, desdobra-se em multiplicidades e assenta na montagem para se retratar em lógicas de combinações ou regimes de signos, desterritorializando-se para se reterritorializar, constituindo um portador de sensação a que definitivamente não somos indiferentes.

Como começámos por dizer no início deste capítulo, o carácter suspenso e não centrado do objecto sonoro beriano liga-se de forma particular ao conceito deleuziano de ciência menor, porque é na sua incompletude que o objecto revela as suas

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