• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – PERCURSO METODOLÓGICO: a construção de um

3.1 Estudo do Cotidiano na apreensão da realidade escolar

No momento em que consideramos legítima a proposição de que a realidade escolar não está dada por si só, não é única, homogênea e rígida, mas que, pelo contrário, é plural, diversa, multiforme e, ao mesmo tempo, singular a cada grupo social em determinado tempo e espaço, construída culturalmente pelos sujeitos/consumidores que nela atuam, tem maior sentido falarmos de cotidianos escolares.

Os estudos que tecem análises desses cotidianos explicitam a obviedade de que o cotidiano sempre existiu, mas, para além disso, buscam compreender e demonstrar como os fatos cotidianos estão presentes na construção do espaço escolar como um todo ou de algum aspecto específico, como, por exemplo, a produção do conhecimento através das questões didáticas e do currículo, a democratização das relações através dos mecanismos de participação e de gestão, etc.

Apesar das pesquisas que seguem tal perspectiva apresentarem proposições convergentes quanto ao olhar que lançam sobre esses cotidianos, as abordagens teórico- metodológicas nas quais se fundamentam se diferenciam, bem como os métodos para a realização das mesmas.

Penin (1989), no estudo intitulado Cotidiano e escola: a obra em construção, buscou apreender as marcas do cotidiano escolar de quatro escolas públicas de 1º grau22 em relação ao elevado índice de repetência e evasão escolar dos estudantes. A investigação desenvolvida respaldou-se no pensamento de Lefebvre, especificamente no conceito de cotidianidade vendo os fatores que implantam e reforçam e aqueles que se opõem a cotidianidade23. Dessa forma, caracterizou-se como um estudo de campo de tipo exploratório, uma vez que objetivou analisar a existência de eventos mais do que identificar a frequência, distribuição ou intensidade dos mesmos.

A partir disso e concebendo o processo educativo escolar como resultante da interação dialética entre as determinações sócio-histórico-institucionais, as condições específicas e ações de pessoas e grupos que atuam no espaço escolar, a autora procurou descrever as condições concretas da vida cotidiana de cada instituição pesquisada,

22 Atualmente, esse nível corresponde a primeira etapa do ensino fundamental.

23 Tais fatores são, por um lado, a fragmentação, hierarquização e desigualdade e, por outro lado, a

articulando essas descrições com as representações de professores, equipe técnica e pais de estudantes sobre tais condições.

Nesse sentido, a pesquisa tomou a vida cotidiana como via de acesso à realidade social, como modo de explicá-la e transformá-la considerando o caráter singular de cada espaço ou grupo da sociedade que é constituído, especialmente, pelos aspectos históricos em nível macro e microssocial.

Essa singularidade, bem como a heterogeneidade, do cotidiano escolar também foi reconhecida por Ferreira (2003) num estudo em que buscou interpretar as práticas coletivas dos adultos em três escolas de ensino básico, fora da sala de aula. No entanto, ela via esse cotidiano como algo historicamente “fabricado” pela associação dos fatores sociedade/política/vida/saber.

A autora, perseguindo o viés de análise do cotidiano proposto por Certeau (2008), comprovou em sua pesquisa que, para além de ser um lugar onde os adultos se encontram, desenvolvem suas atividades e estabelecem relações, a escola é um espaço onde se “fabricam” práticas cotidianas construídas por “táticas” e “estratégias” de ações dos atores sociais que nela circulam e pelas conjunturas e contextos em que estão inseridos. Assim, aponta que esse processo de construção cultural de cada escola pode ser compreendido por dois eixos principais. Um “[...] por intermédio do papel exercido pelo sistema educativo, da estrutura hierárquica, das normas oficiais, dos regulamentos e da cultura consolidada.” E o outro “[...] por meio das relações subjetivas desenvolvidas no dia-a-dia de cada escola.” (FERREIRA, 2008, p. 247)

A rede de operações desses dois eixos desencadeia na fabricação de diferentes culturas escolares e, a fim de apreendê-la, a referida autora optou por desenvolver um estudo etnográfico de maneira que pudesse manter um contato intenso com os sujeitos do cotidiano das escolas escolhidas e para isso realizou observações da rotina escolar, entrevistas e análise de documentos.

Através dessa abordagem, foi possível ver que as escolas revelam “táticas” e “estratégias” que caracterizam a sua singularidade. Dessa maneira, esclarece que nem todas as definições normativas estrategicamente elaboradas são reproduzidas no cotidiano, mas que são taticamente fabricadas. Além disso, foi visto que a escola não caminha apenas no sentido do sucesso ou do fracasso, pois há uma dinâmica contraditória do espaço escolar caracterizada por algumas ações (do tipo tático) que

podem representar avanços e outras que podem representar retrocessos, não há uma exclusividade ou um todo organicamente concatenado. As novas orientações, novos modelos e novas práticas nem sempre se alinham com a ideia de sucesso, como também não pode ser visto como fracasso a manutenção de práticas antigas, pois o que existe de fato são readaptações e novas interpretações do novo e do velho.

Essas conclusões a que Ferreira (2003) chegou reafirmam algumas considerações de Oliveira, I. (2008, p. 59, grifos da autora) ao analisar as condições e possibilidades de realização de pesquisa educacional através da abordagem do cotidiano. Explanando acerca das práticas pedagógicas cotidianas e seus sentidos múltiplos, a autora diz que:

[...] a vida cotidiana nas escolas é espaçotempo de práticas invisíveis ao olhar totalizante. Nela, os professores e alunos desenvolvem táticas e usos através de práticas que remetem a uma forma específica

de ‘operações’ (maneiras de fazer).

Desse modo, as maneiras de fazer suplantam a ideia de um consumo puro e simples da ordem imposta e mostra que os atores sociais desenvolvem formas alternativas de uso e que, enquanto praticantes/autores de seus cotidianos, disseminam e manipulam as regras ao seu modo, mesmo que de maneira pouco ou nada perceptível e marginal. (Ibidem, p.56)

Tais proposições se alinham a nosso olhar sobre a participação vendo a mesma como um recurso de democratização das relações sociais na escola, como um elemento de empoderamento dos atores escolares e também como um produto fabricado, e igualmente consumido, nas práticas cotidianas. Assim sendo, definimos alguns métodos e instrumentos que nos ajudaram na apreensão da realidade escolar das instituições pesquisadas e procuramos adentrar em seus contextos e características, pois também consideramos que a análise do social necessita conjugar os fatos empíricos e simbólicos uma vez que a sociedade é constituída por ambos.