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De acordo com Alves (2003), a primeira tendência sobre estudos do cotidiano tem suas origens e predominância nos Estados Unidos, o qual identificava o cotidiano como “caixa preta”, metáfora utilizada para explicar o desconhecimento do que acontece no interior da escola, nas relações cotidianas.

Essa expressão, conforme Alves (2003), tem sua origem no objeto que pode ser encontrado após um desastre de avião, que guarda várias sobre informações sobre o voo. Essa locução também é comum no ensino de ciências, quando o professor usa uma caixa para estimular nos estudantes sua capacidade imaginativa para descobrir o que pode haver numa caixa com objetos que fazem barulho. Com esse artefato, busca-se ampliar no aprendiz sua capacidade de idear e não que esse acerte o conteúdo da caixa.

Essa metáfora, pois, designa a busca de entender o que ocorria no interior da “caixa preta”, ou seja, da escola. A transformação do que ocorre dentro da escola depende da capacidade imaginativa daqueles que a ela se dedicam e dela fazem parte. Alves declara:

Não importando o que se passa no interior da “caixa preta”, a intervenção no sistema deve se dar sobre os planos de entrada (inputs), a partir de uma realimentação com dados obtidos na finalização do processo anterior (feedback), possível através da avaliação dos indicativos fornecidos pelos resultados de saída (outputs). A aplicação das provas de final de ciclos e cursos, como se faz em nosso país e tantos outros, nos fornece uma concretização desse “modelo”. (ALVES, 2003, p. 03).

Percebe-se ainda uma ideia muito hegemônica sobre as instituições de ensino, pois não se busca compreender a realidade que ocorre no interior da escola, as relações estabelecidas, que a caracteriza pelo rendimento obtido mediante provas, as quais são as mesmas para todos os contextos educacionais.

De acordo com essa autora, um segundo momento de pesquisas sobre cotidiano aparece quando os estudiosos argumentam que as relações hegemônicas sobre cotidiano escolar e a cultura são insuficientes para se compreender o cotidiano escolar em sua completude, os sujeitos nele envolvidos, bem como suas dificuldades e as possíveis soluções para os fatos sociais.

Eles tiveram como inspiração os escritos de Gramsci e os teóricos da Escola de Frankfurt, especialmente Habermas, que discutiam novos paradigmas em currículo, e, assim, introduziram a dimensão de cotidiano em suas pesquisas como forma de compreender a escola e as suas relações sociais.

Os pesquisadores nessa área, ainda de acordo com Alves (2003), entendiam ser indispensável a ação ativa dos atores sociais, mediante reuniões, processo denominado Pesquisa Participante. Esses estudos têm forte influência dos movimentos sociais organizados, principalmente os baseados nas ideias de Paulo Freire. Essa tendência foi desenvolvida, na área de currículo, especialmente por Ana Maria Saul, a qual exerceu influência decisiva nos trabalhos sobre cotidiano e em demais áreas como, por exemplo, avaliação educacional.

Alves (2003) destaca ainda as pesquisas do norte-americano Robert Stake, o qual percebia a necessidade de observar os fatos ocorridos diariamente na escola como forma de pensar esse, sem generalizá-lo, uma vez que não se pode igualar os fatos ocorridos em determinado contexto com outro: cada instituição segue determinado ritmo, de acordo com sua realidade.

Os trabalhos de Robert Stake permitiram o desenvolvimento de pesquisas significativas sobre o cotidiano por pesquisadores brasileiros. Alves (2003) destaca os estudos de Menga Ludke e Marli André, as quais formularam uma escola de pesquisadores do cotidiano, sendo referências nessa temática.

Com as análises de Stenhouse (1991), na Inglaterra, e de seus seguidores, desenvolve-se a ideia de professor-pesquisador, o qual é responsável por intervir no cotidiano escolar à medida que questiona, reflete, pesquisa, analisa suas ações, suas práticas desenvolvendo desta forma novas propostas educativas. De acordo com Stenhouse, para compreendermos os saberes elaborados por cada escola de um sistema educativo, faz-se necessário estudarmos múltiplos sujeitos neles envolvidos e as relações estabelecidas no cotidiano.

Alves (2003) atenta que, com a tradução no Brasil dos trabalhos realizados no México por Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell (1986), os estudos de cotidiano na escola incorporam uma nova ideia:

Mas que a tendência de escrever a escola em seus aspectos negativos dizendo o que “há nelas ou que não corresponde ao modelo de análise adotado” (p.10) tão comum nas pesquisas de cotidiano desenvolvidas pela tendência hegemônica, o importante é perceber que devemos estudar as escolas em sua realidade, como elas são, sem julgamentos a priori de valor, e principalmente, buscando a compreensão de que o que nela se faz e se cria precisa ser visto como uma saída possível, naquele contexto, encontrada pelos sujeitos que nela trabalham, estudam e vão levar seus filhos. (ALVES, 2003, p. 04).

Compartilho desse pensamento, uma vez que, ao estudarmos o cotidiano escolar, devemos não apenas apontar erros e fazer julgamentos, mas compreendermos os motivos que levam a determinadas ações, refletindo sobre o contexto no qual se insere seus sujeitos, buscando dessa forma contribuir para novas concepções de Homem, mundo e sociedade.

Na pesquisa que realizei, busquei não apenas descrever fatos negativos ocorridos no cotidiano escolar, mas compreender as relações estabelecidas pelos sujeitos nele envolvidos, uma vez que compreendo que construímos nossa história, nossa identidade nas relações cotidianas que mantemos com nossos pares.

Concordo dessa forma com Alves (2003, p. 05), quando declara:

Os trabalhos que se preocupam com o cotidiano da escola e com os diferentes modos culturais aí presentes, partem, então, da ideia de que é nesse processo que aprendemos e ensinamos a ler, a escrever, a contar, a colocar questões ao mundo que nos cerca, à natureza, a maneira como homens/mulheres se relacionam entre si e com ela, a poetizar a vida, a amar o Outro.

É nas relações cotidianas que aprendemos a enfrentar os desafios que a vida nos oferece. Nas nossas relações, estamos expostos a sentir diferentes emoções, aprendizagens, conhecimento, pois cada pessoa é um ser singular, cada contexto possui vários significados, a depender da cultura individual.

É no cotidiano que aprendemos a solucionar problemas, pois é vivendo o cotidiano, na composição de seus acontecimentos, que vamos mudando a vida e os contextos no qual ela pulsa. Acredito, dessa forma, que é no cotidiano que o aprendiz se desenvolve, aprende, se constrói. Faz-se necessário, portanto, que este seja desafiado a várias possibilidades de aprendizagens, ao seu desenvolvimento espiritual, motor, afetivo, social, político e não apenas cognitivo.

Entendo também que existem vários modos de criar conhecimentos no cotidiano escolar, o que está relacionado às concepções elaborados pelos sujeitos que nele participam, nas reflexões do professor sobre sua prática, nas relações estabelecidas por todos que fazem o contexto escolar. É nesse espaço-tempo que podemos tecer conhecimentos, criar possibilidades de aprendizagem e discussões, pois é no cotidiano da escola que o currículo se consolida, se expressa.

Estou de acordo com Macedo et all (2004, p. 21):

[...] no currículo tecido e cada escola concreta, vamos encontrar em movimento, sendo trançados/destrançados/trançados de outra forma, múltiplos conhecimentos, o tempo todo e em todos os espaços (na sala de aula, nos corredores, na sala do cafezinho dos professores, no pátio de recreio, na biblioteca, na cozinha, no portão): aqueles que professores/professoras, alunos/alunas e todos os que circulam pela escola trazem da família, do grupo religioso, da associação ou do sindicato que frequentam, do time de futebol no qual jogam, do clube onde vão, das fofocas da vizinhança, dos programas de televisão ou de rádio que vêem/ouvem; (...) Todos esses conhecimentos, com sua carga de positividade e negatividade, bem como em sua importância relativa, estão na escola e tencionam-se multuamente. No entanto, só notamos alguns deles e não aprendemos a fixar o modo como a maioria organiza-se e torna- se conhecimento “verdadeiro” em nós. É preciso, pois caracterizar os processos pelos quais estes conhecimentos se formam e se “perdem” como sendo complexos, cheios de dúvidas e incertezas e deixar dito que, sobre eles, tudo temos ainda a aprender.

Compreendo que, nas relações estabelecidas no contexto do cotidiano, os sujeitos envolvidos expressam conhecimentos e valores constituídos nas suas relações, desenvolvendo dessa forma todos os seus sentidos. São nesses espaços- tempos que se constroem identidades, utopias, conhecimentos e memórias múltiplas.

Entendo, contudo, que geralmente existe um currículo elaborado por uma classe hegemônica, o qual serve como um guia que normatiza as ações dos professores em sua atividade pedagógica, bem como as ações dos sujeitos nele envolvidos. Esses guias funcionam como mecanismos de controle sobre as ações de todos que dele participam, sejam dos estudantes, em seu rendimento escolar, seja dos professores, em alcançar níveis de aprendizagem, seja dos gestores, em atingir metas.

De acordo com Macedo et al. (2004, p. 36), um dos mecanismos de avaliação e controle mais praticados

[...] é a “testagem” dos alunos. Tanto algumas escolas como redes de ensino têm optado por provas únicas ao final dos bimestres, semestres ou anos letivos como forma de controlar o desenvolvimento do programa pelo professor. A avaliação passa a funcionar, então, articulada ao currículo formal, como uma tentativa de controle do processo pedagógico desenvolvido no cotidiano da escola.

De acordo ainda com os referidos autores, os procedimentos de controle nas escolas estão centrados nos conteúdos, nas habilidades a serem desenvolvidas pelo currículo em ação e nos mecanismos de avaliação, os quais determinam os padrões de comportamentos que devem ser cumpridos.

Esses autores salientam ainda:

Atualmente, com a avaliação básica via Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), um processo semelhante pode estar se iniciando. Ao definir os conteúdos a serem avaliados em cada etapa da escolarização básica, o SAEB acaba por direcionar os currículos das escolas no sentido dos conteúdos/habilidades medidos pelas provas do SAEB. Se imaginarmos que a avaliação seja utilizada para a distribuição de verbas para os sistemas mais eficientes, o controle fica ainda mais poderoso. (MACEDO et

al., 2004, p. 37).

Corroboro com esses autores, uma vez que entendo que a escola geralmente tem se preocupado com a transmissão e assimilação de conteúdos. O que se busca na maioria das vezes é atingir uma determinada meta, habilidades que devem ser desenvolvidas, conteúdos a serem trabalhados para que os aprendizes sejam considerados pessoas escolarizadas, deixando de considerar, nas relações cotidianas, o processo de produção sociocultural, política, ética, espiritual e emocional.

Com o propósito de compreender a dinâmica curricular que ocorre no cotidiano da escola, busquei mediante esse estudo identificar as práticas cotidianas construídas na comunidade escolar que contribuem no processo de formação integral do educando.

Para alcançar tal meta, são valorosos os estudos de Peter McLaren, importante crítico e estudioso canadense, que estudou as relações, os rituais cotidianos das escolas. McLaren buscou desenvolver uma teoria crítica emancipatória da educação, questionando a relação que a escola estabelece com a ordem social dominante e como essas relações reproduzem o capital cultural dominante e os sistemas de controle sobre os sujeitos neles envolvidos.

Em suas análises sobre os rituais da escola, esse pesquisador busca demonstrar como as escolas reproduzem as ideologias e o código cultural dominante, os quais preparam a classe trabalhadora para a condição de subalternos e mantedores da mesma.

As escolas servem como ricos repositórios de sistemas de rituais; que os rituais representam um papel crucial e inerradicável no conjunto da existência do estudante, e que as dimensões variadas do processo ritualístico são intrínsecas aos eventos e transações da vida institucional e na tessitura da cultura da escola. (McLAREN, 1991, p. 29).

Em sua concepção, os rituais nos permitem identificar o código cultural e as ideologias que, subjetivamente, simbolicamente, são transmitidos, e como são organizados e distribuídos os conhecimentos. O uso do termo ritual em suas pesquisas busca “[...] levar a sério conceitos de poder e dominação, que considera o ritual uma produção cultural construída como uma referência coletiva ao simbólico e a experiência localizada da classe social de um grupo.”. (MCLAREN, 1991, p. 30).

Entendo que, no cotidiano da escola, são expressas várias ideologias, diversos códigos culturais. Em virtude disso, termos um olhar minucioso em relação às subjetividades é fundamental para que não venhamos a nos corromper tendo em vista os controles aos quais somos subordinados. Na escola, são constituídos conhecimentos, criam-se novas possibilidades de investigação e descobertas.

Se continuarmos a reproduzir apenas os valores das classes dominantes, estaremos conduzindo os futuros cidadãos à ideia de exclusão social. O currículo exerce forte influência nas relações, estabelecidas no cotidiano da escola, na

construção de identidades e ideologias. Compartilho das ideias de McLaren (1977, p. 216), quando declara:

O currículo representa muito mais que um programa de estudos, um texto em sala de aula ou vocabulário de um curso. Mais do que isso, ele representa a introdução de uma forma particular de vida; ele serve, em parte, para preparar os estudantes para posições dominantes ou subordinadas na sociedade existente. O currículo favorece certas formas de conhecimento sobre outras e afirma os sonhos, os desejos e valores de grupos seletos de estudantes sobre outros grupos, com frequência discriminando certos grupos raciais, de classe ou gênero.

No currículo está imbricada a ideia de cidadão que se pretende formar para determinada sociedade. No entanto, por entender que este se expressa nas relações estabelecidas no cotidiano e nos rituais da escola, é que considero necessário o estudo do mesmo com um olhar mais apurado para que se possa compreender as diferentes relações estabelecidas pelos atores sociais em determinados espaços-tempos.

Comungo, portanto, com McLaren (1977, p. 216), quando evidencia que

O conhecimento adquirido em salas de aula deveria ajudar os estudantes a participarem em questões vitais que afetam suas experiências cotidianas, em vez de simplesmente endeusar os valores do pragmatismo mercantilista. O conhecimento escolar deveria ter um objetivo mais emancipatório do que abater trabalhadores (capital humano) e ajudar as escolas a se tornarem a citadela da ideologia corporativista. O conhecimento escolar deveria ajudar na criação de condições produtivas para a autodeterminação do estudante na sociedade mais ampla.

Com base nos estudos de cotidiano aqui elencados, busca-se nesse projeto identificar as práticas cotidianas na comunidade escolar que contribuem no processo de formação integral do educando. Pretendo não buscar erros ou julgar, sob o prisma de certo ou errado, uma vez que entendo que não existem verdades. Prentendo manter um diálogo sobre as conexões que se estabelecem no cotidiano e que são tão primordiais para a construção de conceitos.