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Os estudos pioneiros de Crossley acerca do punk e pós-punk ingleses

9. Delimitando o indie: a cena e seus problemas

9.5.1 Os estudos pioneiros de Crossley acerca do punk e pós-punk ingleses

Trata-se de uma série de dois trabalhos que busca lançar luz sobre, em primeiro lugar, a rede social que propicia a emergência do punk em Londres e; em segundo lugar, aquela que possibilita o surgimento do pós-punk em Manchester. Tais trabalhos legam, entre outros aportes, o importante destaque à noção de “rede crítica” – interligações cuja densidade é condição necessária para a exuberância da produção musical local – para além daquela de “massa crítica” – que diria respeito somente à quantidade de agentes engajados na atividade. As próprias observações sobre os mecanismos e efeitos das formações de rede na produção local de uma cena são pontos fundamentais nos quais o subsequente trabalho de análise se baseará.

Crossley (2008) utiliza a análise das redes constituídas por atores-chave do movimento punk inglês para expor as propriedades estruturais que explicariam sua emergência. Para o sociólogo inglês, as redes teriam um papel fundamental na formação do movimento:

Sejam quais forem as influencias artísticas e constrangimentos sociais expressos no punk, ele somente decolou como um movimento social reconhecível em virtude do padrão de conexões e interações ligando seus atores-chave.(...) O punk britânico foi o produto de interações dentro de uma rede social concreta. Para entender o movimento nós precisamos entender a rede. (CROSSLEY, 2008, p. 90) 81.

81

No original: “Whatever artistic influences and social strains are expressed in punk, it only took off as a recognizable cultural movement in virtue of the pattern of connections and interactions linking its key actors. (…) UK punk was the product of interactions within a concrete social network. To understand the movement we need to understand the network”.

Crossley em obras de historiadores, biografias e autobiografias de protagonistas-chave do movimento punk, além de vários arquivos online, dados para traçar suas redes. As bandas hoje conhecidas como suas precursoras – Sex Pistols; The Clash; Siouxie and the Banshees;

The Dammed – intercambiaram integrantes em certa medida, além do fato de que estes

integrantes, agentes-chave no que veio a se tornar o movimento punk inglês, se conheciam de outras maneiras.

Crossley traça, então, uma rede cujos 46 vértices são expoentes do punk, estabelecendo o conteúdo das interconexões segundo alguns critérios, como o fato de que estiveram em mesmas bandas por algum tempo; trabalharam juntos; viveram juntos; tiveram relações românticas ou de amizade muito próxima. O sociólogo destaca, em primeiro lugar, o número de agentes dispostos naquela rede: o grande número deles seria uma “massa crítica” sem a qual os altos custos e a necessidade de trabalho no interior de uma cena ou movimento inviabilizariam os mesmos.

Porém, tal “massa” seria condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento do que veio a ser a cena ou movimento punk. Seria preciso que os agentes estivessem, como estavam, interconectados em rede, de modo a gozarem de uma disponibilidade de recursos (idéias, inovações, narrativas) que sejam constantemente trocados entre eles. De acordo com Crossley:

O punk foi criado por meio de interações dentro de uma rede; interações nas quais dinâmicas de estímulo mútuo e respostas intencionais deram origem a inovações, algumas das quais se tornaram convenções subculturais, sendo reforçadas e disseminadas por meio de interações ulteriores na rede. A rede em si não era um recipiente passivo dessa interatividade, todavia. A configuração da rede, suas propriedades e estruturas emergentes, fizeram uma diferença. (CROSSLEY, 2008, p. 102) 82.

Em sua análise propriamente dita, Crossley explora centralmente três chaves para a compreensão das redes: o diâmetro das mesmas, sua densidade e o grau médio de centralidade. O diâmetro é definido como o menor caminho entre os dois agentes mais

distantes em uma rede. Entende-se que quanto menor a distância, menor é o caminho

percorrido pelas inovações e menores as chances de sua distorção pelas sucessivas interações

82

No original: “Punk was created by way of interactions within a network; interactions in which dynamics of mutual stimulation and purposive response gave rise to innovations, some of which became subcultural conventions, being both reinforced and disseminated by way of further interactions in the network. The network itself was not a passive container of this interactivity, however. The configuration of the network, its emergent structure and properties, made a difference”.

através das quais é transmitida. No gráfico trabalhado pelo sociólogo, a maior distância entre dois agentes era de três relações, ou seja, os dois agentes mutuamente mais distantes na rede estavam separados por somente dois outros agentes intermediários, o que faria, em tese, com que as informações viajassem de forma relativamente rápida de uma extremidade à outra da rede.

Com relação à densidade, isto é, à medida segundo a qual todos os agentes estão conectados entre si em uma rede, seu gráfico exibe 246 relações de um possível total de 1035, o que garante uma medida de densidade de 0,237. Já que, em termos gerais, quanto maior o grupo menor a densidade de suas relações, a medida – quase 25% do total dos laços possíveis – é considerável. A medida de densidade seria importante, de acordo com Crossley, pelo fato de que tende a gerar mecanismos eficientes de cooperação, incentivos ao investimento e confiança. Bandas bem relacionadas poderiam subir aos palcos antes mesmo de aprenderem a tocar instrumento ou ensaiarem, por exemplo. Elas o fariam desde que as densas relações em sua rede lhes garantissem a confiança necessária.

Já a medida de grau de centralidade se refere ao número de relações de determinado agente. A média do grau de centralidade implica, quando alta, num elevado potencial de convencimento de uns por outros. A média de 10.8 obtida ao considerar os agentes-chave do punk sugere que cada agente esteja fortemente conectado a 11 outros, em média, na rede.

Complementar ao trabalho sobre o surgimento do punk em Londres, Crossley (2009) desenvolveu outro sobre a emergência do pós-punk em Manchester. As bandas correntemente entendidas como ligadas àquela cena iam de Joy Division à Badly Drawn Boy, passando por

The Fall, The Smiths, Happy Mondays, The Stone Roses, Simply Red e Oasis. Novamente,

aqui, o sociólogo procura demonstrar os processos de formação de redes que constituem a “massa crítica” para os acontecimentos subseqüentes, além de uma “rede crítica” de interconexões pela qual viajam recursos tais como idéias, inovações e narrativas.

No domínio da análise propriamente dita, ele mapeia duas redes empiricamente observadas, uma em 1976, ano em que ocorre a apresentação da banda Sex Pistols em Manchester, constantemente relacionada como “catalisadora” dos desenvolvimentos de bandas e de uma cena na cidade; e outra em 1980, ano do suicídio do vocalista da banda Joy

Division, Ian Curtis, relacionada como ocasião de rearranjos para vários músicos envolvidos

na cena.

Há, verifica-se, um adensamento formidável de laços entre as duas formações. Na rede incipiente de 1976 se verifica que a densidade de relações atinge 0.049, ou seja, de 1953 possíveis relações entre os 63 agentes (músicos, jornalistas, produtores etc), apenas 96 se

realizam de fato, totalizando uma densidade de 0,049. Na rede subseqüente, traçada com base em dados relativos ao ano de 1980, 346 relações das 1953 possíveis se realizam, saltando consideravelmente para 0.177 a densidade da rede.

A abordagem procura atribuir sentido aos mecanismos de formação de redes, responsáveis pela grande variação no adensamento das redes na cena pós-punk de Manchester entre 1976 e 1980. Um destes mecanismos seria denominado “foci” e implicaria que eventos e lugares tendem a reunir agentes no tempo e espaço, favorecendo a formação de redes. Interesses em comum levariam tais agentes aos mesmo lugares ao mesmo tempo, aumentando consideravelmente as chances de que se conheçam. Há, nesse sentido, também os “foci

mediados”, ou seja, veículos de comunicação (revistas especializadas, anúncios em lojas de

disco etc.) que aumentam ainda mais as chances de que os encontros entre agentes ocorram. Há ainda, no que concerne às casas e agentes, mecanismos de reputação que, como tais, garantem a formação de “alvos” mais propensos a interações.

Crossley entende a rede social como uma dimensão entre três, segundo as quais acredita que a produção cultural deva ser analisada. Outras duas seriam os recursos, ou a distribuição dos mesmos – que garantem poder num contexto de assimetria – e as convenções – na forma de técnicas, hábitos ou regras/normas. Tais dimensões estariam, no entanto, interagindo todo o tempo. Redes, recursos e convenções estariam interligados e baseados nas interações que lhes dão sentido. Dessa forma, não seriam estruturas rígidas, mas constantemente cambiantes e processuais. Para o sociólogo inglês, uma teorização nesse sentido é encontrada na conhecida obra de Becker (1982). Porém, este não teria levado suas diversas remissões às redes encontradas em Art Worlds à forma das análises propriamente ditas.

Conforme se afirmou acima, os trabalhos primordiais de Crossley aplicam a análise de redes, construídas segundo documentação histórica, a cenas musicais locais. Ao fazê-lo, demonstra convincentemente o importante papel desempenhado pelos adensamentos de redes – como incentivadores da cooperação e confiança entre agentes –; o diâmetro das mesmas – que, quando relativamente baixos, propiciam a rápida e precisa circulação de informações –; e da média do grau de centralidade – que determina a quantos outros um agente em uma rede está conectado, ensejando, quando alto, maior poder de convencimento de pares.

Gostar-se-ia, portanto, de utilizar tais medidas de análise adiante, aplicando-as ao caso da cena indie belo-horizontina. Guardar-se-ão, evidentemente, as devidas diferenças. As unidades de análise, por exemplo, não serão indivíduos, mas bandas; e os dados recolhidos dizem respeito a eventos objetivos. Porém, espera-se demonstrar minimamente o caráter

articulador presente nos recentes desenvolvimentos da cena, superando em parte, até mesmo, as fortes barreiras impostas pela comercialização compartimentada em gêneros musicais.