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CAPÍTULO 1 – PENSAR O TERRITÓRIO NA AMÉRICA LATINA:

2.1 Estudos preliminares em políticas culturais: o papel da UNESCO

Entre os dias 12 e 22 de dezembro de 1967, a UNESCO organizou uma mesa redonda em Mônaco para discutir o tema das políticas culturais, com o intuito de realizar uma série de estudos sobre esta temática nos países membros. Compareceram ao evento 32 participantes de 22 países, e estas discussões foram publicadas em 1969, sob o título “Cultural policy: a

preliminary study”, texto que inicia uma série de estudos e documentos sobre o assunto,

disponíveis na página oficial da UNESCO.

Além de multinacional, destacamos o caráter transdisciplinar dos participantes latino- americanos, como o pintor chileno Roberto Matta, o filósofo mexicano Silvio Zavala, o novelista cubano Alejo Carpentier e o cientista brasileiro Carlos Chagas (filho). Dos diálogos com outros continentes, registramos, especialmente, a participação de Richard Hoggart, fundador do famoso Centre for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham, Grã Bretanha32. Alguns pesquisadores, como Barbalho (2005), Rubim (2012), Toledo (2015) e Rocha (2016), acreditam que foi nesse encontro onde se construíram as bases conceituais das políticas culturais desenvolvidas ao longo do século XX em todo o continente americano.

Uma primeira aproximação conceitual registrada no documento publicado pela UNESCO foi a seguinte: “a ‘política cultural’ é entendida como um corpo de princípios operacionais, de práticas e procedimentos administrativos e orçamentários que proporcionam as bases de uma ação cultural do Estado” (1969, parágrafo 2, tradução nossa)33. Para os

expertos reunidos neste fórum, não existe um modelo “universal” de política cultural adequado para todos os países; cada Estado membro deverá executar a sua própria política cultural de acordo com os seus valores culturais, suas escolhas e objetivos estabelecidos por

32 Vale a pena destacar que Hoggart posteriormente se tornou assistente do diretor geral da UNESCO, entre 1970

e 1975.

33 “‘cultural policy’ is taken to mean a body of operational principles, administrative and budgetary practices

and procedures which provide a basis for cultural action by the State. Obviously, there cannot be one cultural policy suited to all countries; each Member State determines its own cultural policy according to the cultural values, aims and choices it sets for itself” (UNESCO, 1969, parágrafo 2).

ele mesmo. De forma unânime, os participantes decidiram que não tentariam definir o que é cultura. Segundo foi registrado, entenderam que não cabe à UNESCO definir a política cultural dos Estados. Sendo assim, acordaram:

(a) que ‘política cultural’ deve entender-se como a soma total dos usos

conscientes e deliberados, ações ou falta de ações em uma sociedade,

apontadas a satisfazer certas necessidades culturais através da utilização otimizada de todos os recursos físicos e humanos disponíveis em uma sociedade em um momento determinado; (b) que precisa ser definido algum critério de desenvolvimento cultural, e que cultura deve estar conectada à realização pessoal e ao desenvolvimento social e econômico (UNESCO, 1969, p. 10, tradução e grifo nosso)34.

Neste sentido, os expertos destacam que política cultural não é só um conjunto de ações coordenadas, mas também a falta de medidas, a omissão deliberada de intervenção estatal no mercado e na sociedade. Aparece, ainda, a categoria de necessidades culturais – sempre difícil de avaliar e mensurar de forma objetiva – registrando, assim, demandas insatisfeitas da sociedade que são culturais, que não estariam reduzidas às necessidades econômicas e sociais mais tradicionais e que precisariam ser atendidas com políticas setoriais e específicas. Destacamos, igualmente, a questão de estabelecer parâmetros para definir o desenvolvimento cultural que, por sua vez, é indissociável do desenvolvimento econômico, social e individual em termos gerais. Surpreende a atualidade destes questionamentos e propósitos, ainda hoje válidos e não suficientemente esclarecidos.

Diante disso, questionamos: quais políticas culturais estatais são destacadas neste documento histórico da UNESCO? E quantos países latino-americanos são apontados nesse momento, finais dos anos 1960? Os estudiosos registram experiências em políticas culturais de todos os continentes: URSS, Estados Unidos, Polônia, Itália, Guiné, França, Egito

34 “The participants to the round-table meeting on cultural policies decided unanimously against embarking on

an attempt to define culture; the representative of the Director-General had made a point of recalling that it was not the role of Unesco to define the cultural policy of States. It was considered preferable: (a) that ‘cultural policy’ should be taken to mean the sum total of the conscious and deliberate usages, action or lack of action in a society, aimed at meeting certain cultural needs through the optimum utilization of all the physical and human resources available to that society at a given time; (b) that certain criteria for cultural development should be defined, and that culture should be linked to the fulfilment of personality and to economic and social development” (UNESCO, 1969, p. 10).

(República Árabe Unida até 1971), Checoslováquia, Iugoslávia, Japão, Suécia, Canadá, entre outros. Ainda assim, não são apresentadas muitas medidas culturais do nosso continente. Ações da Colômbia, Equador, México e Brasil são apenas sinalizadas de forma esporádica, sem entrar em detalhes. Contudo, o conjunto de intervenções que são destacadas em vários momentos deste estudo preliminar são as políticas culturais da Revolução Cubana, cujo governo estava vigente desde 1959. Não é por acaso que um dos capítulos iniciais desta série de estudos da UNESCO, o primeiro publicado em espanhol, seja precisamente sobre Cuba. Interessa-nos ressaltar nesta publicação a primeira definição sobre a qual temos notícia em língua espanhola, o que nos permite analisar com maior detalhe um país latino-americano paradigmático sobre este assunto.

2.1.1 O estudo das políticas culturais em Cuba

Lisandro Otero – novelista, jornalista e diplomático cubano – foi o encarregado de registrar uma das primeiras análises realizadas na América Latina sobre políticas culturais. Otero era, naquele momento, vice-presidente do Conselho Nacional de Cultura de Cuba, organismo criado em 1961. Este estudo pioneiro, solicitado pela UNESCO, foi realizado pelo Conselho de Cultura deste país caribenho, com a assistência de Francisco Martínez Hinojosa, escritor e consultor cubano especializado em direitos autorais.

Essa coleção da UNESCO tinha como finalidade mostrar os processos de planejamento e execução de políticas culturais nos distintos Estados Membros, segundo é informado no prefácio desta publicação. Cada um deles tinha diferentes culturas e diversas formas de enfocar e gerir a sua política cultural e seus métodos de ação, “con arreglo a su propia concepción de la cultura, su sistema socioeconómico, su ideología política y su desarrollo tecnológico” (1971, parágrafo 2). Porém, os autores reconhecem alguns problemas comuns que as políticas culturais enfrentam: “son éstos, en general, de tipo institucional, administrativo y económico; de ahí que se insista cada vez más en la necesidad del intercambio de resultados de experiencias e informaciones al respecto” (1971, parágrafo 2).

Neste sentido, a coleção analisa, principalmente, os aspectos técnicos das políticas culturais, buscando um modelo uniforme a nível internacional que possa facilitar as comparações. Quais seriam, então, estes aspectos técnicos das políticas culturais?

Por lo general, los estudios versan sobre los principios y los métodos de acción de las políticas culturales, la evaluación de las necesidades culturales, las estructuras y la gestión administrativas, el planeamiento y el financiamiento, la organización de los recursos, la legislación, los presupuestos, las instituciones públicas y privadas, el contenido cultural de la educación, la autonomía y la descentralización cultural, la formación del personal, las infraestructuras institucionales destinadas a satisfacer las necesidades culturales, la conservación del patrimonio cultural, las instituciones de divulgación de las artes, la cooperación cultural internacional y otras cuestiones afines (1971, parágrafo 2).

Observamos que esta aproximação conceitual da UNESCO é mais descritiva, analítica e operativa do que as anteriores. Os autores registram a importância do planejamento em cultura e a possibilidade de uma legislação específica, assuntos que ainda são desafiadores na maior parte dos países da região. A cooperação internacional e o conteúdo cultural em educação são, também, componentes registrados nesta definição. Incluem-se questões de autonomia e descentralização cultural, ou seja, do que hoje poderia ser entendido como protagonismo local e territorialização da cultura35, somados à necessidade de formação e

capacitação de pessoal a nível artístico e administrativo. Destacam, ainda, a importância da avaliação das necessidades culturais e a consequente elaboração de indicadores e sistemas de acompanhamento público. Desta forma, obtemos um quadro complexo, atual e desafiador sobre o estudo das políticas culturais estatais registrado há mais de 40 anos no nosso próprio continente.

35 Embora não sejam sinônimos, descentralização e territorialização aparecem como fenômenos sociais

indissociáveis. De qualquer forma, conforme defenderemos ao longo deste capítulo, os processos de internacionalização e integração regional também são formas de territorialização da cultura.

2.2 Anarquismo, socialismo e culturas populares em Martin Cezar Feijó e Néstor García