O OP tem sido a experiência de participação local mais discutida no Brasil,
atraindo, sobretudo estudiosos interessados em aprofundar suas análises sobre a
democracia. O debate em torno desta temática, segundo Avritzer (2003: 14), se expressa
por intermédio de dois questionamentos básicos: 1) até que ponto estaria o OP
indissoluvelmente ligado à singularidade da sua experiência inicial em Porto Alegre ? 2) até
que ponto pode representar uma forma de aprofundamento da democracia no Brasil e ser
estendido a outras cidades e regiões do país?
Diversos cientistas sociais nos vários lugares em que o OP funciona têm se
debruçado sobre os vários aspectos envolvidos na construção desse novo instrumento de
gestão social. De acordo com Avritzer (Idem: 16), a análise do OP tem se centrado tanto
nos problemas práticos quanto em um conjunto de questões no interior de diferentes
debates teóricos, entre os quais cabe mencionar os debates: a) sobre a relação sociedade
civil e democracia; b) sobre o aprofundamento da democracia e c) sobre o desenho institucional.
No que concerne ao campo de discussão relativo à relação Estado -
sociedade um trabalho a citar é o estudo de Baierle (2000) sobre o OP de Porto Alegre que
autor acentua a relevância das práticas associativas preexistentes como geradoras das
condições para o surgimento do OP, na medida que essas práticas possibilitaram o
rompimento com a relação tradicional entre as associações de bairro e o Estado. Segundo o
autor, essa mudança de relação teria levado ao estabelecimento de uma nova concepção de
cidadania, possibilitando assim a elaboração de propostas alternativas de políticas públicas
e a inclusão de novos temas na agenda pública.
Nessa mesma linha, o estudo de Avritzer (2002) demonstrou a importância
da estrutura de negociação política das práticas associativas pré-existentes, como
assembléias, para a configuração do desenho institucional participativo.
Além disso, em seus estudos, o autor ressalta a importância de variáveis
como tamanho, densidade associativa, contexto populacional, urbano ou rural, vontade
política, desenho específico do OP e sua capacidade financeira de realizar políticas distributivas, as quais seriam significativas para a análise das diferentes experiências de
orçamentos participativos em lugares diversos porque destacam o contexto social como
uma dimensão a ser considerada.
Ainda, sobre esse aspecto a pesquisa de Silva (2001) mostra que na
dinâmica de participação do OP predomina a ação de um conjunto de lideranças que
possuem como principal campo de identificação e atuação uma rede associativa de base
comunitária.
O Estudo de Nylen (2002) mostra que o OP desenvolve o ativismo tanto
entre os cidadãos comuns (não elite) quanto entre os que já foram ativistas no passado.
Em síntese, a partir desses trabalhos pode-se entender que o espaço desse
debate sobre a relação entre Estado e sociedade civil ressalta os seguintes elementos: a
participativas; a capacidade do Estado na indução de formas de associativismo e práticas
deliberativas similares àquelas existentes na sociedade civil; a capacidade das formas
participativas na distribuição de recursos de maneira generalizante, de modo a evitar que as
associações existentes se transformem em canais corporativos de acesso a recursos.
Entretanto, é importante desde logo ressaltar que no estudo que aqui iremos
propor defendemos a idéia de que além das condições sociais sublinhadas pelos autores
(fatores sociológicos), seria importante considerar a dimensão psicossociológica, isto é, os
aspectos subjetivos expressados pelos sujeitos inseridos no contexto do OP que estariam
ligados de certa forma a essas participações anteriores. O que nos permitiria compreender,
em termos da construção de conhecimento ou saberes ligados a essa prática (representações
sociais), em que medida esse processo reproduziria ou atualizaria aspectos da cultura
política tradicional e hegemônica.
No que concerne aos estudos interessados no debate sobre o aprofundamento
da democracia, pode-se citar os trabalhos de Navarro (1998); Santos (2002); Abers (2000),
entre outros. Esses estudos conduziram a diversas análises sobre a democracia bem como a
várias formas de compreensão sobre OP.
O estudo de Navarro, por exemplo, desenvolve uma concepção de OP que
ressalta seu caráter de política afirmativa, na medida que compreende que esse modelo de
gestão constitui-se como uma prática que incentiva os “grupos marginalizados adquirirem
as mesmas capacidades e direitos que aqueles localizados no topo da estrutura social”
(Navarro,1998: 6).
Para Boaventura de Sousa Santos - um dos principais expoentes do debate
urbana orientada para a redistribuição dos recursos da cidade a favor dos grupos sociais
mais vulneráveis, usando os meios da democracia participativa” (2002: 457-458).
Em seu trabalho, Santos (op.cit) analisa o processo do Orçamento
Participativo nos seguintes aspectos: eficácia redistributiva; responsabilidade e qualidade
da participação em uma democracia participativa; autonomia do OP face ao governo
executivo da cidade, trajeto que vai da tecnoburocracia à tecnodemocracia; poder dual e
legitimidade em competição: as relações entre o OP e o órgão legislativo que possui a
prerrogativa, formal e legal, da aprovação do orçamento.
Quanto à questão da redistribuição dos recursos, o autor (Idem: 512) afirma
que:
O OP é um processo de tomada de decisão baseado em regras gerais e em critérios de justiça distributiva, discutidos e aprovados por orgãos institucionais regulares de participação, nos quais as classes populares têm representação majoritária. As comunidades onde elas vivem e se organizam são reconhecidas como tendo direitos coletivos urbanos que legitimam as suas reivindicações e exigências, e também a sua participação nas decisões tomadas para lhes responder.
E ainda que, em geral, hoje se reconhece que “o OP transformou a cultura
política das organizações comunitárias, que passou de uma cultura do protesto e da
confrontação para uma cultura política do conflito e da negociação” (Idem: 513).
Quanto à linha de estudos que focaliza o desenho institucional, a
preocupação central é avaliar a capacidade de influência dessas estruturas nas atitudes dos
atores sociais.
Um dos trabalhos a citar é o de Fung e Wright (2002) em seu estudo
Neste estudo os autores denominam o tipo de desenho institucional em que consiste o OP
como um modelo de governança participativa que transfere poder para as bases. E, na
caracterização que fazem do desenho institucional do OP e dos outros desenhos com os
quais é comparado, estes autores afirmam que:
Eles são participativos na forma como incorporam o compromisso e a capacidade das pessoas comuns; deliberativos porque instituem um processo racional de tomada de decisão e são uma forma de aumento do poder das bases na forma como eles ligam ação e discussão. (p.5)
Avritzer (2003: 569) defende - através de seu estudo sobre o Orçamento
Participativo de Porto Alegre - que “no caso do Brasil a maior parte das formas de ação
coletiva é de natureza democrática e tem sido capaz de produzir novos desenhos
institucionais democráticos que incorporam novas práticas culturais na esfera da política
democrática”. Aqui mais uma vez defendemos a idéia de que ao se tratar de cultura,
especialmente de cultura política, faz-se necessário estender o foco de análise do objeto a
fim de tentar abranger não apenas os aspetos administrativos, econômicos e sociológicos,
materiais envolvidos na dinâmica das instituições ou grupos sociais, mas incluir a dimensão
simbólica remetendo à dimensão da subjetividade, ou seja, os sujeitos e as identidades que
se constituiriam em tais processos.
Com efeito, Avritzer (2002:19) ressalta em seus estudos a capacidade do
Orçamento Participativo em “transferir dos mediadores políticos para a população a decisão
sobre distribuição de bens através da criação de um conjunto de elementos públicos:
perguntar que normas e valores democráticos se expressariam nas representações dos
sujeitos que se envolvem nessa prática política.
Ainda nessa linha de preocupação com o desenho do OP, em termos
sociológicos Luchmann (2002:143) destaca elementos institucionais como regras, critérios
de participação, espaços, normas e leis como importantes para o sucesso do OP. Nesse
sentido, nos interessamos em termos psicossociológicos pela expressão das regras, critérios
e normas articuladas nos discursos dos sujeitos que configuram o campo simbólico-
ideológico das representações e identidades sociais elaboradas no contexto do OP.
Também, no que diz respeito à dinâmica participativa desse desenho, de
acordo com Marquetti (2003:129), os estudiosos têm chamado atenção para o que seriam as
suas características fundamentais como democracia, equidade, solidariedade e eficiência,
as quais teriam melhorado a qualidade de vida da população de baixa renda devido ao seu
efeito redistributivo. Desse modo, o OP teria estendido o processo democrático para os
setores organizados da população pobre da cidade, melhorando as condições de vida desta
população. Devemos, assim, esperar que no discurso dos sujeitos esses aspectos se
apresentem como valores principais na realização das práticas do OP.
Considerando outros aspectos de análise como relevantes este autor então
propôs a seguinte questão em termos econômicos: “o OP possui de fato um efeito
redistributivo no que tange aos investimentos e obras realizados e na expansão da oferta de
bens e serviços públicos”? Em seus estudos concluiu que o OP de fato “funcionou como
um poderoso instrumento de distribuição de renda” e que “as regiões mais pobres
receberam maior volume de investimentos por habitante” (Idem: 130). Aqui podemos
acrescentar a relevância de observar além dos bens materiais os bens simbólicos, já
Um outro aspecto é sublinhado por Fedozzi (2000: 38), no que concerne às
potencialidades do desenho democrático do OP. Para este autor é importante notar que:
O OP vem suscitando discussões de caráter teórico e prático que podem contribuir – à luz da reflexão sobre as potencialidades e limites próprios dessas experiências que se ampliam no Brasil – para a construção de novas relações entre o Estado e a sociedade de cunho democratizante, novos patamares de equidade social e política e “novos saberes de caráter emancipatório” (grifo nosso).
No seu estudo realizado no OP de Porto Alegre, o autor (Idem: 68)
demonstra que a dinâmica instaurada nesse processo sócio-político tende a propiciar a
criação das condições institucionais favoráveis à promoção da cidadania, na medida que
“essa inovação na forma de gerir os recursos municipais, vem proporcionando, por um
lado, um processo de inversão de prioridades dos investimentos públicos”.
Por outra parte, o autor ressalta o processo de racionalização empreendido
por esse método que segundo ele, “ao primar por regras universais e previsíveis de
participação e por critérios objetivos e impessoais para a seleção das prioridades apontadas
pelas comunidades”, estabeleceria uma dinâmica de acesso aos recursos públicos contrária
ao particularismo da “justiça casuística”, ou seja, “da prática da distribuição de favores sem
atenção às normas universais necessárias à cidadania”, prática tradicional que caracterizaria
a gestão pública brasileira (Idem: 68-69). O que, como sabemos, é amplamente divulgado
pela literatura especializada.
Posto isto, considerações sobre o OP devem ser mencionadas à medida que
Em suas análises Fedozzi (op. cit) sustenta que “a dinâmica do OP engendra
a constituição de uma esfera pública democrática que parece favorecer o exercício do
controle social sobre os governantes” (no sentido de accountability3 a que se refere O’
Donnel, 1991: 93). E que esse processo pode ser definido como:
A instituição de uma esfera pública ativa de co-gestão do fundo público que se expressa através de um sistema de partilha do poder, onde as regras de participação e as regras de distribuição dos recursos de investimentos são construídas de forma procedimental e argumentativa, na interação institucional que se processa entre os agentes do Executivo e as comunidades da sociedade civil (Fedozzi, 1997: 93 apud Fedozzi, 2000: 69).
Para Avritzer (2003:14) o OP se constitui da seguinte forma:
Uma forma de rebalancear a articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa baseada em quatro elementos: a primeira característica do OP é acessão da soberania por aqueles que a detêm como resultado de um processo representativo local. A soberania é cedida a um conjunto de assembléias regionais e temáticas que operam a partir de critérios de universalidade participativa. Todos os cidadãos são tornados, automaticamente, membros das assembléias regionais e temáticas com igual poder de deliberação; em segundo lugar, o OP implica a reintrodução de elementos de participação local, tais como as assembléias
3 Este termo refere-se à noção de transparência, isto é, à prestação de contas ou controle entre governantes e governados.
regionais, e de elementos de delegação, tais como os conselhos a nível municipal, representando, portanto, uma combinação dos métodos da tradição de democracia participativa; em terceiro lugar, o OP baseia-se no princípio da auto-regulação soberana, ou seja, a participação envolve um conjunto de regras que são definidas pelos próprios participantes (Santos e Avritzer, 2002);em quarto lugar, o OP se caracteriza por uma tentativa de reversão das prioridades de distribuição de recursos públicos a nível local através de uma fórmula técnica (que varia de cidade para cidade) de determinação de prioridades orçamentárias que privilegia os setores mais carentes da população.
Uma outra idéia sobre OP é a de Wampler (2003: 63-64) para quem o OP
significa: “(a) uma força inicial de transformação, (b) uma instituição democrática e (c)
uma instituição de elaboração de políticas públicas”. E, ainda, “uma esfera pública que
possibilita a deliberação, a negociação e o monitoramento”.
De acordo com o autor (op. cit) o termo transformação social aqui remete à
idéia de que “o OP é parte de uma trajetória histórica de mudança social e política mais
ampla, com potencial para educar, transferir poder e socializar os participantes”. Nessa
perspectiva este autor conceitua esse projeto de gestão como:
uma escola onde os cidadãos adquirem uma compreensão sobre o que os governos fazem, sobre o que não podem fazer e sobre como eles, cidadãos podem apresentar seus interesses e demandas para os representantes públicos (Idem:64).
Ainda, com relação à sua concepção de OP o autor afirma que o termo
democracia faz referência à possibilidade de ampliação da democracia representativa. O
que remete à configuração da esfera deliberativa de participação como meio de estabelecer
uma disputa entre diferentes atores políticos, com interesses diversos que devem aí
negociar. Sendo visto também como uma instituição de elaboração de políticas públicas,
na medida que “modifica as práticas anteriores de planejamento e elaboração orçamentária
no Brasil (Ibidem).
A esfera pública assim, constitui-se como um elemento importante no
debate sobre democracia política atualmente, sendo discutida notadamente no que diz
respeito a aspectos de sua estruturação.