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Sem tratar explicitamente do conceito de ethos, Cook (2001, p. 180-183) expõe algumas ideias em relação à projeção de identidades na publicidade. O autor constrói um esquema que divide o processo de consumo da publicidade em quatro ―mundos‖: dois reais, um onde os produtos são manufaturados e distribuídos, e outro onde o consumidor pode comprar de fato o produto; e dois virtuais, um da ficção, que é o mundo da publicidade em si, e um da fantasia, no qual o consumidor cria, assimila, significa o discurso da publicidade. É

sobre esses mundos virtuais de Cook que dissertarei abaixo, pois neles constroem-se (e destroem-se) identidades e também atuam os ethe. A publicidade tem por objetivo atingir um ―contato suficiente entre a realidade e a ficção, enviando e recebendo, personagens e consumidor, fantasia e fatos.‖ (COOK, 2001, p. 181).

Há intersecção entre os mundos reais e os ‗irreais‘ – da ficção e da fantasia – e o olhar de um personagem. Nesse sentido, Cook adverte que ―os anúncios são como peças teatrais com apartes direcionados ao público, ou romances nos quais um narrador em primeira pessoa interpela o leitor.‖ (COOK, 2001, p. 181). Na mesma toada, o autor propõe que a ―identidade do ‗eu‘ ou ‗nós‘ que fala ao ‗você‘ não é clara.‖ (p. 181, grifos do autor). Essa não clareza abre espaço para ora uma relação maior com o mundo ficcional, ora com o mundo real (o mundo da compra), ora com algum outro lugar.

Segundo Cook, nós consumidores somos distraídos pelo que ele chama de elipse de identidade. E é nessas elipses de identidade que outras identidades podem ser discursivizadas numa perspectiva ética (de ethos). Exemplificando: o nós dos textos publicitários é alguém ou uma entidade, normalmente nomeada, que, ao analisarmos, podemos metatextualmente dizer de quem se trata (ou ainda se pensarmos na própria criação publicitária tratar-se do publicitário, do redator, etc.). Contudo, na enunciação publicitária o

nós é abstrato, um alguém de algum lugar que nos fala, frequentemente com tom solene, ou de

acolhimento, ou de grande ciência. O você, frequente em anúncios comerciais da atualidade, também pode referir-se empiricamente ao consumidor que sairá de seu sofá para comprar o produto no mercado, ou no mundo ficcional qualquer um que venha a receber e interpretar este texto promocional. Milhões de pessoas escutarão/lerão o texto, mas o você está no singular. Fairclough (1989) propõe, para esse tipo de construção textual, a expressão ―personalização sintética.‖ Porém, isso não é simplesmente uma análise textual e pragmática. A abertura de sentido e de identidade que se constrói por meio desse recurso estilístico-textual traz a possibilidade de um alinhamento do ethos do você receptor com o ethos que se constrói textualmente, e que pode ser o mesmo nós do(a) emissor/vendedor/empresa.

Trago um exemplo de excerto do corpus: ―[nós] Combinamos um ambiente descontraído e confortável a um cardápio gostoso e exclusivo, para você saborear nossos pratos sem pressa, sentindo-se à vontade para ficar. Experimente [você] cada momento.‖ (Cardápio do restaurante Kharina, p. 1. Inserções e grifos meus).

A persuasão, característica da publicidade, deve ser problematizada quando se leva em conta a noção de ethos discursivo. Ao discutirmos ethos e publicidade numa perspectiva discursiva de estudos da comunicação e da linguagem, admitimos que algumas

características da própria noção de discurso podem ser relacionadas com a de ethos. Logo, é necessário certo afastamento de ideias como ‗estratégia‘ e ‗procedimento‘. Maingueneau, como exposto anteriormente, afirma que a persuasão relacionada ao ethos é mais uma ―adesão do destinatário‖ que acontece por ―um escoramento recíproco entre a cena de enunciação, da qual o ethos participa, e o conteúdo nela desdobrado.‖ (MAINGUENEAU, 2015b, p. 29). Ou seja, não se exclui a presença dos argumentos lógicos, da memória de arquivo que está à disposição e ‗é colocada à disposição‘ daqueles que vão consumir determinados textos publicitários. Sobre esse relativo controle e sobre a presença do ethos nas enunciações, Maingueneau assim comenta: ―o destinatário é necessariamente levado a construir uma representação do locutor, que este último tenta controlar, mais ou menos conscientemente e de maneira bastante variável, segundo os gêneros de discurso.‖ (MAINGUENEAU, 2010, p. 79). No caso dos gêneros publicitários, toda uma maquinaria textualizante é colocada em cena, desde recursos não verbais diversos como cores, imagens, texturas quando anúncios impressos, aromas quando em interações pessoais ao vivo, até a relação intertextual arquitetada e mobilizada a fim de persuadir.

Todo esse movimento que a publicidade conduz, ao passo que se vale de mundos éticos diversos, de estereótipos e de pré-discursos, corrobora a construção e reconstrução das ―imagens de si‖ que ora são uma apresentação da empresa que promove um produto, ora se confundem com a própria imagem e representação identitária que o consumidor faz de si próprio.

Neste capítulo, foi possível apresentar ao leitor algumas nuances da complexa noção de ethos: sua gênese com os postulados propedêuticos de Aristóteles, o ethos discursivo dentro dos Estudos do Discurso, a relação do ethos discursivo com as tipologias da Cena da Enunciação de Maingueneau e, por fim, a presença do ethos na publicidade. No próximo capítulo vou expor os passos e fundamentos metodológicos desta pesquisa.

6 METODOLOGIA

―A gente fica mais velho e mais europeu.‖ Luis Fernando Veríssimo

Os textos analisados neste trabalho são materialidades verbais e não verbais ancoradas no campo da publicidade e se relacionam a diferentes áreas: educação, gastronomia, tecnologia etc., mas que têm em comum o objetivo de promover um produto, uma imagem profissional ou instituição. Portanto, categorizo-os como gêneros publicitários, apesar de alguns deles não pertencerem canonicamente à publicidade (como é o caso de um cardápio de restaurante), pois ao promoverem determinada marca podem ser classificados como tal.

O tema do método em Análise do Discurso é sempre controverso, pois a própria natureza epistemológica do campo, que questiona a constituição programática e predeterminada das ciências, nos leva a constituir parâmetros para uma pesquisa não em terreno firme, mas em areia movediça.

Sobre o trabalho de análise, Foucault (2002, p. 18) afirma que ―toda a tarefa crítica, interrogando as instâncias de controlo [sic], deve ao mesmo tempo analisar as regularidades discursivas por intermédio das quais aquelas se formam.‖ Para tanto, concordando com a preconização de Foucault, penso ser um caminho, para o analista do discurso, perceber, registrar e discutir determinadas ―regularidades discursivas‖ presentes no cotidiano e em determinado campo específico. Exemplificando, no caso desta tese, seria: a partir da percepção da presença acentuada de materialidades (e do próprio termo) retrô,

vintage etc., registrá-los e promover uma discussão acerca dessas regularidades, com base em

noções conceituais previamente apresentadas, a fim de analisar as implicações discursivas advindas dessas regularidades.

Para Orlandi (2005, p. 63), a própria decisão do que faz parte do corpus já é ―decidir acerca de propriedades discursivas‖. Outra consideração importante para o analista de discurso é que a análise não visa à demonstração de determinados textos e discursos, mas ―mostrar como um discurso funciona produzindo (efeitos de) sentidos.‖ (ORLANDI, 2005, p. 63). Os recortes que demonstram repetições são de especial interesse para o analista de discurso. A recorrência de expressões verbais (como é o caso do verbete gourmet analisado mais à frente), ou de traços pictóricos semelhantes e presentes em textos diversos (como as imagens com traços retrô), são caminhos que o analista poderá percorrer.

Os sujeitos envolvidos e os contextos de produção dos textos são levados em consideração – tanto o contexto imediato, que são as circunstâncias das enunciações, como o contexto histórico, que são as condições de produção em um sentido mais amplo (ORLANDI, 2005). Ainda para a autora, a metodologia de um trabalho inscrito em Análise do Discurso já inicia na escolha do corpus de análise, na criação de parâmetros, na opção por este ou aquele excerto, na identificação de determinado discurso e no estabelecimento de etapas de análise.

Aracy Ernst-Pereira e Regina Mutti afirmam que uma análise coerente com o campo da Análise do Discurso deve mostrar a ―relação entre as marcas linguísticas, indicadas no intradiscurso pelo analista, e os sentidos interdiscursivos que são imateriais, da ordem da memória.‖ (ERNST-PEREIRA; MUTTI, 2011, p. 819). Apesar da heterogeneidade do campo, das possibilidades de abertura dentro da própria teoria ou da intersecção com outros saberes (a maioria das abordagens de estudos discursivos é interdisciplinar), apesar do terreno arenoso em que se pisa, são necessários alguns balizamentos, algumas estacas nesse terreno para que, de alguma forma, uma análise possa ser feita.

Para tanto, congrego alguns conhecimentos de outras áreas na busca de confluências, consonâncias e até mesmo dissonâncias que possam colaborar na investigação dos fenômenos linguísticos relacionados à persuasão-nostálgica. Certas categorias de outros autores, algumas tipologias e noções já conhecidas, e até mesmo a proposição de uma tipologia, são utilizadas na análise.

Nesse sentido, em termos de etapas, a pesquisa procede da seguinte forma: após serem recolhidas diversas materialidades textuais publicitárias (excertos, peças, slogans, imagens, websites etc.), é feita a análise à luz do referencial teórico, sobretudo as noções de

ethos discursivo, cena da enunciação e memória. A tipologia proposta na seção 6.2 também

faz parte da etapa de descrição e compreensão dos textos no capítulo 7.

Como em Análise do Discurso não há ‗sentidos literais‘, a direção do trabalho do analista de discurso remete à compreensão dos jogos simbólicos que surgem na relação entre os sujeitos, os objetos e a história. (ORLANDI, 2005).