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2. CAMINHOS PERCORRIDOS

2.5 O estranhamento, as anotações de campo, o olhar de dentro, enfim: a etnografia

2.5.1 Etnografando no Semiárido Nordestino

Malinowski (1986, p. 26) afirma que o leitor precisa ser informado sobre as condições nas quais as observações foram feitas e as informações foram coletadas, afim de que, ao ler o trabalho, seja possível identificar “o grau de familiaridade do autor com os fatos que descreve e formar uma ideia a respeito das condições sob as quais as informações foram obtidas dos nativos”. O autor coloca essa preocupação com o intuito de que o leitor possa acompanhar o desenvolvimento do trabalho e não pareça que o pesquisador construiu suas conclusões a partir do nada. Para tentar trazer mais elementos para estas análises, utilizei, além das entrevistas, as observações de campo.

A primeira dificuldade foi com os sotaques e os regionalismos, tanto o meu quanto o dela. Eu não compreendia tudo o que ela falava e quando eu perguntava o que ela tinha dito, percebendo que eu não estava entendendo o sentido da fala dela, a dona Naná ria. Algumas palavras eram incompreensíveis, como “gurita”, “burreguim”, “bugrelo”. No início do trabalho de campo, eu tentava traduzir as palavras que ela utilizava, quando ia fazer as minhas anotações de campo. Com o tempo, percebi que esta “tradução” reduzia em muito a significação daquelas palavras em um contexto mais amplo que é o cultural, que representa o “lugar” de onde ela vem e de onde esses discursos são produzidos. Então, passei a anotar as palavras tal qual ela dizia. Continuo não sabendo o significado de muitas palavras, mas o sentido, esse sim eu aprendi a entender e respeitar.

No final do dia, ela me acompanhou até a vila [agrovila] em que o motorista viria me encontrar. Durante a nossa caminhada, ela levava uma bicicleta, que eu me ofereci para empurrar. Então ela foi me contando que tinha uma casa nessa vila e que dormia lá, passava o dia no lote e a noite voltava para casa. Durante o pequeno trajeto [uns 500 metros], percebi, pela primeira vez, que o estranhamento era recíproco, como nesse registro do diário de campo [29 de maio de 2012]:

Enquanto caminhávamos pela estrada que leva até a vila, vi vários cactos e falei: - “Nossa dona Naná, lá em Minas [Gerais] a gente não vê cacto assim não”. Aí ela perguntou:

- “o que é cacto?” Eu apontei e ela disse:

- “Ah... Mandacaru! Tem xique-xique também, é aquele menorzinho [apontando para um cacto de uns 40-50 centímetros de altura]”

Nesse mesmo trajeto, vi uma plantação de outro tipo de cactácea ou suculenta, não sei bem o que era, aí perguntei para ela o que era. Ela disse:

- “lá em Minas [Gerais] vocês não plantam palma?”

Eu disse que palma em Minas [Gerais] era o nome de uma flor. Então ela disse: - “A gente planta palma para dar pro gado. Lá vocês não dão palma para o gado? O que o gado de vocês come?”

Eu respondi:

- “o gado lá come capim.”

Maravilhada e sem acreditar, ela disse:

- “Mas só come capim? Aquele capim verdim? Lá é tudo verde, como a gente vê na televisão?”

Quando eu disse que sim, ela repetiu: - “Mas é tudo verdim mesmo?”

E ficou admirada com a minha confirmação.

O estranhamento da minha parte começava desde a cor do céu, a falta de sombra e a claridade do sol, tal qual Fabiano e Sinhá Vitória em Vidas Secas, como no trecho a seguir:

Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente (RAMOS, 1980, p. 5).

A minha sensação, era exatamente essa: o céu era pintado de um azul que eu jamais havia contemplado. Mas esse mesmo céu que encantava despertava em mim desespero. Não havia sombra ou árvores. Era um imenso céu azul e um sol que brilhava muito e era muito mais ardente. Esse foi o primeiro e mais recorrente estranhamento em campo. E mesmo os nativos, não se acostumavam com o calor e claridade, tal qual Fabiano.

Além desses estranhamentos, muitos outros estavam por acontecer. No dia da colheita, quando cheguei ao lote, a porteira estava aberta, entrei. Mas a casinha simples, estava fechada. Chamei pela dona Naná, mas não tive resposta. Comecei a andar em direção às uvas e encontrei com um homem, aparentando uns 30 anos, ele me olhou desconfiado. Perguntei se ele sabia onde a dona Naná estava e ele disse que ela estava no meio das uvas, que eu podia ir lá e procurá-la. Então, fui em direção ao parreiral, vi várias pessoas colhendo uvas, até que a avistei um pouco mais a frente. Fui até ela. E quando ela me viu, já gritou ordenando que eu pegasse um “tamborete” [banco] para que eu me assentasse para observar o trabalho de colheita. Resisti em buscar o banquinho e pedi autorização para a dona Naná, para filmar a colheita. Ela ficou um pouco resistente, mas depois pediu que eu filmasse primeiro as mulheres que estavam trabalhando. Notei que ela estava com um chapéu bem bonito, diferente daquele que ela estava no dia anterior. Enquanto eu filmava as trabalhadoras, perguntei se poderia filmá-la também. Ela ajeitou o cabelo. Arrumou o chapéu, mostrando uma flor [detalhe do chapéu] para a câmera e disse que podia filmar.

Filmei um pouco da movimentação delas e percebi que na colheita só trabalhavam mulheres. Perguntei o porquê. Ela disse que colheita era “trabalho de mulher” e não disse mais nada. Mais adiante, retomarei essa observação. Depois que terminei minha filmagem, me ofereci para ajudá-la na colheita: “A senhora não quer me ensinar o que vocês estão fazendo para que eu possa te ajudar?” [anotações de campo, 29 de maio de 2012]. Ela resistiu: “Você, com essas mão fina e delicada não dá conta do trabalho da roça não.” [anotações de campo, 29 de maio de 2012]. Eu insisti: “mas se a senhora me ensinar, pode ser que eu consiga... Posso tentar? Se a senhora achar que não está bom, eu prometo que paro.” [anotações de campo, 29 de maio de 2012].

Então, ela mandou que eu pegasse a tesoura de colher. Mas onde estava essa tesoura? Ela não falou e quando perguntei, ela não respondeu. Percebi que ela estava me testando e para que eu pudesse continuar esse teste, eu precisava surpreendê-la. Percebi que as mulheres descansavam as tesouras nos arames que sustentavam as parreiras. Então, passei a procurar pela tesoura nos arames e logo encontrei uma. Voltei toda entusiasmada para a minha primeira aula de colheita de uvas. Ela demonstrou surpresa quando apareci com a tesoura, mas não comentou nada. E começou a me ensinar. “Ela, meio desconfiada, me deixou colher as uvas, mas ficou me observando de perto” [anotações de campo, 29 de maio de 2012].

O fato de eu ter me oferecido para ajudá-la estabeleceu entre nós uma aproximação e uma melhor aceitação da minha presença por parte dela. Como as outras mulheres que estavam colhendo estavam em duplas e ela estava sozinha, me inseri no grupo como dupla dela. E, entre um cacho de uva colhido e outro, ela me contava histórias da vida dela e queria saber quem era aquela “menina branquinha que vinha lá de Minas”, como ela mesma se referia a mim nos primeiros dias ou quando ia me apresentar para as pessoas que viviam no Projeto. Ao me dispor a ajudá-la, percebi que construímos uma relação de reciprocidade. Como afirma Mauss (2003), é fundamental que o etnógrafo [pesquisador] construa com seus sujeitos de pesquisa esta reciprocidade, pois no campo o exercício mais praticado é o de dar e receber.

A partir daí, comecei a me levantar e me preparar todas as manhãs para ter um dia mais ou menos parecido com o da dona Naná. E comecei a me interessar pelas notícias corriqueiras do Projeto Bebedouro, suas festividades, como a festa do Dia do Colono e as rodas de São Gonçalo. E assim como os moradores do projeto, também me preparava para estas festividades locais e comparecia, sempre que era possível. Como o Projeto fica há 50 quilômetros de distância da cidade de Petrolina, eu me estabeleci na cidade e ia para o projeto

todas as manhãs e voltava para casa no final da tarde, quando se encerravam as atividades no lote da dona Naná. Quando eu retornava para o Bebedouro na manhã seguinte, normalmente encontrava a dona Naná começando suas atividades. Em duas ocasiões eu cheguei ao lote e ela ainda estava em casa, terminando os afazeres do lar. Nessas, me dispus a ajudá-la e esses também eram momentos de coleta de importantes dados sobre a vida social. Durante a minha permanência em campo, pude observar detalhes tanto do trabalho, quanto detalhes íntimos da vida familiar.

Nestes quase nove meses de observações, vi e senti um sol que castigava, uma seca implacável, um céu azul que fascinava, mas que também trazia desespero, vi pessoas se deslocando por longos trajetos em busca de trabalho, em busca de ração [capim, casca de feijão, que eles chamam de palha do feijão] para os animais. Vi animais morrendo de fome e sede. Vi grandes caminhões cheios de uva e manga saindo do Projeto em direção aos grandes centros do nordeste como Recife e Salvador. Vi exploração, não só por parte do atravessador12, mas também no interior das famílias. Vi desconfiança entre colonos. Vi tristes cenas de desrespeito no seio de famílias. Mas vi também brincadeiras, músicas embalando o raleio de uvas, sonoras risadas. Essas tramas cotidianas moveram e envolveram meus dias de campo e também a vida dos nativos.

Com o passar do tempo, fui ganhando fama em todo o Projeto Bebedouro. Por onde eu ia as pessoas já sabiam e comentavam que era a menina da Embrapa, a mineira. Mas isso, eu só fui saber, quando comecei a fazer minhas entrevistas [momento que será apresentado no tópico 2.4] e tive que sair do lote da dona Naná para entrevistar outros colonos em outras agrovilas. Paulatinamente, os trabalhadores que ela contratava para a sua roça começaram a me ver com menos receio e menos inibidos com a minha presença e da minha câmera, sempre em punho. Pelo grau de aproximação que dona Naná e eu fomos construindo, muitos deles achavam que eu era sobrinha dela. Nesse tempo em que estive com ela, me tornei a sua sombra. Fazia as minhas anotações, tirava fotografias, mas, essencialmente, dividia com a dona Naná a sua experiência cotidiana. Sentávamos e conversávamos por longas horas. Íamos para as áreas de uva e continuávamos nossas conversas. O nosso tempo foi construído pelas trocas, ora ela me contava da sua vida, ora eu contava para ela sobre a experiência que eu estava vivendo ali.

12 Atravessador é o termo utilizado para designar a pessoa que compra a fruta ou o grão nos projetos de irrigação

e revendem em outros lugares, desde Juazeiro (BA) que está a pouco mais de 50 quilômetros do Projeto Bebedouro, até grandes centros nordestinos como Recife (PE) e Salvador (BA).

Por fim, Malinowski (1986, p. 46) afirma que é fundamental que se descubra qual o pensamento e atitudes esperadas [ou impostas] pelas instituições e pela comunidade estudada. E, a partir daí, é que se devem formular resultados. Como entrei no Projeto Bebedouro pelas “portas” da Embrapa, foi possível identificar o papel simbólico que esta instituição e, de forma secundária a CODEVASF [por não ter feito observações diretas nesta instituição], tem frente aos colonos e como isto se torna fundamental para se entender a teia latifundiária em Petrolina e seu entorno, porém, isto será discutido mais adiante neste trabalho.

Cabe ressaltar que nessa pesquisa, embora eu apresente os métodos de forma fragmentada, durante a realização do campo a minha preocupação em aliar esses dois métodos de pesquisa, etnografia e história oral, foi com o intuito de construir, de forma conjunta e dialogada, um método próprio para analisar a vida cotidiana dos colonos do Projeto Bebedouro. E esta forma de condução da pesquisa se constitui como uma outra metodologia, na qual não há uma hierarquização entre registros históricos, documentais, observação participante ou entrevistas. Todas essas fontes de dados são vistos de forma dialógica e negociada, para se construir resultados e contribuir para a construção da narrativa que é esta tese.

Assim, na próxima seção, darei início à apresentação, interpretação e análise dos resultados de acordo com essa proposta analítica que apresentei aqui. Meu intuito não é apresentar uma história linear e cronológica, como já ressaltei, mas para fins didáticos, organizo a minha tese de uma forma [mais ou menos] linear, porém, considero-a fragmentada. Assim, a estrutura analítica deste trabalho será construída na seguinte ordem: 1º) contextualizarei o cenário político, econômico e social no semiárido e os trabalhos realizados pela SUDENE e pela Food Agriculture Organization (FAO); 2º) as memórias dos colonos pioneiros sobre a constituição e desenvolvimento do Projeto Bebedouro; 3º) os relatos dos colonos sobre a Cooperativa Agrícola Mista do Projeto de Irrigação de Bebedouro (CAMPIB); 4º) a tentativa de implantação de um polo agroindustrial na região do Vale do São Francisco; e, 5º) análise do cotidiano dos colonos e a [re]configuração do Projeto Bebedouro.

3. A CONSTRUÇÃO SÓCIO-POLÍTICA E A REINVENÇÃO DAS