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Memórias individuais que [re]produzem memórias sociais

4. A MUDANÇA EM BUSCA DA TERRA MOLHADA PROMETIDA E SUAS

4.3 O cotidiano e a gestão ordinária cíclica no Projeto Bebedouro

4.3.4 Memórias individuais que [re]produzem memórias sociais

Para começar esse tópico, acredito ser importante pontuar que a memória está intimamente relacionada às experiências que os sujeitos vivenciam em seu cotidiano. Por isto, para discutir as memórias sociais [e não coletivas, como propõe Halbwachs (1990)], pressuponho que as experiências, mesmo vivenciadas na coletividade, são próprias do indivíduo. Além disso, ressalto que as memórias são construções feitas no tempo presente referentes ao passado. Tal fato traz para o campo das memórias o constante conflito sobre quais memórias deverão se sobrepor às outras. E este conflito é constantemente encontrado na cotidianidade. Sob esta perspectiva, Certeau (1994, p. 264) afirma que

uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um texto afirma, precisa, corrige. Desde a leitura da criança até a do cientista, ela é precedida e possibilitada pela comunicação oral, inumerável “autoridade” que os textos não citam quase nunca.

Com base nas escolhas narrativas dos colonos pioneiros, foi possível depreender inúmeros jogos de poder e resistência, como supunha Foucault (1974, p. 6). Para ele, o discurso deve ser visto não só pelo aspecto linguístico, mas também como um “jogo estratégico de ação e reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva e também como luta”. Os colonos, muitas vezes, em suas narrativas, afirmaram que “o projeto tá acabado, isquicido” [Juca, colono] e que “infelizmente o projeto aqui tá fraco, / Tá fraco fraco memo!” [Bené, colono]. Os termos “isquicido” e “fraco” foram utilizados para expressar os sinais de abandono percebidos pelos colonos em relação ao Projeto Bebedouro.

Embora essa percepção de abandono tenha sido relatada por todos os colonos entrevistados, ao reproduzir aqui a fala de dois deles, o meu intuito é demonstrar que são produções individuais, que divididas, tornam-se sociais. Assim, defendo que a memória é individual, como propõe Portelli (2001). Para o autor, a memória de uma história pode remeter ao coletivo, pois as lembranças trazem consigo imagens e representações que são comuns a um território, a um lugar. Porém, esta memória é trazida por um indivíduo por meio de seu testemunho. Por isso, por mais que a história construída possa parecer coletiva, as interpretações se fundamentam em experiências vividas, e estas são individuais.

Por outro lado, Halbwachs (1990) afirma que a memória coletiva envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. A memória coletiva evolui de acordo com suas próprias leis. Em outras palavras, a memória coletiva não é a agregação pura e simples de memórias subjetivas. Porém, é impossível tomar o indivíduo pelo seu grupo, pois ele é um ser particular (HELLER, 1985).

Diante disso, tendo por base as narrativas enunciadas pelos colonos, percebi que a memória individual traz registros particulares como um episódio da infância, a lembrança da vida antes do Projeto Bebedouro, memórias da família e de visitas que receberam em sues lotes, como políticos da região e os ditadores. E estas memórias também [re]produzem as memórias sociais. Como afirma Portelli (2005) não há uma só memória, mas sim uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas. Para ele, a memória, assim como todas as atividades humanas, é social e pode ser compartilhada com outros sujeitos. Porém, ela só se torna coletiva quando se separa do indivíduo, como no mito e no folclore, na delegação e nas instituições. Por fim, o autor afirma que

quando compreendemos que ‘memória coletiva’ nada tem a ver com memórias de indivíduos, não mais podemos descrevê-la como a expressão direta e espontânea da dor, luto, escândalo, mas como uma formalização igualmente legítima e significativa, mediada por ideologia, linguagens, senso comum e instituições (PORTELLI, 2005, p. 128),

seria o que o autor chama de “memória dividida”. O autor afirma ainda que o conceito de “memória dividida” precisa ser ampliado e radicalizado para se compreender a pluralidade fragmentada de diferentes memórias e esquecimentos.

Ricouer (2007) chama a atenção para o fato de que ao lembrar algo, alguém se lembra de si, ou seja, a memória que se tem de algo é sempre a memória relacional de si com algo. Assim, quando os ,colonos se lembraram do tempo do treinamento, eles se lembraram de como eles aprenderam técnicas de irrigação e sobre a cooperativa, que já estava fundada. Lembraram-se das primeiras produções e dos primeiros fracassos que amargaram individualmente. Cada um, do seu jeito, se relacionou com suas memórias para produzir essa história que eu [re]construí. Em outras palavras, o sujeito não se lembra efetivamente de algo, mas sim dele mesmo. O autor afirma ainda que a “memória das ‘coisas’ e a memória de mim mesmo coincidem: aí, encontro também a mim mesmo, lembro-me de mim, do que fiz, quando e onde fiz e da impressão que tive ao fazê-lo. Sim, grande é o poder da memória, a ponto de ‘eu me lembrar até de ter me lembrado’” (RICOUER, 2007, p.110).

Quando um dos colonos lembrou-se de que quando era presidente da cooperativa, ele precisou ir a Salvador negociar pessoalmente com o dono de uma grande empresa uma produção de batata inglesa que não tinha saído tal qual haviam negociado com a empresa, ele se relaciona com a história que ele mesmo construiu. E, a partir daí, ele construiu a história que ele queria eternizar, de que por meio da negociação dele, todos os colonos puderam vender sua produção e ninguém teve prejuízo. Porém, outro colono, ao relembrar o mesmo fato, lembrou-se que quando plantou essa batata, não conseguiu colher nada, porque uma chuva havia “enterrado” toda a sua produção, o que trouxe um grande prejuízo ao colono. O que percebo é que a mesma situação, pode ser lembrada de forma diferente e única por cada um que vive aquele momento, pois a memória está diretamente relacionada ao envolvimento afetivo do sujeito com o fato lembrado. E, por meio das relações sociais, essas memórias são divididas.

Outro ponto que merece destaque é a consciência de pertencimento ao grupo. Quando eu perguntava aos colonos sobre suas relações com o Projeto Bebedouro, eles se lembravam dos colegas que começaram pegaram os primeiros lotes junto com eles e outros queriam saber quem havia se lembrado dele. Cabe então ressaltar, conforme afirma Heller (1985), que todo

homem se relaciona conscientemente com a comunidade ou grupo do qual faz parte. E é nesta relação que se forma sua “consciência de nós” e, também, sua própria “consciência do Eu”. Portanto, todo sujeito é ao mesmo tempo indivíduo e, portanto, particular e também um ser social, que se relaciona com os demais e juntos constroem sua própria realidade.

Neste sentido, Halbwach (1990) afirma que a capacidade de lembrar é determinada, não pela aderência de um indivíduo a um determinado espaço, mas sim pela aderência do grupo do qual ele faz parte àquele mesmo espaço. Porém o autor elimina a importância do indivíduo no grupo. Por outro lado, é importante ressaltar que Halbwach (1990) foi o primeiro pesquisador a deslocar o processo de construção de memórias do âmbito unicamente individual para o nível da categoria “memória coletiva”. Mas, da forma como expõe a memória coletiva, o autor parece se esquecer do indivíduo, pois elimina qualquer importância que as memórias individuais possam ter, ao privilegiar apenas as memórias relacionadas aos grupos.

A memória é um fenômeno social e construído. Como afirma Pollak (1992), o que a memória grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização individual. E, constroem-se as memórias sociais por meio do resgate das memórias individuais e da intersubjetividade. Estas memórias, embora sejam construídas de maneira individual, elas são socialmente sedimentadas por meio da intersubjetividade. Em outras palavras, as memórias sociais são as memórias que sobraram do passado (estejam elas materializadas no espaço ou em documentos) e também surgem da preocupação constante em registrar as memórias que ainda estão vivas no cotidiano dos indivíduos, que poderão desaparecer caso não sejam registradas.

Além disso, Pollak (1992, p. 207) afirma que “há também o trabalho da própria

memória em si. Ou seja, cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua

um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, de organização.” Eu pude perceber isso claramente em campo, quando os colonos perguntavam se eles estavam contando uma história parecida com a que os outros contavam ou então quando me sugeriam o nome de alguém para que eu perguntasse a ele, porque esse outro tinha uma memória melhor. Porém, a memória por si só não efetua nenhum tipo de trabalho. A memória só existe e se constitui enquanto tal porque é alimentada por lembranças de pessoas que rememoram a todo tempo. Sem pessoas, sem intersubjetividade, a memória não existe, nem no âmbito individual, nem coletivo e, tampouco, social.

Então, cabe aqui [re]construir essas histórias, por meio de uma narrativa, que culmina em uma memória socialmente dividida. Por meio das entrevistas realizadas, percebi que os colonos, embora percebam os problemas que têm que enfrentar por causa da precariedade na qual vivem, construíram, a partir do que viveram e das memórias do que viveram, uma história de superação à seca. Como já ressaltei anteriormente, quase todos eles começaram a contar as suas histórias de vida a partir do momento que chegaram ao Bebedouro e, em muitos momentos, a vida e o trabalho se tornam um só. O cotidiano é alienante. O lazer é opressor. Afinal, a cotidianidade coloca o sujeito em uma situação de mecanicidade, ou seja, a vida cotidiana está marcada pela reprodução constante de ações mecanizadas e, muitas vezes, não se reflete sobre aquilo que se vive. Essa reprodução é que considero alienante e opressora, por essa não reflexividade que financia e promove.

Para Heller (1985) o indivíduo precisa aprender a manipular os elementos constituintes de sua cultura, se apropriando do uso e dos significados sociais deles. E por essa apropriação ser mediada, direta ou indiretamente, por outro sujeito, ela se constitui a partir das relações sociais estabelecidas em determinados grupos. Ou seja, há a reprodução social da alienação e, diante disso, torna-se fundamental que os sujeitos questionem esses espaços de reprodução mecanizada de modo a apreender as opressões e estratégias do dominador, com o intuito de se desvencilhar dessas amarras.

Diante disso, a história que eles contaram e que quiseram eternizar, foi a historia do sertanejo que conseguiu superar as adversidades climáticas e que não precisam mais se preocupar com a falta de chuva, porque eles têm a irrigação. Para eles, a irrigação mudou as suas vidas e se lembram muito pouco de como eram as suas vidas antes dela. A irrigação é sinônimo de prosperidade, emprego, casa, eles a apontam como a única alternativa para a região. Foi uma forma de superar a fome, a sede e a falta de trabalho. É também um sinônimo de riqueza e de desenvolvimento. Afinal, afirmam que Petrolina só cresceu como cresceu, graças à irrigação que começou ali, com a coragem e o trabalho deles.

Alguns se lembraram que os militares visitaram o Projeto, outros só lembraram da ameaça do comunismo, mas, acima de tudo, as memórias sociais [re]constroem uma história de homens de coragem [porque dentre os pioneiros, só tinham homens], que acreditaram que a irrigação era possível e que não tiveram medo do comunismo. Mas ao construir esta versão, minimizaram o fato de que, no início, eles também não quiseram os lotes, que preferiam continuar trabalhando para a SUDENE com suas carteiras assinadas. E que, para despertar essa coragem, foi preciso muitos benefícios, como continuar no quadro de funcionários da

SUDENE [o que era uma garantia de estabilidade], recebendo seus salários [além dos lucros que obtivessem com os lotes], ter trabalhadores para ajudá-los na roça dentre outras vantagens.

Neste sentido, ao remontar a história, ou melhor, as histórias dos colonos de Bebedouro, por meio das memórias e do cotidiano, não há como falar em uma memória coletiva, mas sim em memórias sociais. Como, brilhantemente, afirma Portelli (1997, p. 16)

A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais.

Assim, entendo a memória como estando intimamente relacionada à experiência. E que a experiência é, por excelência, uma prática pessoal. Portanto, as memórias individuais são construídas por meio das experiências que cada indivíduo viveu ou vive. A soma destas memórias, ou melhor, as negociações e conflitos entre as memórias é que produzem as memórias sociais.

Ressalto ainda que não existe uma grande memória social, única e que abarque todas as memórias pessoais, mas sim várias memórias sociais que são construídas e reconstruídas com base nas negociações e encontros de vários grupos e aqui, apresento apenas mais uma versão dessas memórias sociais, sem a pretensão de que esta seja a verdade sobre o Projeto Bebedouro.