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5 INOVAÇÕES E PERMANÊNCIAS NA PRÁTICA PEDAGÓGICA: A

5.4 A evidência do conceito de habitus

A aquisição e a construção do habitus são efetivadas a partir da socialização, cujo conceito é descrito por Valle (2003) como a incorporação das maneiras de agir, sentir, acreditar e pensar, das escolhas, normas e valores a partir do grupo de origem do agente.

É nesse sentido que essa autora oferece indícios para pensar a formação contínua como um “reforço do habitus de ensinar”, pois

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Esta modalidade de socialização profissional, onde se articulam sem restrições os interesses individuais e a manutenção da ordem social, visa na realidade produzir o habitus. Nos termos evocados por Bourdieu (1986), trata-se de dar forma e de colocar em forma, isto é, dar a uma ação ou a um discurso a forma que é reconhecida como conveniente, legítima, aprovada (VALLE, 2003, p. 107). As políticas públicas para a educação podem ser, portanto, legitimadas por meio da formação continuada, o que exige a mudança do habitus professoral para adaptá-lo a elas.

Como tentei mostrar neste trabalho, os programas de formação continuada não partem dos saberes e das experiências docentes. Substituir o habitus das alfabetizadoras participantes do PROFA pelo habitus da política de educação da SEDUC/RO e do MEC pressupõe pensar esse e outros programas a partir do habitus que essas professoras carregam.

Entretanto, uma prática pedagógica não pode ser substituída automaticamente por outra. O ecletismo metodológico e o hibridismo teórico mostrados nas falas das professoras entrevistadas e nos questionários aplicados poderiam ser uma tentativa de incorporação de outro habitus a partir das estruturas já existentes. Antes de parecer falso, o desejo revelado pelas alfabetizadoras de inovar e melhorar sua prática aparece como um escamoteamento produzido pelo habitus. Ao afirmarem que estão alfabetizando com textos, porém ser constatado ou revelarem que estão utilizando esses textos para trabalhar sílabas, não estão substituindo e sim adaptando um habitus já existente a um outro que lhe está sendo solicitado ou exigido pelo sistema educacional.

Como a socialização é o processo pelo qual o habitus se produz, busco em Berger e Luckmann (1991) uma ampliação desse conceito. Para tais autores, a socialização é a entrada do indivíduo no mundo, na sociedade ou num setor dela, processo que não ocorre total e diretamente quando a pessoa nasce, mas em dois períodos distintos: durante a socialização primária e depois na socialização secundária.

A primeira dá-se pelo relacionamento da criança com pessoas, chamadas pelos autores de significativos, com as quais ela se identifica, com quem ela está ligada emocionalmente. Esse laço e a linguagem mediatizam as aprendizagens das normas e das regras do grupo social a que ela pertence. Nesse período, o ser humano não faz escolhas porque não as tem. O mundo social ou a realidade social objetiva do grupo com quem convive parece-lhe o único existente. De certa maneira, esse mundo lhe é imposto. Por essa

razão, a socialização primária torna-se mais profunda, firme e difícil de ser modificada posteriormente.

A seqüência de aprendizagem desse tipo de socialização considera os fatores e diferenças biológicas (sexuais) como primordiais para que a aprendizagem ocorra, seguidos do conceito de infância que o grupo social possui quanto a qualidades emocionais, responsabilidade moral ou capacidade intelectual, acervo do conhecimento a ser interiorizado, complexidade lingüística e exigências para habilidades institucionais e sociais.

A socialização secundária é a socialização que se faz tendo por base a primária. Nela, a pessoa interioriza173 submundos da instituição na qual vive e a qual conhece, com a aquisição de conhecimentos sobre a divisão social do trabalho e aquisição de vocabulário específico a determinadas funções. A seqüência de aprendizagem da socialização secundária dá-se por uma maior valorização dos pré-requisitos para as aprendizagens e menor determinação dos fatores biológicos, que vão gradativamente perdendo importância. Essas seqüências são mais racionais e com maior controle das emoções do que na socialização primária. Entretanto, ambas precisam de um grupo social, de significativos que as legitimem por meio de rituais, por exemplo. Outra diferença é que, na socialização secundária, o contexto institucional é percebido como um dos mundos possíveis e não o único, como na socialização primária.

Ainda de acordo com a concepção dos autores em questão, a socialização secundária só ocorre se houver fundamento para ela na socialização primária. Em outras palavras, a mudança de realidades interiorizadas só ocorre se tiver coerência com a socialização primária.

A ausência dessas mudanças é conceituada por esses teóricos como conservação da realidade, classificada em conservação rotineira e conservação crítica. A primeira diz respeito à realidade da vida cotidiana, mantida por rotinas, bases da institucionalização. A conservação crítica visa manter a realidade diante de situações de crise. Se as situações de crise, ou seja, o contato com outra realidade, tornar-se mais freqüente, deixa-se de usar os procedimentos de crise e passa-se a usar procedimentos para a conservação rotineira. Os

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Para Berger e Luckmann (1991) a interiorização é a apreensão criadora e recriadora do mundo; a interpretação de acontecimentos que passam a ter sentido para quem vê.

procedimentos para que a conservação crítica aconteça devem ser os mesmos da conservação rotineira, por meio da conversa, mas devem se dar explícita e intensamente.

A conversa é, por conseguinte, o meio mais importante para a conservação, modificação e reconstrução da realidade. A conservação na conversa acontece mais de maneira implícita que explícita, porque o mundo, a realidade aceita como verdadeira está presente na conversa, dando sentido a ela, confirmando a realidade subjetiva que a pessoa possui. Esse mundo faz com que a fala e o seu conteúdo ganhem significado.

A modificação da realidade subjetiva se dá pela conversa quando alguns pontos dela não são referidos, perdendo o sentido, que, por sua vez, é dado a outros pontos que passam a ter maior importância. Assim, “a realidade subjetiva de uma coisa da qual nunca se fala torna-se vacilante” (BERGER; LUCKMANN, 1991, p. 203). A força da conversa acontece pela objetivação lingüística. É a linguagem que objetiva o mundo, que o torna objetivo diante da realidade subjetiva, atualizando-a sempre como “objetos da consciência individual”, conservando-a continuamente e de maneira coerente, pois “todos os que empregam a mesma língua são outros mantenedores da realidade” (BERGER; LUCKMANN, 1991, p. 204). Se não houver continuidade e coerência na conversa, a realidade subjetiva é ameaçada. A técnica para isso pode ser a correspondência (carta, por exemplo). Quando a conversa é impedida de ocorrer face a face, a correspondência precisa ter densidade, se não puder ser freqüente, e plausibilidade. A plausibilidade garante a superação da dúvida, já que, quando ela surge, pode modificar uma realidade na consciência. Mas, se as sanções sociais estiverem arraigadas profundamente na pessoa, a dúvida parecerá ridícula e a realidade será conservada.

Acredito que nesse ponto reside uma das possíveis explicações para a não ocorrência de inovações na prática pedagógica alfabetizadora, mesmo que as docentes tenham tido acesso a um programa de formação continuada como o PROFA. Embora essa modalidade de formação continuada tenha lacunas, após sua conclusão, aos primeiros grupos de estudo não foram possibilitados espaços para uma formação realmente contínua. Ficou no esquecimento a importância de encontros planejados para intercâmbio de opiniões e experiências, dos pontos significativos a retomar e dos pontos que foram perdendo significado pelas docentes alfabetizadoras. Nas situações de crise, ou seja, naqueles momentos de dúvida, insegurança, medo de errar e de perder o índice exigido de

aprovados, essas profissionais retornaram ao uso das práticas e procedimentos que antes lhe ofereciam certa garantia de aprendizagem dos alunos.

Berger e Luckmann (1991, p. 201) trazem um conceito de socialização, explicitando que

[a socialização] implica a possibilidade da realidade subjetiva ser transformada. Estar em sociedade já acarreta um contínuo processo de modificação da realidade subjetiva. Falar a respeito da transformação implica, por conseguinte, a discussão de diferentes graus de modificação.

No entanto, afirmam também que nunca uma socialização acontece por inteiro, transformando totalmente a realidade da pessoa, porque, apesar de em menor grau, essa pessoa precisa identificar-se com o grupo de socialização. O que ocorre em muitos casos relatados nas entrevistas é que as professoras alfabetizadoras ficaram sem companheiras que as ajudassem a persistir na tentativa de alfabetizar com textos. Isto se deu pela já citada rotatividade do corpo docente e técnico-pedagógico nas escolas ou por outras condições sociais não oferecidas nelas.

Retomando o ecletismo evidenciado nas práticas alfabetizadoras da amostra deste estudo, penso que é possível pensá-lo como resultado de uma socialização secundária, considerando a inovação em pontos específicos, tendo como base a socialização primária e evitando “abruptas descontinuidades na biografia subjetiva dos indivíduos” (BERGER; LUCKMANN, 1991, p. 214), ou seja, nas concepções construídas ao longo de sua vida. Para romper com essa biografia subjetiva seria necessária uma ressocialização, entendida pelos autores citados como uma reinterpretação do passado adequando-o à análise do que é possível no presente. Enquanto a socialização secundária tenta conservar uma coerência entre a lembrança (passado) e o presente, sem romper esse vínculo, a ressocialização é um rompimento com a socialização primária.

O habitus traz para o presente essa lembrança do passado, materializada nas práticas de cada agente e, ao mesmo tempo, é uma antecipação do futuro. A atividade prática, quando gerada pelo habitus típico de um campo, "é um ato de temporalização através do qual o agente transcende o presente imediato pela mobilização prática do passado e a antecipação do porvir inscrita no presente em estado de potencialidades objetivas" (BOURDIEU, 1996, p. 160-161) [grifo meu]. O habitus produz e reproduz práticas mediante as possibilidades que lhe são oferecidas dentro de um campo. O que

permite esse campo de possibilidades é a "atração" ou "repulsão" entre os agentes e os

habitus que constituem esse espaço (BOURDIEU, 2005, p. 55).

Sendo o campo um lugar de lutas e disputas por interesses, por poder, pela conquista de uma fatia de destaque de um dado espaço, a reprodução de práticas só pode se dar por meio da socialização com outros agentes detentores e reprodutores do habitus. Em vista disso,

o campo de possibilidades objetivamente oferecido a um determinado agente e a passagem de uma trajetória à outra depende freqüentemente de acontecimentos coletivos (guerras, crises...) ou individuais (encontros, ligações, proteções...) que são comumente considerados como resultado do acaso (feliz ou infeliz) ainda que dependam estatisticamente da posição e das disposições dos que se beneficiam ou se prejudicam (BOURDIEU, 1979, p. 122).

Ao levar em conta que, na socialização secundária, o contexto institucional no qual se encontra a alfabetizadora é apenas um das realidades possíveis, e que pela ressocialização essa possibilidade se evidencia, se corporifica, pode-se vislumbrar a transição da formação continuada para a contínua como um campo dos possíveis. Ao pensar na conservação, modificação e reconstrução da realidade por meio da socialização, a inovação também se apresenta como um dos possíveis. Essa análise permite observar que essas professoras somente podem inovar suas práticas se possuírem as disposições internas e também se tiverem as condições objetivas (externas) que favoreçam a inovação desejada por elas e/ou pelo sistema educacional.

Bourdieu alerta para o fato de que a valorização de uma prática permite que ela se reproduza no campo de acordo com o habitus e as crenças que lhe são peculiares. Assim, no campo funcionam estruturas que encorajam (possibilitam) ou inibem (impossibilitam) essa reprodução quando aceitam ou rejeitam as escolhas feitas pelo agente obedecendo às regras desse espaço: "o habitus é esse 'poder-ser' que tende a produzir práticas objetivamente ajustadas às possibilidades, que orientam a percepção e a apreciação das possibilidades inscritas na situação presente" (BOURDIEU, 1997, p. 40).

Portanto, eu poderia concluir por ora este capítulo com uma tentativa de síntese dos elementos que contribuíram ou impediram a introdução de inovações nas práticas pedagógicas das alfabetizadoras que investiguei, tendo como fundamentação o habitus e a socialização (vistos nesse campo de possíveis) sobrepondo-se ao discurso de algumas

agências formadoras, que atribuem como causa a falta de vontade docente em inovar sua prática.

Para que tais inovações possam ocorrer é imprescindível que, na elaboração e execução de programas de formação continuada e nas estratégias de formação contínua, seja considerado o habitus adquirido na socialização das alfabetizadoras, alicerce sobre o qual podem ser trabalhadas as propostas da formação, levando-se em conta que na história de vida dessas profissionais residem as principais referências de práticas pedagógicas e das percepções sobre ser professora.

Além disso, as políticas públicas de formação docente carecem de continuidade e coerência teórico-metodológica em suas concepções de formação de professores, educação e alfabetização. Aliada a essa questão está o fato de a escola ainda não ser local privilegiado de formação docente e nem ter condições que favoreçam mudança de habitus ou de ressocialização. Dentre essas condições podem ser citadas a rotatividade de professoras, profissionais do serviço técnico-pedagógico e da direção escolar, a

evaporação de acompanhamento e apoio pedagógico após a conclusão dos projetos e

programas de formação continuada, caracterizando também a descontinuidade nas concepções de formação que norteam a coerência do trabalho na escola.

Outro elemento de importância é que a função da coordenação pedagógica nas escolas ainda não é sinônimo de formadora de professores. Há necessidade do redimensionamento desse papel, com políticas voltadas para a preparação das titulares dessa atividade na escola e com a criação de condições para sua própria formação. Por outro lado, torna-se indispensável que as supervisoras escolares superem a limitação a que foram submetidas e ampliem seu papel na escola, assumindo o grupo de professores e suas problemáticas como principal eixo de atuação e apropriando-se da coordenação da formação contínua. Isso pode favorecer o acompanhamento pedagógico tão necessário para a prática pedagógica.

Sob meu ponto de vista, a implementação de inovações pedagógicas na prática de alfabetizar requer modificação do habitus em primeira instância. Para mudar as percepções que estão subjacentes à prática alfabetizadora torna-se imperioso usar os mecanismos da transição da socialização primária para a secundária e, posteriormente, para a ressocialização, com um acompanhamento e um apoio pedagógico específicos e contínuos, que objetivem desestabilizar as certezas construídas socialmente, as crenças e as práticas

sedimentadas quanto à alfabetização por sílabas. Lembrando mais uma vez Bourdieu (2005, p. 40), "compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez".