3 DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LFG
3.6 Evidências morfológicas e sintáticas para a classificação do PART-PASS
Quando se trabalha com implementação de gramáticas é perfeitamente legítimo construir sentenças, pois dados cotejados em corpora reais apresentam complexidades que vão além do fenômeno que se almeja investigar, as quais não contribuem para a verificação da existência desse fenômeno. Optou-se, assim, por trabalhar-se com um corpus criado, artificial, mas cuja confecção está baseada em fenômenos encontrados em corpora reais. No presente tópico, por exemplo, apresentamos evidências colhidas em fontes reais de que o PART-PASS em PB apresenta características típicas da classe dos adjetivos.
Na linguística gerativa, o estatuto categorial de um constituinte decorre de suas propriedades morfológicas e de sua distribuição sintática (MÜLLER, 2010). Sendo assim, procuramos, nesta subseção, mostrar como evidências morfológicas e sintáticas podem ser cotejadas de modo a reunir mais evidências em favor de nossas hipóteses. Na prática, o que buscou- se fazer foi encontrar evidências na literatura e ocorrências reais dos particípios passivos em contextos morfológicos e sintáticos ocupados preferencialmente por adjetivos.
Ainda que as ideias de Perini (2010) e Alencar (2015) tenham sido as mais influenciadoras desta pesquisa, considerar a passiva uma construção adjetival não é uma novidade. O gramático Jerônimo Soares Barbosa (1875) já considerava o particípio passado um adjetivo verbal com valor passivo em sentenças do tipo “eu sou amado”, semelhantes à construções com adjetivo verbal ativo: eu sou amante ou eu tenho sido
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Exemplos de contruções de se passivas e impessoais tratadas por Kelling (2006) são, respectivamente, ilustradas pelos exemplos (a) e (b) seguintes:
a) Se firmó la paz. REFL sign.PAST the peace
„Assinou-se a paz‟
b) Se impitó a todos los empleados REFL invite.PAST to all the employees „Convidaram-se todos os empregdos‟
amado.
Mesmo não se tratando de uma análise absolutamente nova, uma abordagem interessante nos é apresentado por Alencar (2015a), quando o pesquisador faz um levantamento de um fato pouco explorado na literatura. Em seu artigo, apresentam-se evidências de morfologia derivacional que corroboram a ideia do particípio passivo pertencer à classe dos adjetivos. Os particípios das formas passivas admitem que lhes sejam acrescidos os chamados sufixos avaliativos, por exemplo, o sufixo -inho, típico de diminutivo. Mais exemplos cotejados por nós podem ser observados nas sentenças que seguem:
a) “Refogue o bem o alho, joque os ingredientes que foram cortadinhos juntamente com os cajús (sic.), refogue bem, depois jogue a água até os ingredientes ficarem cobertos e deixe cozinhar até ficarem macios (...).” (Google)
b) “Tudo relacionado acima foi bem explicadinho...” (Google). c) “O Amigo Livro foi um tipo de Amigo Oculto e o presente deveria ser um livro sugerido pela pessoa (cada pessoa sugeria dois livros que gostaria muito de ganhar no valor de até 20,00 R$). Tudo foi bem organizadinho numa lista com os nomes dos livros, nomes dos participantes e seus endereços.” (Google).
Em Gramática Derivacional do Português, Rodrigues et al. (2016, p. 360) afirmam:
O sufixo –íssim(o, a) é o sufixo do grau superlativo. Combina-se essencialmente com bases adjetivas, como aflitíssimo, atormentadíssimo,
caidíssimo, enervadíssimo, enormíssimo, feíssimo, lentíssimo, lindíssimo,
mesmíssimo, ocupadíssimo, pequeníssimo, rapidíssimo, raríssimo,
singularíssimo, e também com algumas adverbiais, como longíssimo, pertíssimo, pouquíssimo, tardíssimo. Raramente se combina com bases
nominais (cf. coisíssima em coisíssima nenhuma) e pronominais (nadíssima), e não se combina com bases verbais.
O PART-PASS parece aceitar, como podemos depreender dos exemplos abaixo, o acréscimo deste tipo de sufixo ao seu radical, do que se pode concluir que, aparentemente, trata-se de uma classe pertencente à mesma dos adjetivos citados acima. Eis os exemplos:
d) “O Moda na Mala esteve presente, e inclusive abriu o desfile, que foi aplaudidíssimo pelo público presente.” (Google)
e) “Em 1968 Caetano foi vaiadíssimo pela esquerda estudantil, na apresentação de 'É Proibido Proibir'.” (Google)
f) “Cheio de revelações e mais mistérios, o episódio foi
comentadíssimo nas redes sociais e nós resolvemos selecionar
algumas das opiniões do público.” (Google)
g) “[Eslovênia] Taí um país que não dá para entender por que não
é exploradíssimo pelos brasileiros.” (Google).
Por fim, queremos ainda mencionar uma terceira evidência semelhante àquela apresenta por Perini (2010.). Trata-se do prefixo de negação acrescido a alguns particípios. Veja-se o exemplo trazido pelo autor:
h) Eles foram incompreendidos.
Como não existe, em PB, o verbo incompreender, chega-se à conclusão de que a forma incompreendido não apresenta caráter verbal, sendo formada acrescendo-se o prefixo „in-‟ ao particípio passivo de compreender. O particípio presente nas construções passivas teria natureza distinta ao presente em construções do passado, pois este último não admite o acréscimo do prefixo:
i) *Eu tinha incompreendido o exercício.
Comparando-se o raciocínio acima com outras línguas, tomemos o trabalho de Noma (2015), no qual a autora, ao tratar do fenômeno da voz passiva em língua alemã, argumenta que, em construções com verbo cópula (a chamada Zustandspassiv [passiva de estado]), há um particípio de caráter diferente do particípio verbal. Apresentando os exemplos (i) e (j), mostrados abaixo, afirma que o primeiro tipo de particípio teria caráter adjetival, pois “o prefixo negativo un- não pode ser combinado com verbos, mas sim apenas com adjetivos” (NOMA, 2015, p.50)45:
j) Der Unfall ist noch ungeklärt.
O caso ainda não está esclarecido.
k) Das Paket ist zollrechtlich unabgefertigt.
O pacote não foi expedido por razões de legislação aduaneira
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No original: “(...) dass das Negationspräfix un- nicht mit Verben, sondern nur mit Adjektiven kombiniert werden kann.“
Percebe-se no exemplo citado para o alemão, mutatis mutandis, um processo morfológico similar em PB em exemplos como (l) e (m), pois, como menciona Noma (id.), não há em alemão os verbos unklären e unabfertigen; em PB, tampouco, existem correspondentes verbais para os particípios negados (não há em PB os verbos inacabar e irretocar)46:
l) A obra está/ fica/permanece INACABADA.
m) A foto permanece IRRETOCADA.
o) *Os pedreiros inacabaram a obra.
p) *O artista irretocou o quadro.
Situação distinta à que ocorre quando o verbo em português já possui o prefixo negativo in-, como em invalidar ou inabilitar:
q) A comissão invalidou o diploma.
r) O diploma foi invalidado pela comissão.
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MORAIS (1988, p.131) argumenta que embora em português não possamos afirmar que os prefixos de negação „i-/im-/im‟ não ocorram com verbos, tal ocorrência estaria restrita a poucos casos, cuja raridade e improdutividade não anulariam a força argumentativa a favor de que esses prefixos apresentam grande produtividade com adjetivos, o que nos leva a conclusão de serem os particípios, nos casos acima, categorizados como adjetivos.
4 METODOLOGIA
A fim de cumprimos o desiderato deste trabalho que, como já mencionado, situa-se numa interface entre a linguística gerativa e a linguística computacional, caracterizando-se, pois, como uma pesquisa de caráter interdisciplinar, lançaremos mão de metodologias de ambas as áreas com o intuito de se verificarem as hipóteses aqui levantadas.
Nossa pesquisa possui um caráter teórico-prático, uma vez que parte de abordagens teóricas acerca da classificação do particípio em construções tradicionalmente analisadas como voz passiva e, além disso, busca, através da implementação computacional em LFG/XLE, evidências que sustentem a hipótese apresentada na seção anterior. Desse modo, para que se alcance resultado satisfatório é preciso que um conjunto de procedimentos metodológicos seja seguido, executando-se cada um num dado momento específico.