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2. PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO

2.1 Evolução da noção de património ao longo do tempo

Longo do Tempo

“Património: s. m. (lat. patrimonium) Bens herdados do pai ou da mãe: um ri-

co património. Bens de família. Bens ne-

cessários para a ordenação e o sustento de um eclesiástico. Propriedade. Cabe- dal comum a uma classe de homens, a uma colectividade: a glória de Camões

faz parte do património português.”

Enciclopédia Lello Universal, José Lello, Edgar Lello, 1973

Como se verifica pela definição acima transcrita, a palavra património, no seu sentido etimológico, tem origem na expressão latina patrimonium, em que mo-

nium significa “bens recebidos” do pater, o pai. Sendo

assim, pode dizer-se que património é aquilo que pas- sa dos pais para os filhos, de uma geração para outra. Durante séculos a noção de património estava, como afirma Choay, “estritamente ligada ás estruturas fami- liares, económicas e jurídicas”1 de uma determinada

sociedade, e servia também para indicar os bens ecle- siásticos do clero.

Fig. 10. Teatro di Marcello, Giovanni Piranesi, 1749-1750, gravura

Fig. 11. A apropriação de ruínas romanas para outros usos senão os originais era práti- ca habitual na idade média. Na figura vê-se os arcos do teatro ocupados habitações e lojas no piso térreo. Vista do teatro di Marce- llo em Roma, Ernst Meyer, 1849, óleo sobre papel.

No Quattrocento, a noção de património estava ain- da longe de representar o legado e o agregado de bens patrimoniais relativos a um povo, cultura ou país; além de tudo, as obras arquitectónicas da antiguidade não eram vistas como bens a preservar, ao invés, elas eram convertidas noutros equipamentos com novos usos, e muitas vezes retiravam-se-lhes frisos ou frag- mentos a serem usados noutras construções – os edi- fícios eram vistos como entidades vivas, mutáveis e reutilizáveis; os escritos clássicos greco-romanos eram então o verdadeiro testemunho do passado.

No enquadramento do movimento Iluminista, o esta- tuto das antiguidades altera-se – surgem os antiquá- rios - coleccionadores de obras como pinturas, gravu- ras, desenhos ou esculturas, que as expunham em ga- lerias, sendo que no domínio da arquitectura este mo- vimento acometeu muito dos edifícios e obras da anti- guidade, “cujos despojos vêm enriquecer as colecções públicas e privadas”.2

Surgem assim os esboços do que viria a ser conside- rado o museu moderno – diversas colecções são agru- padas e expostas ao público, fundando-se instituições que perduram até aos dias de hoje, como por exemplo a Galleria degli Uffizi, em Florença, cuja vasta colecção de obras de arte, pertencente aos Medici, foi transferi- da para o poder estatal após a morte do Gran Duque Gian Gastone (1671-1737), acontecimento que marca o início da musealização da galeria, abrindo as portas ao público desde 1789, até à actualidade.3

2

Françoise Choay. A Alegoria do património, p.87.

Fig.12 A destruição da Bastilha, estrutura medieval que simbolizava o antigo regime, marca o inicio da Revolução Francesa. A Tomada da

Bastilha, Jean-Pierre Hoüel, aguarela,1789

Já no contexto da Revolução Francesa, observa-se a destruição e saque de um grande espólio de monu- mentos históricos – a nova mentalidade e ideais difun- didos eram incompatíveis com os marcos históricos dos séculos anteriores, principalmente os medievais, que simbolizavam a ordem feudal e as classes domi- nantes do clero e nobreza, antagónicas aos princípios iluministas da revolução. 4

4

Beatriz Kühl, A restauração de monumentos históricos na França

após a Revolução Francesa e durante o século XIX: um período cruci- al para o amadurecimento teórico, p. 112.

Fig.13 Capitel da arcada inferior do Palácio Ducal, Veneza, John Ruskin,

The Seven Lamps of Architecture,

1849.

Estabelece-se então um novo paradigma para o pa- trimónio arquitectónico: visto que o espírito revolucio- nário ameaçava com a destruição de importantes obras de arquitectura em França, foram criados orga- nismos para combater os vandalismos, inventariar e preservar este legado, a que foi atribuído valor nacio- nal. Nesta fase, as chamadas idades “intermédias”co- meçam a ser reconhecidas e valorizadas: “o corpus teórico ou virtual dos monumentos históricos compre- ende desde aí, para além dos vestígios greco-romanos em solo francês, as antiguidades nacionais (celtas, ‘in- termédias’ e góticas) e (...) as obras de arquitectura clássica e neoclássica”;5 nestas idades intermédias a

que se refere a autora estariam os principais alvos das políticas destruidoras: catedrais românicas e góticas, pertencentes ao período da idade-média são agora, à luz das novas políticas conservacionistas, considera- das monumentos históricos.

Começam então a esboçar-se as primeiras políticas de conservação e restauro do património monumental, assim como diferentes perspectivas de como actuar nos monumentos: a escola romântica, representada por Ruskin, defende que o restauro de monumentos históricos retira-lhes a autenticidade e o simbolismo – é mais correcto deixa-los serenamente no seu estado de ruína. John Ruskin foi intransigente na sua aborda- gem e nas opiniões acerca do restauro em arquitectu- ra: no seu ensaio The Seven Lamps of Architecture, refere que tal como é impossível trazer um defunto à vida, é também impossível restaurar algo que foi ar- quitectonicamente belo no passado; se determinada ruína ou edifício históricos são restaurados, então aí, um novo espírito é conferido à construção, e assim

Diferentes abordagens ao restauro arqui- tectónico – o mesmo património restau- rado por diferentes arquitectos, em dife- rentes épocas.

Fig. 14. Vista do anel exterior do Coliseu de Roma. Íñigo García Odiaga, 2013, Fotografia.

Fig. 15. Restauro no anel exterior do Coliseu de Roma, de forma a consolidar problems estáticos, pelo arquitecto Raf- faele Stern, em 1806. Diego Sanna, 2017, Desenho técnico.

sendo, não é um restauro mas sim a produção de um

novo edifício, de uma nova época, diferente da inicial.6

No entanto, na visão de Viollet-le-Duc, arquitecto francês e teórico do restauro do património histórico, o restauro devidamente fundamentado resgata esses mesmos edifícios, devolvendo-lhes a integridade e consolidando-os. Eugène Viollet-le-Duc avançaria já no séc. XIX com uma definição de restauro arquitectónico, referindo que restaurar um edifício não é preservá-lo, nem reconstruí-lo, nem tampouco repará-lo; ao invés, é restablecê-lo numa condição de integridade que po- derá nunca ter existido em qualquer determinado momento.7

6

Tradução livre do autor de “(...) it is impossible, as impossible as to raise the death, to restore anything that has ever been great or beautiful in architecture. (...) Another spirit may be given by another time, and it is then a new building; (...) John Ruskin, The Seven

Lamps of Architecture, Volume I, 1849, p. 179.

7

Tradução livre do autor de “(...) To restore a building is no to pre- serve it, to repair, or rebuild it, it is to reinstate in a condiotion of completeness which could nerver have existed at any given time. (...)Viollet-le-Duc, On Restauration, 1875, p.8.

Fig. 16 Fechamento do anel exterior do Coliseu, reconstruindo-se os arcos em estilo idêntico, pelo arquitecto Giuseppe Valadier, em 1823. Diego Sanna, 2017, Desenho técnico.

Fig. 17. O anel exterior do Coliseu, actualmente. Agência de Turis- mo Italiana Oficial, 2018, Fotografia.

Fig. 18. O Fado é um exemplo de patrimó- nio intangível, que foi considerado Patrimó- nio Cultural e Imaterial da Humani- de pela UNESCO, em 2011. Autor desconhe- cido, [s.d.], Graffiti.

Outro acontecimento, que altera profundamente o conceito de património, e muda também a face do mundo ocidental à época, é a Revolução Industrial - segundo Choay,

“o monumento histórico adquire por isso uma nova determinação temporal. A distância que dele nos separa é, a partir de então, desdobrada. Ele está acantonado no passado de um passa- do. Um passado que já não pertence à continuidade do futuro e que mais ne- nhum presente ou futuro virão aumen- tar. (...) A partir dos anos vinte do séc. XIX, o monumento histórico é inscrito no signo do insubstituível: os danos que sofre são irreparáveis e a sua per- da irremediável”16.

Assiste-se assim à consagração do monumento his- tórico. Uma vez alcançado este estatuto, na viragem do séc. XIX para o séc. XX, com a ajuda de Camillo Boi- to e Alois Riegl, a disciplina do restauro arquitectónico é consolidada e reconhecida como campo de conheci- mento autónomo.

A era industrial vem assim alterar profundamente a noção de património – com a alteração dos tecidos ur- banos e aparecimento de cidades industriais, começa- se a olhar para as cidades antigas como objectos a conservar – o património não são apenas os edifícios históricos e as peças de arte, mas também conjuntos urbanos, não só as igrejas mas também as suas imedi- ações, não apenas os quarteirões mas também o con-

Fig. 19. Veneza e a Lagguna foram consideradas em 1987 como Pa- trimónio Mundial da UNESCO. DailyOverview, 2018, Fotografia

junto de eixos que desenha determinada cidade histó- rica. De facto o arquitecto e engenheiro Gustavo Gio- vannoni foi o primeiro a falar em “património urba- no”.17

Nos dias de hoje, património é já um conceito vasto que engloba não só os exemplos anteriormente referi- dos mas também bens imateriais como estilos musi- cais, práticas, eventos, modos-de-fazer, etc.

2.2. Património Arquitectónico na Contem-

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