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Apresentado o conceito dos direitos da personalidade, passaremos a analisar a evolução histórica desses direitos, em seus principais aspectos.

Apesar de a proteção à pessoa humana poder ser identificada em civilizações da Antiguidade, como na Índia, Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma, os denominados direitos da personalidade são uma construção relativamente recente, consubstanciados nas mudanças apreendidas pelo direito civil desde o fim do período dos chamados “códigos oitocentescos”.

É historicamente recente a concepção da pessoa humana como valor universal e o seu reconhecimento no ordenamento jurídico e decorrem: a) do cristianismo, que passou a exaltar o indivíduo de maneira distinta da coletividade, dotando-o de livre arbítrio; e b) das declarações de direitos surgidas no fim do século XVIII, como uma forma de liberar o Homem das diversas limitações impostas pelo sistema de produção na época vigente81.

Em relação ao contexto do surgimento das declarações de direitos oriundas do fim do século XVIII, é importante mencionar que, durante o Estado Absolutista houve uma estruturação política de governo de forma que se produziu um ente estatal poderoso, centralizador e absolutista, em que a autoridade estatal possuía características divinas, podendo tudo contra todos, de forma que o indivíduo tinha pouca importância, em face da sua impotência e da onipotência do ente estatal, que praticamente não deixava espaços para a regulação da vida privada82.

81 DONEDA, Danilo – Os direitos da personalidade no Código Civil. In: O Código Civil na Perspectiva Civil-

Constitucional: Parte Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 52-53.

82 CORDEIRO, Wolney de Macedo – Limitações estruturais para o exercício da autonomia privada coletiva

como suporte da negociação sindical. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 32, n.o 121 (janeiro/março 2006). p. 261-262.

A burguesia ascendente, que se fortaleceu com o declínio do sistema feudal de produção, questionava esse Estado onipotente, que controlava todas as atividades em busca de uma maior liberdade para negociar e contratar.

A liberdade, então, tem seu sentido firmado como uma reação ao despotismo do Poder Público, gerando as revoluções liberais-burguesas (séculos XVIII e XIX) como uma forma de permitir a atuação plena da burguesia, com o foco no primeiro momento, no aspecto econômico.

Um dos principais postulados da liberdade econômica era a ideia da autonomia da vontade, baseada na liberdade individual, como um elemento que permitia a liberdade ampla e irrestrita de contratar como uma forma de possibilitar o desprendimento das amarras do Estado e de permitir que os indivíduos criassem e regulassem livremente seus negócios jurídicos, apenas pela vontade83.

Nessa época, a economia era baseada nos princípios liberais e individualistas, de modo que, pela primeira vez na História, criou-se um mercado livre, autônomo e independente de qualquer atuação estatal. O direito de propriedade e a liberdade eram garantidos a todos.

Uma estrutura normativa foi criada para estruturar este molde sócio-econômico nas relações interpessoais, com seu modelo e símbolo no Código de Napoleão84, onde imperava o

individualismo e a autonomia privada, não se pensando, nas relações privadas, em uma tutela da personalidade no direito civil. O Código Napoleônico, fonte inspiradora de diversos códigos civis do século XIX, ao contrário de ser um diploma normativo voltado para o direito das pessoas, era dedicado essencialmente ao patrimônio.

As declarações de direitos e as cartas constitucionais, no âmbito do direito público, conferiam ao Homem determinadas liberdades em relação ao Estado, além de reconhecer a igualdade formal entre todos, todavia, nas relações privadas inexistia tutela da personalidade.

Menciona-se que a categoria dos direitos da personalidade é uma criação do século XIX, apesar de não se poder desconsiderar a contribuição do direito antigo na formação85, com avanços devidos principalmente ao trabalho dos tribunais, os quais foram decisivos na sua construção, na medida em que a doutrina possuía desencontros e ideia de necessidade da positivação dos direitos que se apresentavam multifacetados86.

83 CORDEIRO, Wolney de Macedo – Op. cit. p. 262-263. 84 DONEDA, Danilo – Op. Cit. p. 54.

85 GARCIA, Enéas Costa – Direito geral da personalidade no sistema jurídico brasileiro. São Paulo: Juarez

de Oliveira, 2007. p. 7.

86 SZANIAWSKI, Elimar – Direitos da personalidade e sua tutela. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

Foi no século XIX que muitos países europeus começaram a reconhecer os direitos da personalidade em diversas tipificações, enquanto o direito alemão, o austríaco e o suíço desenvolveram a tutela da personalidade a partir de um único e genérico direito da personalidade, repudiando-se a ideia de direitos da personalidade multifacetados em diversas tipificações87. Posteriormente, houve modificação no direito alemão, com a entrada em vigor do Burgerliches Gesetzbuch (BGB), de 01/01/1900, que não previa uma cláusula geral indicando a proteção da personalidade, passando o Supremo Tribunal daquele país a entender que o novo ordenamento jurídico não mais amparava a existência de um direito geral da personalidade.

O Código Civil português de 1867 tratou dos “direitos originários” nos arts. 359 a 368, sendo o Código que no século XIX maior relevo deu aos direitos da personalidade atualmente consagrados, conforme afirma António Menezes Cordeiro88.

Já no século XX iniciaram-se as primeiras mudanças que deram origem ao desenvolvimento dos direitos da personalidade, em um contexto no qual a igualdade formal havia gerado uma série de problemas sociais que necessitavam de solução, mas onde os espaços destinados à resolução das querelas (família, autoridades políticas e religiosas) não mais eram suficientes, ocupando o direito a papel de mediador de interesses conflitantes89.

Nesse século houve forte preocupação social, tendo em vista que, com a Revolução Industrial, formou-se uma nova classe social (classe operária), com a concentração da população nas grandes cidades. Houve uma excessiva exploração da mão de obra operária, com jornadas de trabalho extremamente longas, utilização do trabalho de crianças e mulheres em condições precárias, gerando a união dos trabalhadores e os movimentos que exigiam melhores condições de labor. Difundiram-se as ideias socialistas advindas da Revolução Russa de 1917, que prometia a conquista de uma igualdade real entre os indivíduos.

Enfim, o modelo liberal anteriormente vigente encontrava-se em crise, necessitando-se que o Estado adotasse uma postura diferente, intervindo nas relações sociais, econômicas e contratuais, em busca de um maior equilíbrio.

Foi durante o século XX que os direitos da personalidade tiveram seu efetivo desenvolvimento, tendo papel importante a Constituição de Weimar, de 1919, que, apesar de não prever proteção aos direitos da personalidade, trouxe grande impacto na tutela da pessoa

87 Op. Cit. p. 45-47.

88 CORDEIRO, António Menezes – Op. Cit. p.71-72. 89 DONEDA, Danilo – Op. Cit. p. 55.

humana, ao admitir a efetiva aplicação dos direitos pessoais nas hipóteses em que estivessem em questão a personalidade90.

Essa Constituição, juntamente com a Constituição mexicana de 1917, inspirou diversas outras, que acabaram consolidando os direitos de segunda geração, ou seja, os direitos econômicos, sociais e culturais91.

Não obstante o avanço nas Constituições, o direito civil não teve a mesma desenvoltura, por ser baseado no modelo liberal, apesar de o Código Civil alemão de 1896 (BGB) reconhecer alguns direitos da personalidade tais como o direito à vida, à saúde, à liberdade, à honra e ao nome92, este último também contemplado no Código Civil suíço de 1907. O Código Civil suíço ainda fixou a obrigação de indenização do atentado contra a pessoa e conceituou como irrenunciável a liberdade para a proteção da personalidade93.

Marco importante na evolução dos direitos da personalidade é o Código Civil italiano de 1942 (arts. 5o ao 10o), que veda a disposição do corpo, que importe em diminuição permanente de sua integridade ou contraria a lei, à ordem pública ou os bons costumes, consagra o direito ao nome, e confere ação para sua tutela; tutela para previsão familiar; o direito ao pseudônimo; e o direito à imagem, conferindo ação ao interessado para a cessação da violação ou o ressarcimento do dano.94

O referido Código italiano serviu de modelo para os códigos civis que foram surgindo posteriormente, dentre eles o Código Civil português de 1966 (arts. 70.º a 81.º) e o Código Civil brasileiro de 2002 (arts. 11 a 21)95.

O impacto causado pelas atrocidades cometidas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial é que despertou a necessidade de uma tutela específica dos direitos do Homem, gerando a consagração dos direitos da personalidade nos ordenamentos jurídicos ao redor do planeta96.

Além disso, não se mostrava mais possível um direito voltado única e exclusivamente para a tutela da propriedade, diante da mudança dos paradigmas da sociedade e da complexidade das relações humanas97.

90 NEVES, Thiago Ferreira Cardoso – A Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da Personalidade. In Direito

& Justiça Social: Por uma Sociedade mais Justa, Livre e Solidária: Estudos em homenagem ao Professor Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Atlas, 2013. p. 181.

91 ZANINI, Leonardo Estevam de Assis – Op. Cit. p. 47.

92 BITTAR apud ZANINI, Leonardo Estevam de Assis – Direitos da personalidade: aspectos essenciais. p. 47. 93 BITTAR, Carlos Alberto – Op. Cit. p. 66.

94 Op. Cit. p. 69.

95 ZANINI, Leonardo Estevam de Assis – Op. Cit. p. 48. 96 NEVES, Thiago Ferreira Cardoso – Op. Cit. p. 182. 97 Idem – Ibidem.