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EVOLUÇÃO DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO: PRESSUPOSTOS DO NOVO CONCEITO DE ESTADO DE DIREITO – NOTAS

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS, MEIO AMBIENTE E EVOLUÇÃO DO ESTADO: DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO – ELEMENTOS

2.1 EVOLUÇÃO DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO: PRESSUPOSTOS DO NOVO CONCEITO DE ESTADO DE DIREITO – NOTAS

INTRODUTÓRIAS

A sociedade contemporânea vive um processo de intensos contrastes, marcado especialmente pelo desenvolvimento tecnológico, político e social da humanidade. A sociedade, ao mesmo tempo em que luta incessantemente por novas riquezas, valorizando o

antropocentrismo119 tradicional, caracterizado pela preocupação exclusiva como o bem-estar do

homem, paradoxalmente, no entanto, constata-se que, cada vez mais, que o ser humano distancia-

se da natureza e dos valores associados a ela. Nesse sentido, segundo Ost120 é um período de crise,

“eis a crise ecológica, (...) a crise da nossa representação da natureza, a crise da nossa relação com

a natureza”. Ost121

pondera, referindo que se trata da perda do vínculo com a natureza, o que liga e obriga a nossa relação com ela, ou, por outras palavras, as raízes que permitem a possibilidade de partilha entre o homem e a natureza; e da noção de limites em relação a ela, ou seja, a diferença que nos distingue dos animais. Ele denomina a crise do vínculo e a crise do limite como uma crise de paradigma. “Crise do vínculo: já não conseguimos discernir o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; crise do limite: já não conseguimos discernir o que deles nos distingue”.

119

Nos dizeres de Boff “O antropocentrismo instaura uma atitude centrada no ser humano e as coisas têm sentido somente na medida em que a ele se ordenam e satisfazem seus desejos. Nega a relativa autonomia que elas possuem. Mais ainda, olvida a conexão que o próprio ser humano guarda, quer queira quer não, com a natureza e com todas as realidades, por ser parte do todo. Por fim, ignora que o sujeito derradeiro da vida, da sensibilidade, da inteligibilidade e da amortização não somos, em primeiro lugar nós, mas o próprio universo, a Terra. Ela manifesta sua capacidade de sentir, de pensar, de amar e de venerar por nós e em nós. O antropocentrismo desconhece todas estas imbricações”. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 18. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 108.

120

OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do Direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 08.

121

Em primeiro momento, constata-se que a sociedade, desde as últimas décadas, lutou e continua lutando incessantemente para gerar riquezas, seja no campo da economia, das descobertas técnico-científicas, utilizando-se dos recursos ecológicos como forma de buscar melhores condições de vida ao próprio homem. Na luta por esse projeto da modernidade,

imergimos em uma crise de civilização que surgiu nas últimas décadas do século XX. Leff,122 ao

se referir à crise de civilização, pontua que é justamente no campo da problemática ambiental – a poluição e degradação do meio, a crise de recursos naturais, energéticos e de alimentos – que se questiona a racionalidade econômica e tecnológica dominantes. Por um lado, é percebida como resultado da pressão exercida pelo crescimento da população sobre os limitados recursos do planeta. Por outro, é interpretada como o efeito da acumulação de capital e da maximização da taxa de lucro a curto prazo, que induzem padrões tecnológicos de uso e ritmos de exploração da natureza, bem como formas de consumo, que vêm esgotando as reservas de recursos naturais, degradando a fertilidade dos solos e afetando as condições de regeneração dos ecossistemas naturais.

Nesse sentido, observa-se que a problemática ambiental gerou mudanças globais em sistemas socioambientais complexos que afetam as condições de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e sociais para a gestão democrática dos recursos naturais, conforme explica Leff. No entendimento do autor, estes processos estão intimamente vinculados ao conhecimento das relações sociedade-natureza: não só estão associados a novos valores, mas a princípios epistemológicos e estratégias conceituais que orientam a construção de uma racionalidade produtiva sobre bases de sustentabilidade ecológica e de equidade social. Desta forma, a crise ambiental problematiza os paradigmas estabelecidos do conhecimento e demanda novas metodologias capazes de orientar um

processo de reconstrução do saber que permita realizar uma análise integrada da realidade.123

Com efeito, em um segundo momento, o que se verifica é que nossas ações e omissões no atual modelo de crise ambiental estão destruindo o planeta. Essa destruição coloca em risco a existência da própria sociedade e de todos os recursos naturais da Terra. No contexto delineado pelos modernos desafios postos na sociedade contemporânea, incluindo a proteção do meio

ambiente, Leite e Ayala124 destacam que o surgimento do direito ambiental e, respectivamente da

crise ambiental estão justamente vinculados a um esgotamento dos modelos de desenvolvimento econômico e industrial experimentados pela sociedade industrial que resultam em degradação

122

LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2010, p. 61.

123

Idem, p. 61-62.

124

ambiental. Sob essa abordagem, Goldblatt125 refere, em análise de Beck, que “embora os riscos que ameaçaram as sociedades industriais fossem importantes a nível local e frequentemente devastadores a nível pessoal, os seus efeitos acabavam por ficar limitados em termos de espaço. Não ameaçaram sociedades inteiras”. As ameaças causadas pelos métodos industriais, como as siderurgias, não ameaçaram populações inteiras, nem o planeta no seu todo. Por outro lado, as formas contemporâneas de degradação do ambiente “não estão limitadas em termos de espaço ao âmbito do seu impacto, nem estão confinadas em termos sociais a determinadas comunidades. São potencialmente globais no âmbito do seu alcance”.

A nossa civilização passa por uma crise na esfera econômica e ambiental. A constatação de que os recursos naturais da Terra estão escassos, tanto na economia quanto na natureza comprova a necessidade de se adotarem políticas globais orientadas para um desenvolvimento sustentável, devendo-se ter em conta a dimensão social, econômica e ambiental como objetivos

estatais. A partir de tal premissa, Leff126afirma que a economia de mercado e o aproveitamento

sustentável dos recursos e avanços tecnológico-científicos exigem estratégias políticas orientadas à solução da problemática ambiental e à geração de um desenvolvimento sustentável, fundado num aproveitamento integrado de recursos; acrescenta que as referidas políticas requerem uma análise teórica das causas profundas das crises do capital e de suas próprias estratégias.

Nesse contexto, os novos desafios globais postos nas relações entre a sociedade e a natureza, apresentam-se de forma dinâmica e complexa. Exigem, no atual estágio de degradação ambiental, o comprometimento efetivo de todos – Estado e sociedade – na tutela do meio

ambiente. Nesta perspectiva, Leite e Ayala127 defendem à noção de um Estado de Direito

Ambiental. Segundo eles, em linhas gerais, o Estado de Direito Ambiental pode ser compreendido como produto de novas reivindicações fundamentais do ser humano e particularizado pela ênfase

que confere à proteção do meio ambiente. Conforme Leite e Ayala128, a proliferação de ameaças

imprevisíveis e invisíveis, proveniente do fenômeno da inovação e desenvolvimento tecnológico produzem consequências que expõem a sociedade contemporânea a situações de risco. Os

125

GOLDBLATT, Op. Cit., p. 231-232.

126

LEFF, Epistemologia ambiental, Op. Cit., p. 63.

127

LEITE; AYALA, Dano ambiental, Op. Cit., p. 38.

128

LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 12-18. Os autores supra-citados trabalham o conceito de risco nas sociedades contemporâneas a partir de Beck e De Giorgi, segundo o qual “nas sociedades contemporâneas não há mais condições de representação com certeza e segurança. Qualquer esforço nesse sentido seria dedutível em termos de uma descrição apenas simplificada de uma provável ou possível sociedade”(...). DE GIORGI, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea. In: Revista Seqüência – Revista do Curso de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, ano 15, nº 28, jun. 1994, ps. 45-47. BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo. Tradução de Jorge Navarro, Daniel Jiménez, Maria Rosa Borrás. Madri: Paidós, 1998 apud LEITE; AYALA, Direito Ambiental na Sociedade de Risco, Op. Cit., p. 14-15.

instrumentos de controle desses novos problemas falham e são incapazes de prevê-los e, principalmente, de gerar segurança ao cidadão e controlar as contingências.

Ao discorrer sobre o tema, Belchior129 aponta que é a crise ambiental que ora se enfrenta

em razão do processo da civilização hodierna, vinculado à globalização, ao desenvolvimento em todas as esferas e à sociedade de risco que de fato marca a passagem para o Estado de Direito Ambiental. Conforme refere, é imprescindível um meio ambiente sadio como condição para que exista a vida. “Se não existir um meio ambiente sadio, não há vida”.

Ao longo do século XX, a sociedade assistiu sob o quadro do ordenamento jurídico brasileiro a atuação do Estado e das suas diversas formas de ideologias. Enquanto na ideologia liberal seu pressuposto fundamental é o máximo de bem-estar com o mínimo possível da presença

do Estado, já na ideologia socialista,130 por sua vez, o Estado assume o papel central da atividade

econômica na sociedade. Seus pressupostos, enquanto cumpridores das necessidades e expectativas individuais e sociais, era a garantia de segurança e bem-estar coletivo – o que inclui um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado – para todos os cidadãos.

Tanto as ideologias liberais como as socialistas não souberam lidar com a crise ambiental

como acentua Leite e Ayala,131 considerando que ambos, o capitalismo industrialista, no primeiro

caso, e o coletivismo industrialista, no segundo, puseram em prática um modelo industrial agressivo aos valores ambientais da comunidade. Com efeito, a degradação ambiental e a crise social ambiental no atual quadro contemporâneo é fruto de uma visão clássica de desenvolvimento e crescimento econômico experimentados em um industrialismo totalmente agressivo aos recursos naturais. A promessa de bem-estar e melhor qualidade de vida para todos não foi cumprida como decorrência do modelo da revolução industrial. O Estado de bem-estar não cumpriu aquilo que

prometeu.132

Diante de tais considerações, a proteção do meio ambiente manifesta-se como um dos valores constitucionais mais relevantes a serem tutelados e incorporados como tarefa do novo modelo estatal, ou seja, o Estado Socioambiental de Direito. É um dos novos desafios impostos

pela sociedade de risco, referida por Beck,133 diz respeito à dignidade da pessoa humana, a uma

129

BELCHIOR, Op. Cit., p. 117.

130

Na lição de Bonavides, “O Estado Social, por sua própria natureza, é um Estado intervencionista, que requer sempre a presença militante do poder político nas esferas sociais, onde cresceu a dependência do indivíduo, pela impossibilidade em que este se acha, perante fatores alheios à sua vontade, de prover certas necessidades existenciais mínimas. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 200.

131

LEITE; AYALA, Dano ambiental, Op. Cit., p. 26.

132

Idem, p. 26-27.

133

vida digna e saudável e a responsabilidade que o Estado assume de evitar a degradação ambiental sob o ponto de vista ecológico e social.

Nesse sentido, Fensterseifer134 esclarece que o processo histórico, cultural, econômico,

político e social gestado ao longo do século XX determinou o momento que se vivencia hoje no plano jurídico-constitucional, marcando a passagem do Estado Liberal ao Estado Social e chegando-se ao Estado Socioambiental, também Constitucional e Democrático, que, segundo o autor, a proteção do meio ambiente surge como um dos direitos de natureza transindividual, seu exemplo mais expressivo na ordem jurídico-constitucional presente.

Com efeito, especialmente sobre o dever estatal de tutela (deveres de proteção) referente ao dever do Estado de proteger ativamente o direito fundamental (ambiental), Dimoulis e

Martins,135 à luz da dogmática e da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão

afirmam que os deveres de proteção foram identificados na hipótese em que ao Estado é conferido a observância de fomentar a segurança, proteger e de tomar medidas que visem prevenir riscos e perigos relativamente ao desenvolvimento tecnológico, uma vez que compromete uma série de direitos fundamentais como a vida, saúde e ao equilíbrio ambiental.

Nessa perspectiva, torna-se necessário o enfrentamento das novas ameaças e riscos postos pela sociedade e a observância do Estado contemporâneo de se adequar ou remodelar-se a cada contexto histórico-político e social, com vistas à proteção do meio ambiente tal como contemplada na ordem constitucional brasileira. No entanto, essa forma do Estado se adequar as novas ameaças e crises no horizonte das sociedades contemporâneas, ou melhor, uma sociedade complexa e de risco, constitui um desafio ao próprio Estado e também ao próprio ordenamento jurídico; é importante mencionar que, não somente o Estado, mas também o Direito, especialmente o Direito Constitucional, necessita de instrumentos eficazes que possam dar conta da diversidade ideológico-político-social, com interesses diversos.

Nesse ínterim, a ideia de uma sociedade pluralista (pluralismo jurídico)136 e de uma

democracia é suficiente para demonstrar à extrema tensão das normas constitucionais, uma vez que envolvem direitos e interesses fundamentais em jogo.

134

FENSTERSEIFER,Op. Cit., p. 96.

135

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos direitos fundamentais. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012, p. 114-116.

136

WOLMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: um espaço de resistência na construção de direitos humanos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; VERAS NETO, Francisco Q.; LIXA, Ivone M. (orgs.). Pluralismo Jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 37.

2.2 ESTADO LIBERAL DE DIREITO: LIBERDADE INDIVIDUAL, SEGURANÇA JURÍDICA

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