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2.3 O “excecionalismo” do Norte de África e Médio Oriente: um mito ou uma verdade necessária?

A evolução da transitologia foi permanecendo confortavelmente distanciada do NAMO. Este distanciamento contribuiu para reforçar o isolamento da região. Foi enfatizado um excecionalismo por via da aplicação de uma transitologia invertida. Em vez de se estudarem as causas da falta de desenvolvimentos democráticos visíveis na região, os estudos haviam- se centrado nas lógicas regionais que poderiam explicar a permanência, resistência e até reforço dos regimes autoritários. A urgência de uma mudança antes de acontecer, na prática, fez-se sentir entre os especialistas.

(…) [E]m vez de olhar para o Médio Oriente como uma região que não é igual a nenhuma outra e que segue as suas lógicas islâmicas e árabes excecionais, o desafio dos estudiosos dos estudos de área era demonstrar como era a ‘sua’ região, aplicando-lhe as mesmas lógicas globais aplicadas a todas as outras (Valbjørn e Bank, 2010, 185).

A verdade é que uma vaga de democratização começou e ninguém, nem os estudiosos da região, a conseguiram prever. Focados em explicar a estabilidade das autocracias locais foram subestimando as forças de mudança. Apesar de os regimes árabes serem profundamente impopulares e enfrentarem problemas demográficos, económicos e políticos sérios, estava instalada a ideia de uma anormalidade ao se mostrarem imunes às vagas democráticas que iam alastrando, com mais ou menos sucesso, noutros locais. E a razão era a de que não se deveria encorajar a democracia para garantir a estabilização e a cooperação com os interesses ocidentais na região (Gregory Gause III, 2011). Esta argumentação da dupla retórica implícita nas políticas das potências ocidentais para a região, sendo suficientemente provocadora ou, pelo menos, inquietante, sempre foi

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efetivamente reconhecida, aceite e como que pacificamente ignorada pelos responsáveis políticos. O facto de não se ter antecipado o momento de levantamento da onda das revoltas árabes não significa que ao espírito atento dos especialistas não chegassem sinais de que esta estaria eminente.

Os movimentos de protesto árabes colocaram um desafio aos transitologistas obrigando-os a abrir a possibilidade do mundo árabe não ser, afinal, imune à democracia. É inegável que no Egito, na Líbia e na Tunísia, de forma mais ou menos atribulada, se iniciaram processos de transição democrática. A transitologia pode agora olhar para a região, reforçada pelo amplo debate académico que a enriqueceu e lhe deu uma visão mais alargada e abrangente. Questões como a irrepetível natureza dos processos democráticos, a incerteza, a agencialidade e o papel crescente dos atores externos voltam a assumir um papel de destaque na agenda académica e política.

A crescente exigência de democratização na região remonta aos anos 90. O choque sentido com a análise dos resultados desse movimento reforçou, junto dos mais cautelosos, a ideia do excecionalismo árabe: “os regimes autoritários podem adaptar-se a novas condições e, em especial, a sua liberalização política ou pluralização é, por razões estruturais; mais provavelmente se torna um substituto da democracia do que um estádio a caminho dela” (Hinnebusch, 2006, 374). E esta ideia, tendo sido questionada pelas movimentações que a Primavera árabe gerou, não poderá ainda, em rigor, ser completamente contrariada, até porque se tem vindo a confirmar nos países que não deram início a processos de transição democrática. E nos que a iniciaram, será ainda cedo para extrair conclusões definitivas, pois é necessário assegurar que nos países onde se derrubaram os líderes autoritários, se transita da própria transição.

Como em todas as transições, há transmissão (traditio) e destruição, continuidade e evolução, permanência e involução, caos e simulacros de nova ordem, regresso ao passado antes de ontem (…) e sonhos de um futuro tão distante que parece uma fantasia (Rogeiro, 2011,67).

Haverá de facto um excecionalismo árabe? Todos os regimes se querem legitimar, incluindo os não democráticos. A falta de legitimidade do regime de Mubarak no Egito foi-se tornando progressivamente incómoda. As contestações populares de 2002, 2003 e 2006,

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designadamente, impuseram ao regime a contínua procura de maior legitimação mas que não colocasse em perigo a sua manutenção no poder. Assim, adotaram-se medidas de liberalização que, ao invés de abrirem caminho para uma evolução democrática, tornaram o regime autoritário mais resistente. Mesmo os ditadores mais repressivos geralmente se dizem favoráveis, hoje em dia, ao legítimo direito do povo de participar no governo, i.e., de participar na “administração”, ainda que não na contestação pública (Dahl, 2005). O desaparecimento da negação total da participação política foi necessário como forma de legitimação, mas a participação mantinha-se a um nível virtual e não real. É esta configuração estrutural socioinstitucional que dá à região uma particularidade inegável.

Embora os regimes autoritários não sejam todos iguais, em regra, há no NAMO uma lógica muito semelhante subjacente aos seus regimes. A legitimação nas repúblicas e nas monarquias seguiu uma evolução inversa, mas há características intrínsecas semelhantes. Nas repúblicas, Hinnebusch classifica os regimes como do tipo autoritários populistas que vão evoluindo para uma fase posterior pós-populista.

2.3.1 - Rentismo

Os montantes elevados de rendimento que entram no estado (sejam dividendos do petróleo ou ajudas) são distribuídos em forma de emprego e benefícios sociais, o que torna as populações muito dependentes dos serviços do estado. Não tendo praticamente que pagar impostos, são como que desencorajados a uma mobilização contra esse mesmo estado. Em paralelo, o rentismo liga os interesses das elites ao exterior fazendo com que o exterior absorva também como que uma responsabilização no processo. A canalização de renda forma redes de clientelismo, o que tende a individualizar a ação política à medida que os atores procuram ganhos pessoais através de relações privilegiadas com o poder, fragmentando o potencial de ação de classe necessário à democratização (Hinnebusch, 2006).

2.3.2 - Populismo

Os regimes autoritários populistas surgem inicialmente a partir de golpes revolucionários de origem popular contra as oligarquias cosmopolitas no poder logo a seguir à independência, tuteladas pelo Ocidente. Incorporam a classe média e baixa, implementando reformas

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socioeconómicas que dão aos trabalhadores, por via de um contrato social, benefícios em troca do seu apoio político, o que contribui para a inclusão. Jogam a cartada do nacionalismo contra o Ocidente e Israel, o que lhes dá legitimidade nacionalista (a união nacional em face de uma ameaça externa) embora não democrática. Mantêm fiáveis instrumentos de repressão que visam assegurar a sobrevivência do regime em tempos de crise. Vão-se consolidando estruturalmente através da organização militar (criação progressiva das múltiplas alas dos serviços de segurança –Mukhabarat - ao que não será alheia a falta de confiança nas linhas de comando militar)7 e burocrática, tendo em vista a manutenção da ordem mediante uma vigilância apertada que permitia reprimir quaisquer focos de rebelião ativos. Um sistema de partido único penetra todos os setores da sociedade, incorporando o próprio eleitorado. Foi criada, assim, uma combinação de aspetos estruturais resistentes à democratização: liderança personalizada, partido único e exército politizado (Hinnebusch, 2006). Poderá dizer-se que estes regimes incluem um pluralismo limitado e uma inclusão parcial limitada pelas elites. A própria lógica do autoritarismo suprime a competição incluindo algumas forças sociais para excluir outras, numa teia que incorpora uma participação limitada. A mobilização em nome de identidades que transcendem o estado (arabismo, islão) privam o regime de coesão, dando às elites um incentivo para restringir a participação.

Regionalmente, a guerra e a sua preparação legitimaram os imperativos nacionais de segurança e o papel excecional dos militares, reduzindo a contestação, para o que também contribuiu a mobilização nacionalista dos cidadãos – soldados, facilitando uma certa inclusão. No entanto, os seus custos motivaram impostos urgentes, diluindo esta vertente inclusiva da guerra. As políticas externas anti-imperialistas dos regimes acabam por conduzi-los a derrotas militares que aprofundam a crise económica. Os hegemónicos EUA utilizam esta crise para dar assistência, seduzir e reduzir o regime populista pivô, o Egito, a uma nova dependência (Hinnebusch, 2010).

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Só no contexto de uma mais ampla reconstrução do regime é que se assegurou a “total” confiança das forças de segurança, quer através da penetração do exército pelo partido, quer através do recrutamento no seio dos grupos de confiança e por força da lógica da legitimidade nacionalista derivada da luta contra os inimigos externos (Hinnebusch, 2006). De facto, por ocasião da “guerra fria” no Médio Oriente, após os golpes dos anos 50 e 60, foi construída pelos líderes árabes uma teia institucional de forças militares rivais, com o objetivo de criar sistemas de vigilância mútua, o que permitiu o reforço mas também o controlo das gigantescas forças militares, tão necessárias para a repressão dos protestos populares, que embora, pouco divulgados, ou menos expressivos, sempre existiram.

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Assim que o autoritarismo populista se esgota, a maioria dos países NAMO iniciaram a sua reintegração na economia capitalista mundial (infitah), procurando capital estrangeiro e privado. Querendo proporcionar um clima de investimento favorável e assegurar competitividade às suas exportações, os regimes desistem do populismo inicial. Baixam salários e diminuem os direitos dos trabalhadores, evoluindo para uma versão pós-populista do autoritarismo (Hinnebusch, 2010).

2.3.3 - Pós-populismo

O aumento do preço do petróleo nos anos 70 altera o equilíbrio regional a favor das monarquias e facilita a convergência no sentido de um neopatrimonialismo. As repúblicas tornam-se menos inclusivas à medida que vão adotando práticas discriminatórias de recrutamento das elites e as monarquias rendeiras tornam-se progressivamente mais inclusivas, através de uma assistência e aproximação à classe média pela distribuição de dividendos. Esta maior convergência foi proporcionada pelo abandono pelas repúblicas dos seus pressupostos políticos radicais. De acordo com Hinnebusch, a consolidação do regime ditou uma estratégia neomercantilista, em que o setor público é utilizado para aliar a classe média; o patrocínio e a corrupção são utilizados para assegurar a lealdade das elites; as massas são pacificadas com alguns benefícios sociais. O sistema da substituição das importações levou posteriormente a estratégias viradas para a exportação e, quando os regimes dependentes dos dividendos do petróleo entraram em dívida, com a queda dos preços, as instituições financeiras internacionais impõem-lhes ajustamentos neoliberais. Mesmo sabendo que as elites irão resistir a qualquer alteração da provada fórmula do autoritarismo populista, o regime estará sempre sujeito a pressões - crises económicas e globalização – e terá necessariamente que se ajustar às mudanças, conformando-se com os ditames do mercado mundial capitalista. O crescimento económico não havia acompanhado a explosão populacional que os próprios programas sociais encorajaram, o que torna os regimes mais vulneráveis a estas pressões, internas e externas. A nova política da infitah faz do setor privado o novo motor de sobrevivência do regime, compensando a estagnação do setor público e gerando uma nova burguesia ligada ao regime (Hinnebusch, 2006). A elite governativa utilizou o seu controlo da economia para o enriquecimento privado e para a procura de alternativas de negócios, enquanto os novos capitalistas do setor privado permaneciam dependentes dos dividendos do estado para obterem essas oportunidades, procurando criar redes entre si, o que gera o fenómeno do capitalismo de compadrio.

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Todo este contexto teria inevitavelmente custos para a legitimidade do regime dada a assumida postura pró-israelita e anti-islâmica das políticas americanas. O sistema judicial foi capacitado para defender um estado de direito seletivo dando ênfase à proteção dos direitos de propriedade em detrimento dos dissidentes políticos. Longe de ser um primeiro passo de democratização, uma certa abertura e a liberalização aprofundaram os obstáculos para atingi-la. A principal oposição, os movimentos islâmicos, que tentavam substituir a ausência dos benefícios sociais e apoiar as vítimas da liberalização económica, não podiam ser incluídos politicamente sem o reverso da mudança de curso de aproximação dos regimes pós-populistas ao Ocidente (Hinnebusch, 2010).