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FONTE: Partitura transcrita por Jovino

Para a verificação de possibilidades da combinação das vias utilizadas nos instrumentos que compõem a bateria, foram consideradas mudanças referentes a inversão gradual da configuração do set de bateria de Bahia de destro para canhoto. Tais mudanças ocorreram devido a dificuldades encontradas no decorrer de sua atuação no Hermeto e Grupo, conforme o mesmo relata:

Sou canhoto nato, mas aprendi a tocar batera como destro. As dificuldades começaram aaparecer depois que entrei para o grupo do Hermeto. Os shows eram muito longos, com andamentos muito rápidos, então comecei a sentir que eu fazia tudo com a mão mais fraca.(BAHIA apud MARINHO, 2000, p.20).

A partir destas dificuldades, Marcio sente a necessidade de experimentar maneiras mais confortáveis de tocar este repertório e inicia um processo gradual da inversão da configuração do seu set em busca de sua naturalidade psicomotora. A primeira providência foi adicionar mais um prato de condução ao seu set, porém no lado esquerdo para que deste modo ficasse mais confortável realizar a inversão das conduções tocadas com a mão direita para a mão esquerda. Para exemplificar este processo, optou-se pela utilização da representação gráfica da visão panorâmica de um jazz set tradicional.

Figura 53 – set de bateria de Marcio para destro

FONTE: Marinho (2000) , desenho do autor

Figura 54 – set de bateria de Marcio para destro com prato de condução no lado esquerdo

FONTE: Marinho (2000), desenho do autor

Após estudar diariamente durante quatro meses esta proposta de inversão de condução das mãos, Marcio tocou com este novo set de bateria de 1987 até 1990, ano que decidiu retirar seu prato de condução do lado direito, por não sentir mais necessidade de conduzir com a mão direita. A partir disto, surgiu a ideia de inverte todo seu set de destro para canhoto.

Bumbo Surdo Tom Prato ataque Prato condução Chim -bal Caixa Bumbo Surdo Tom Prato ataque Prato condução 1 Chim -bal Caixa Prato condução 2

Figura 55 – set de bateria de Marcio invertido para canhoto

FONTE: Marinho (2000) , desenho do autor

Entretanto, as dificuldades encontradas no processo de inversão dos pés remeteram a questões distintas que foram além das dificuldades encontradas no processo de inversão das mãos, como o próprio relata:

Você trocar as mãos é um pouco mais simples. Trocar os pés é muito complicado. Porque agente lida com coordenação e condicionamento. Você condiciona o seu cérebro e você coordena os seus movimentos com isso. São movimentos coordenados e condicionados. Então de repente o que era “bum” virou “tchi” e o que era “tchi” virou “bum”. Além da mudança do tato dos pedais ser completamente diferente tocar dois pratos do que um bumbo com uma pele. Além da diferença tímbrica, tem toda a coordenação envolvida. Você tem que começar do zero. (BAHIA, 18/ 07/ 2012).

A partir deste relato, percebe-se que a disposição das combinações entre as vias utilizadas na orquestração dos toques simples e duplos presentes na maior parte da bateria de “Mestre Radamés”, conforme exemplificado na partitura 10 e também presente em parte do repertório do Hermeto e Grupo, foram modificadas por Marcio no decorrer de sua atuação.

Para visualizarmos algumas sugestões de práticas de coordenação simultânea das vias em seu estudo de orquestração na bateria, será proposto a verificação das correspondências que são frequentes em “Mestre Radamés” entre bumbo e prato de condução e entre caixa e chimbal tocado com o pé, que neste trabalho chamarei de marcação. Desta maneira, durante o período em que Marcio usou a configuração de seu set somente como destro, os toques simultâneos entre bumbo e prato de condução poderiam ocorrer com maior frequência nas vias laterais direita e entre a marcação e a caixa nas vias laterais esquerda. No período em que passou a conduzir com a mão esquerda, esta orquestração poderia ter sido tocada em maior parte pelas vias cruzadas. Após ter mudado seu set totalmente para canhoto, consequentemente poderia ter ocorrido a inversão do primeiro quadro de orquestração, onde os toques simultâneos entre bumbo e prato de condução seriam mais tocados pelas vias

Bumbo Surdo Tom Prato ataque Prato condução Chim -bal Caixa

laterais esquerda e entre a marcação e a caixa pelas vias laterais direita. Abaixo, baseado nas representações de Motta (1997), seguem as ilustrações destas orquestrações.

Figura 56 – exemplo de orquestração no set destro ME Caixa Prato MD

PE Chimbal Bumbo PD FONTE: Motta (1997), desenho do

autor

Figura 57 – exemplo de orquestração no set destro com

prato de condução no lado esquerdo

ME Prato Caixa MD

PE Chimbal Bumbo PD FONTE: Motta (1997), desenho do

autor

Figura 58 – exemplo de orquestração no set canhoto ME Prato Caixa MD

PE Bumbo Chimbal PD FONTE: Motta (1997), desenho do

autor

2.6 A RELAÇÃO DO COMPOSITOR HERMETO COM O INTÉRPRETE BAHIA

Entre os fatores constituintes da performance de bateria de Marcio Bahia que envolveram a presença central de Hermeto no período em que se concentra a análise da produção musical desta pesquisa, demonstram-se como determinantes em sua aprendizagem musical os processos de criação, de composição e de interpretação. Conforme Marcio relata em uma das entrevista realizadas para esta pesquisa:

O Hermeto sentava na batera, tocava as batidas pra mim e eu anotava. Depois eu tocava. Ele que criou isso. (...) Ele tocava e eu escrevia ou ele já vinha com tudo escrito. (...) Ele ia criando. Ele ia ouvindo, tocando e eu escrevia. Geralmente ele deixava a bateria por ultimo. Quando a música estava “pronta”, ele botava a batera por último.” (BAHIA, 21/ 06/ 2012).

A partir deste relato constata-se que o processo de criação e composição ocorria com mais frequência de duas maneiras. Na primeira Hermeto sugeria uma ideia inicial de levada de bateria, geralmente pré-estabelecida e fundamentada nos arranjos já compostos dos demais instrumentos que inteiravam a música. Em seguida, desenvolvia esta ideia por meio de testes de frases e levadas improvisadas, as quais na medida que se estabeleciam como parte integrante do arranjo de bateria eram transcritas por Marcio Bahia. Na outra maneira, o trabalho de transcrição já era realizado previamente pelo próprio Hermeto.

Após o término do registro dos eventos sonoros da bateria na partitura, Marcio estudava as anotações dedicadamente até que considerasse seu desempenho confortável o suficiente para ensaiar junto aos outros integrantes.

Entretanto, o espaço da partitura se constituía para além de uma contribuição da reprodução “meramente estática” representada pelo músico por meio de uma transcrição e/ou interpretação da notação resultante do processo criativo do compositor. A aplicação dos conceitos acima tomam mais forma a partir da descrição de Lima Neto (1999) sobre o desenvolvimento gradual da participação dos músicos no processo criativo do grupo e no nível de interpretação das ideias expostas nos arranjos musicais concebidos por Hermeto.

de disco em disco, os músicos da banda de Hermeto adquiriram liberdade para interpretar as partes escritas por Hermeto como se fossem elas mesmas, solos. Assim, a interpretação individual se integrava organicamente a uma estrutura musical coesa, mas ao mesmo tempo aberta e permeável à contribuição de cada músico (...) Podemos pensar que sempre houve espaço para a criação individual na banda de Hermeto também no que diz respeito aos arranjos das músicas. Como as partituras revelam, há sempre um maior ou menor grau de criação dos músicos nas composições de Hermeto. Em determinados trechos das partes, há somente a indicação de um estilo (frevo, baião, marcha, etc.), cujas levadas e desenhos rítmicos seriam criados à vontade do baterista. (LIMA NETO 1999, p. 68, 69,70).

Desta maneira, os diferentes graus de participação no processo criativo- composicional ocorreram por meio de uma menor ou maior liberdade interpretativa concedida na partitura e expressa na performance de Marcio. Neste sentido, nos momentos de menor liberdade interpretativa, ou seja, em que determinado trecho da partitura apresentasse dados que possibilitassem uma interpretação mais precisa o possível do que estava escrito, concedia-se ao baterista realizar pequenas alterações interpretativas em relação as escritas das partituras, compreendidas como rearranjos sutis que não resultassem em ideias musicais audíveis não identificáveis na leitura das notações. Para exemplificar esta situação de menor liberdade interpretativa, será utilizada a música “Mestre Radamés” (1983) devido a viabilidade que ela apresenta para a abertura deste e de outros fatores que serão abordados mais a frente. Para a análise foram utilizadas a partitura escrita por Hermeto, a partitura editada por Jovino Santos Neto, a apreciação do áudio e a posterior prática na bateria realizada pelo autor deste trabalho.

Inicialmente lançado o foco nos instrumentos do set de bateria tocados apenas pelas mãos, a partitura escrita por Hermeto apresenta no primeiro tempo do compasso da voz do chimbal, um grupo rítmico composto por quatro semicolcheias, sendo que a primeira e a terceira possuem ligaduras. Conforme a transcrição realizada através da apreciação do áudio e

posterior reprodução na bateria, a primeira nota deste grupo é tocada com a baqueta nos pratos de choque que são abertos pelo pé ao soltar o pedal da máquina de chimbal e que em seguida aperta-o novamente para fechar os pratos no momento em que se toca a segunda nota. Esta técnica que é repetida a cada duas semicolcheias representa as ligaduras. Já na voz da caixa, o grupo rítmico é representado pela segunda e quarta semicolcheias com as hastes ligadas nas respectivas notas do grupo rítmico da voz do chimbal, que formam um padrão rítmico que se repete pelos sete tempos do compasso. Porém, a ausência da voz da caixa na gravação e na partitura editada por Jovino após o lançamento do álbum, demonstra uma sutil alteração na interpretação das partes escritas por Hermeto, que é compreendida aqui como uma participação com menor liberdade interpretativa no processo criativo-composicional. A seguir as três diferentes notações da introdução de bateria de “Mestre Radamés” conforme relatado a cima.