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Expansão educacional, políticas públicas e interpretação das trajetórias de

Os estudos apresentados a seguir reúnem vários aspectos já estudados anteriormente, demonstrando que definitivamente, o desempenho do estudante pobre no sistema superior está relacionado a múltiplos fatores, como família, renda ou mentalidade (motivação pessoal), entre outros. Sabemos, no entanto, que o papel da escola, do ambiente escolar e do professor e/ou daqueles que atuam mais diretamente com o aluno fora desse ambiente também não podem ser descartados, pois são necessários para a materialização e compreensão do fenômeno.

Nierotka e Trevisol (2016), nesse sentido, entendem que as políticas de ampliação de acesso à educação superior são decisivas para a transformação da sociedade, sobretudo quando beneficia os meios populares. Visando conhecer melhor os indicadores que estimulam essa mudança, os autores realizaram um estudo sobre os estudantes das camadas populares matriculados na universidade pública a partir da experiência da Universidade da Fronteira Sul (UFFS). Esse estudo é exemplar da tendência atual da pesquisa em educação que busca explicar o desenvolvimento de novos atores e profissionais com base no desenvolvimento da estrutura educacional e das políticas assistenciais de educação colocadas à sua disposição das classes populares.

No caso da UFFS, os autores entendem que os reflexos da ação governamental e da política das cotas raciais/sociais mudou a realidade da instituição. Na interpretação dos autores, a partir dessa política, tivemos uma rápida transformação da estrutura universitária e, com isso, a mudança do perfil dos estudantes que ingressaram na universidade pública federal. Seus dados mostram que, dos estudantes matriculados na UFFS em 2016 e que fazem parte da amostra da pesquisa, 97,4% eram egressos do ensino médio público e 69,3% tinham famílias com renda média de até três salários mínimos. De acordo com os autores, a UFFS, que foi criada com recursos do Reuni foi motivada a (re)pensar novas formas de inclusão e de transformação de sua estrutura acadêmica, aproximando-se das necessidades da comunidade através: i. da adesão ao Sisu para todos os cursos de graduação (inclusive para os mais concorridos); ii) da

implementação de políticas afirmativas para estudantes indígenas e haitianos; iii) do acesso a servidores e estudantes portadores de deficiência (NIEROTKA; TREVISOL, 2016, p.18).

Trata-se, portanto, de estudantes trabalhadores, com origem em famílias de renda baixa, situados entre a classe D e E, e que necessitam de financiamento público para poder dar continuidade aos estudos superiores. Veremos que a escolaridade dos pais é baixa (4,9%), ao passo que das mães é um pouco melhor (7,9%), sendo estas bastante participativas na vida dos filhos, notadamente nos quesitos escolares. Em relação à escolha do curso, os dados levantados revelam que os alunos matriculados na UFFS de origem popular procuram pelos cursos menos concorridos (Ciências Sociais, Educação, Enfermagem, Agronomia). O insucesso escolar aparece, portanto, como um problema recorrente entre os estudantes de origem popular matriculados na UFFS. A falta de uma pedagogia universitária mais atenta às especificidades desse universo juvenil faz com que esses estudantes se mostrem inseguros em relação ao curso escolhido e a seu futuro profissional. Assim, na interpretação dos autores, as políticas afirmativas da gestão Lula (2003-2010) tiveram o mérito de encurtar a distância entre a universalização formal e as condições individuais de acesso à educação, no entanto não as eliminaram completamente. Isso é visto, por exemplo, no fato de que a UFFS se vê impotente em relação à permanência dos estudantes de origem popular nos cursos mais disputados e de maior prestígio, tendo em vista que os custos desses cursos são mais elevados e demandam do estudante maiores investimentos.

Por fim, o trabalho de Santos (2009, 2017) a respeito do acesso e da permanência de estudantes de origem popular do curso de Saúde na Universidade do Recôncavo Baiano é bastante ilustrativo e atual, pois aborda uma área científica onde a entrada do estudante de origem popular é tida como muito pouco provável: a Medicina. Além disso, essa autora realizou sua pesquisa em uma região predominantemente negra, tendo como pressuposto o fato de esses estudantes sofrerem discriminações por conta de sua origem racial e da localização geográfica onde vivem. Mais precisamente, seu estudo abarca os estudantes negros nascidos nas regiões com pouco investimento social ou distantes dos grandes centros urbanos, elementos geográficos determinantes para a

exclusão de muitos estudantes e que confirmam a forma desigual como certos grupos sociais são tratados no Brasil.

O interesse em estudá-los está no fato de que essa situação de desigualdade racial começou a mudar em função das políticas afirmativas (cotas, bolsas, financiamentos, etc.) que deram ao estudante de origem popular negro as condições para poder se desenvolver academicamente em uma área onde é possível encontrar estudantes seis vezes mais ricos do que a média da população nacional. Como os cursos de Medicina são muito elitizados, nessa região do país, o acesso a essa formação é apenas uma parte dos desafios que o estudante negro da periferia tem de enfrentar, sobretudo aquele que não possui tradição, renda e experiência universitária na família. Por outro lado, o valor simbólico de passar em um curso com as características da Medicina eleva o status dessa pessoa dentro da comunidade, fazendo com que sejam vistos como referência para os demais jovens, portanto, um mérito que legitima sua distinção. Para Santos (op cit., p. 35), trata-se de trajetórias de sucesso que constituem um “caminho possível” de mudança e de inclusão social particularmente no caso dos estudantes negros do Recôncavo baiano.

A autora argumenta que esses estudantes adotam essa estratégia porque é difícil para o estudante negro se impor como um igual, tendo em vista que os cursos de Medicina são espaços de contraste e de grande competição por notas e menções honrosas. Para os estudantes que ingressaram no contexto atual, o das políticas e cotas de ações afirmativas, essa realidade não é um entrave e parece poder ser superada paulatinamente, na medida em que, através da iniciativa do Estado, veem suas chances de equidade aumentarem. Desse modo, mesmo que muitos possam se envaidecer ou se sentir seduzidos pelos modelos de comportamento dominantes, o que os distanciaria de suas origens, isso não é uma tendência. Sua conclusão é de que a permanência desses estudantes em cursos como a Medicina, bem como a superação da situação de excepcionalidade dependem, essencialmente, de uma distribuição equitativa das oportunidades educacionais, o que passa, por sua vez, por iniciativas que deem a eles o suporte necessário para que consigam concluir sua formação, tais como: bolsas, restaurantes universitários, residência estudantil, entre outros benefícios, como expõe o autor (SANTOS, 2017, p. 48).

Essas pesquisas nos revelam, enfim, a complexidade e as consequências da expansão universitária no Brasil e a situação dos grupos de origem popular, que, mesmo quando beneficiados pela ação pública, acabam tendo de lidar com o desconforto de sua excepcionalidade tanto junto à sua comunidade de origem quanto dentro da instituição universitária. Essa realidade nos mostra, entre outras coisas, que o sistema de educação superior nacional não consegue atender as demandas desse estudante, vítima de um tipo de exclusão econômica, social, cultural e educacional – historicamente enraizada em nossa sociedade – que os acompanha desde o nascimento, e cujo processo de transformação exige tempo e reflexão dos gestores e pesquisadores do ensino superior.

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