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CAPÍTULO I – MUTAÇÕES DO TRABALHO SUBORDINADO NO SETOR

1. DA SUBORDINAÇÃO COMO PILAR CENTRAL SOBRE O QUAL SE ERIGE O

1.3. Expansão subjetiva: condição salarial e Direito do Trabalho

1.3. Expansão subjetiva: condição salarial e Direito do Trabalho

A situação de identidade entre a legislação e a situação específica a que ela se dirige vai se esgotar ao longo do século XX, o que será certamente o maior triunfo do agora chamado Direito do Trabalho e, ao mesmo tempo, sua maior fraqueza. Debilidade esta que demorará muitos anos para ser sentida, ao menos até a crise da sociedade salarial, que atingirá até mesmo os países onde se imaginava que a social-democracia seria uma conquista humanitária irrevogável.

45 CASTEL, op. cit., p. 450.

Castel identifica essa transição, no caso francês, com o período de grande esperança instaurado pela vitória do Front Populaire. Neste momento, a vanguarda operária que promoveria o movimento de ocupação de fábricas ainda é forjada pelo taylorismo.

As condições de trabalho nas fábricas ocupadas em junho de 1936 são geralmente comandadas pela

‘organização científica do trabalho’, ou por seus equivalentes: as cadências, a cronometragem, a vigilância constante, a obsessão de ser produtivo, a arbitrariedade dos patrões e o desprezo dos chefes de pequeno escalão. (...) Mas essa relação de trabalho não é comandada apenas pelas exigências tecnológicas da produção, da divisão das tarefas, da rapidez das cadências ... É uma relação social de subordinação e de privação da posse que se instala pela mediação da relação técnica de trabalho.46

Porém, ainda na década de 1930, haveria um grande processo de diferenciação na condição dos assalariados, importando em uma complexificação das formas de prestação de trabalho, bem como numa relativização progressiva do peso do operariado fabril urbano. Situação que se expressa no aumento do trabalho assalariado não operário. Trata-se da expansão do trabalho assalariado para o trabalho agrícola, para o setor de serviços, para a atividade dos profissionais liberais (médicos, advogados, engenheiros e professores) e também para os médios e altos escalões das empresas, inclusive com o assalariamento de gerentes. A condição operária se dissolve em uma condição salarial extremamente estratificada, composta inclusive pelos

“empregados de colarinho branco”, que buscam “beneficiar-se das vantagens sociais conquistadas pela classe operária, mas marcando a diferença em relação a ela.”47

Esta transição deu-se através um processo turbulento que resultou em uma considerável ampliação da incidência subjetiva do Direito do Trabalho. O quadro geral desse processo na realidade européia é assim descrito por Villalón:

Así, en primer lugar, la legislación laboral pasará a extender su ámbito de aplicación a sectores no estrictamente industriales, pretendiendo abarcar al trabajo en la agricultura; igualmente se producirá una expansión de su aplicación al sector de servicios, inicialmente a actividades más

‘obreras’ como el transporte y más adelante al resto de atividades del sector terciário. En segundo lugar, pasará de dirigirse exclusivamente a labores de carácter manual, para proceder a extenderse a trabajos de abstracción intelectual: inicialmente a trabajos de carácter administrativo con la inclusión de los empleados, más adelante en relación con trabajos de mayor cualificación profesional – técnicos – o de más cercana vinculación a la dirección de la empresa – cargos directivos -. En tercer lugar, de una situación fática de aplicación exclusiva a las zonas urbanas y a las empresas de mayores dimensiones, se tenderá a extenderlo al ámbito

46 CASTEL, op. cit., p. 441.

47 ibidem., p. 455.

rural y a unidades productivas de pequeñas dimensiones. En cuarto lugar, de estar centrado en prestaciones laborales donde rige una estricta ajenidad, sometimiento a las instrucciones de la empresa e integración plena en una organización ajena se pretenderá su extension a actividades más difusas en cuanto sus contornos. Finalmente, de encontrarse inicialmente centrado en la empresa privada, aparecerán ciertas tendencias de absorción parcial del sector público.48

Tal processo expansivo deu-se também no Brasil, ainda que não nos mesmos termos ou com a mesma cronologia, sendo a integração muitas vezes mitigada. De uma regulação que na República Velha se dirigia a aspectos pontuais das atividades fabris, como os acidentes de trabalho (Dec. nº 3.724 de 1919) ou o trabalho de menores (Decreto nº 5086 de 1926) passa-se, em 1943, com a CLT, a uma regulação muito mais ampla. A Consolidação ao definir o empregador, o faz de maneira abrangente e aberta, incorporando a empresa individual ou coletiva (CLT, art. 2º, caput), e não se fixando em nenhum formato específico de direito comercial.

Equipara ao empregador os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados (CLT, art. 2º, §1º), e não distingue espécies de emprego, nem trabalho intelectual, técnico ou manual (CLT, art. 3º, parágrafo único). Trata-se, portanto, de uma sistemática com razoável generalidade, capaz de abranger diversas formas de empresa e de prestação do trabalho.

Inclui em suas disposições desde o trabalho do operário fabril até o trabalho de gerentes, abrangendo trabalhadores do comércio, os antigos profissionais liberais e o trabalho em domicílio, em todos os casos, desde que sejam subordinados, mesmo que em graus diferentes.

Ainda que se admita que houve um grande salto de abstração e generalidade, não se deve esquecer do grande contingente de trabalhadores subordinados que restaram às margens do disposto na CLT. Trata-se dos trabalhadores rurais que foram deliberadamente excluídos da proteção ali esboçada (CLT, art. 7º, b)49 e que só com a Constituição de 1988 foram finalmente

49 A poesia de um sertanejo do interior de Pernambuco expressa essa situação com extrema simplicidade e beleza:

“Depois que as leis do trabaio/Duou dois dias de impaio/Um de folga a cada quém/Os Governos Brasilêro/Se esqueceram dos vaquero/Que são fios de Deus, também/ Dero ao trabaio da cidade/Segureza, livridade/E ganho dentro da lei/P`ros home bruto do mato/Sem gruvata e sem sapato/nenhuma vantage veio”. Transcrição retirada de SIGAUD, Lygia. O clandestinos e os direitos: estudos sobre trabalhadores da cana-de-açucar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 97.

equiparados aos trabalhadores urbanos (CF, art. 7º, caput); dos empregados domésticos, que até os dias atuais têm os direitos disciplinados por lei específica (Lei 5.859 de 1972), inclusive com restrição dos direitos fixada na Carta Magna (CF, art. 7º, parágrafo único); e, também, dos trabalhadores avulsos, que só com a Constituição de 1988 conseguiram a igualdade de direitos com os trabalhadores que mantém vínculo empregatício (CF, art. 7º, XXXIV). Há ainda o caso dos servidores regidos por estatuto próprio e sobre os quais não se dará mais atenção, por se tratar de situação à parte, com longas raízes históricas, em que os abrangidos possuem prerrogativas que excedem as do Direito do Trabalho.

Além disso, não se pode esquecer que mesmo nos casos teoricamente abrangidos pela CLT sempre houve no Brasil uma enorme disparidade entre o avançado arcabouço legislativo e a realidade. Lei promulgada nem sempre significa lei aplicada. Segadas Vianna, um dos idealizadores da CLT, explicou com clareza e cinismo essa situação quando disse que “a burguesia não acreditava que aquilo [CLT] fosse posto em prática. Achava que aquilo era mais – como de fato era um pouco – para efeito externo (...) para nos projetar também, dizendo que estávamos fazendo alguma coisa.”50 Situação que comparava-se em muito com o que ocorrera posteriormente na República Dominicana, em que fora aprovado um código do trabalho extremamente avançado, mas que dispunha na última cláusula que o governo o colocaria em execução quando julgasse conveniente.51

No entanto, apesar das diversas formas de trabalho subordinado excluídas da proteção trabalhista e também da falta de efetividade que acompanha a trajetória histórica da CLT, pode-se dizer que a Consolidação inovava ao agregar “situaciones extremadamente diversas, con el fin de delimitar un destinatario único de un tratamiento global unitário.”52 Além disso, deve-se ter em conta que apesar de todas as inconsistências e exclusões, por um longo período, que vai até a surto neoliberal dos anos noventa, há um processo de ampliação das situações sociais abrangidas pelo Direito do Trabalho.

Essa ampliação, no entanto, que foi certamente mais intensa na Europa, não deixa de guardar algumas ambigüidades, que irão demonstrar toda a sua pujança a partir da crise do

50 Depoimento de JOSÉ SEGADAS VIANNA apud FRENCH, Jonh. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Perseu Abramo, 2001, p. 44.

51 idem.

52 PIÑERO, Rodríguez; FERRER, Bravo, op. cit., p. 25.

“compromisso fordista” e da emergência do que alguns autores denominam sociedade pós-industrial. Pois ao mesmo tempo em que o Direito do Trabalho passa a regular novas realidades (gerentes, profissionais qualificados, trabalhadores em domicílio, etc.), a noção de subordinação como submissão à ordens do empregador vai perdendo força e capacidade explicativa, não conseguindo dar conta de tamanha heterogeneidade. O espaço de autonomia, por exemplo, de um profissional com qualificação superior regulado por estatuto próprio [Ex: Advogados53, Médicos54 e Engenheiros55], dificilmente se compatibiliza com os elementos referentes à hierarquia e vigilância que estruturam a subordinação em um contexto de trabalho industrial taylorista-fordista, pois se assim fosse, o empregador poderia se sobrepor inclusive aos compromissos ético-profissionais.

Porém, o fato é que a unidade conceitual atingida pelo Direito do Trabalho, por mais abstrata que fosse, estava ainda ancorada em um padrão de regulação societal taylorista-fordista.

Ainda que os anos dourados do pós-guerra europeu indicassem uma diversificação considerável das formas de prestação de trabalho, o taylorismo-fordismo ainda tinha forças para dar coerência às mais diversas esferas da vida social, integrando em sua sistemática sujeitos e formas de trabalho, que vistos sob um ângulo estrito, não seriam de sua alçada. A pluralidade fora de certa forma freada porque o sistema extrapolava as fábricas e era capaz de regular toda a dinâmica social; tinha-se, nos dizeres de Negri, “uma sociedade fábrica”56. O sistema produtivo extrapolava sua dimensão inicial e transformava-se em verdadeiro sistema social integrando novos elementos à sua dinâmica. O Direito do Trabalho foi, durante certo tempo, um exitoso agente dessa integração.

56 HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. O Império. São Paulo: Ed. Record, 2002, p. 264.

2. NOVAS FRONTEIRAS DO DIREITO DO TRABALHO E A AUTONOMIA DO