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CAPÍTULO I – MUTAÇÕES DO TRABALHO SUBORDINADO NO SETOR

2. NOVAS FRONTEIRAS DO DIREITO DO TRABALHO E A AUTONOMIA DO

2.2. Pequeno inventário do trabalho autônomo

A conceituação do que seja trabalho autônomo é quase sempre realizada pela via transversa. A própria necessidade de se caracterizar a autonomia é indissociável do surgimento de um ramo especial do Direito a ocupar-se do trabalho subordinado. Antes disso, falar em autonomia para qualificar uma relação de trabalho simplesmente não fazia sentido jurídico, pois carecia de qualquer caráter distintivo. Tal fato faz com o termo careça de uma definição legal precisa, englobando uma grande diversidade de situações e sendo, tal qual a subordinação, um termo relativamente vago.

Nesse sentido, as espécies de prestação de trabalho previstas no Código Civil Brasileiro de 1916 (locação de serviços e empreitada) não poderiam ser, no início de sua vigência, consideradas como trabalho autônomo. Só passaram a sê-lo após o ramo trabalhista monopolizar o tratamento específico de um determinado subconjunto de formas de prestação de trabalho: o trabalho subordinado. Coisa que ocorreu, de forma sistemática, somente com a CLT, embora alguns visionários como Morais, percebessem a necessidade de uma tutela diferenciada para os trabalhadores fabris já nos primórdios do século XX67.

O Código de 1916 simplesmente retomava a distinção de origem românica e reproduzida no Código de Napoleão entre locatio conductio operarum (locação de serviços) e locatio operis (empreitada). Na primeira delas estariam enquadradas diversas atividades, entre as quais a dos trabalhadores fabris, profissionais liberais e também parte do que hoje se reconhece por trabalho autônomo (com exceção da empreitada). Sua característica geral seria a permuta relativa ao gênero trabalho e não visando determinado resultado ou obra, como se daria na segunda hipótese, ou seja, a do contrato de empreitada.

É a CLT que vai promover a separação a partir da qual o Código Civil passa a disciplinar apenas o trabalho considerado genericamente como autônomo. Tal ocorrência reduz em grande parte a incidência do Código Civil de 1916, tanto no campo da locação de serviços quanto no caso da empreitada, já que é claramente sabido que o contrato por obra certa ou o pagamento por peça produzida não descaracteriza a possibilidade de se tratar de trabalho

67 MORAIS, Evaristo de, op. cit., p. 23-28.

subordinado. Quanto ao Novo Código Civil, pouco inova em tais matérias, alterando, entretanto, a denominação, que deixa de ser locação e passa a ser prestação de serviços.

Autonomia (auto nomos) é palavra que em sua etimologia traduz a noção de capacidade de elaborar suas próprias regras. O indivíduo autônomo é aquele que carrega consigo o ideal iluminista de autoregramento, sendo-lhe incita a noção de liberdade. São estas mesmas características que iluminam a delimitação do trabalho autônomo, embora não devam, porque circunscritas pelo direito, assumir um caráter absoluto. Nesse sentido, o trabalho autônomo seria aquele prestado por conta própria, assumindo o trabalhador os riscos de sua atividade, organizando a forma pelo qual será exercida a prestação (os aspectos referentes ao tempo, lugar e processos técnicos considerados adequados) e disponibilizando os meios técnicos e materiais necessários para efetivá-la68. Trata-se de uma situação em que o trabalhador preserva a “direção cotidiana sobre sua prestação de trabalho”69, o que não impede que haja algum grau de recomendação ou acompanhamento por parte do tomador do serviço.

No caso acima, depara-se novamente com as chamadas zonas cinzentas, em que é difícil saber até que ponto um tomador de serviços pode orientar a prestação sem que se configure um verdadeiro poder diretivo e, conseqüentemente, uma atividade subordinada. A doutrina costuma resolver tal questão por meio de uma análise da intensidade e continuidade das diretivas, o que não deixa de ser uma tarefa vaga e flexível em que a valoração do intérprete será certamente decisiva. Além disso, freqüentemente depara-se com situações em que, embora não se configurem os critérios tradicionais relativos à caracterização da subordinação, há outros fatores dignos de tutela, relacionados à situação de vulnerabilidade do trabalhador autônomo.

Como já dito em outra ocasião, ainda que a dependência econômica tenha sido o fato sociológico incontestável que deu origem à proteção dos trabalhadores nos primórdios da legislação laboral, posteriormente tal critério foi substituído por outro mais abstrato e genérico,

68 A posse por parte do prestador de material próprio e a assunção do risco não são critérios absolutos, embora possam ajudar na identificação do trabalho autônomo. Exemplos de situações contrárias, em que estes critérios não estão presentes ainda que continue havendo autonomia, estão na regulação legal da empreitada. O empreiteiro pode contribuir somente com o seu labor ou com este e os materiais (Novo Código Civil, art. 610) dependendo tal opção de disposição legal ou da vontade das partes. Quanto aos riscos, ainda no caso da empreitada, o Código deixa claro que quando o empreiteiro é responsável também pelos materiais a obra estará sob sua conta e risco até o momento da entrega (Novo Código Civil, art. 611). Porém, no caso do empreiteiro ter fornecido somente a mão-de-obra “todos os riscos em que não tiver culpa correrão por conta do dono” (Novo Código Civil, art. 612).

69 GODINHO, op. cit., p. 583.

qual seja, a subordinação jurídica. Porém, na atualidade, com a tendência de aumento da participação do trabalho autônomo no contingente total de prestação de trabalho em diversas sociedades70, inicia-se a discussão sobre um retorno ao critério da dependência econômica. Esta seria uma forma de equiparar ou possibilitar acesso a certos direitos no campo trabalhista e da seguridade social a trabalhadores que, ainda que não submetidos ao mando direto, possuem uma grande dependência econômica frente às empresas que compram seus serviços. Proposta muito pertinente em um tempo em que a sujeição do trabalho ao capital pode dar-se de forma indireta, porém, nem por isso menos drástica.

Iniciativas desse tipo, que já haviam sido usadas no passado em diversos países europeus para justificar a subordinação de trabalhadores do modelo pré-fordista (trabalhadores em domicílio, representantes comerciais e artesãos), passam a ganhar força com as novas formas de trabalho do modelo “pós-industrial” (teletrabalho, trabalho “virtual” em domicílio e diversas outras espécies, muitas vezes caracterizadas como autônomas, mas economicamente dependentes)71. Exemplos dessa tendência podem ser encontrados em Rank, professor alemão que considera que “a sujeição às ordens já não pode ser considerada como elemento caracterizador da condição de assalariado (...) mas sim a dependência econômica de um único empregador”72. Sua tese foi incorporada, algumas vezes, pelo Tribunal Federal da Alemanha e, também, pelo Tribunal do Trabalho de Nuremberg. As decisões abandonavam o critério tradicional de ordens diretas e inquiriam sobre o fato do trabalhador operar ou não como um empresário, com capital próprio e com riscos e oportunidades típicos daquele. Não ocorrendo tal situação, como no caso do empregado de seguros de serviço externo que “não operava no mercado com os seus capitais e organização próprios”73, a opção mais acertada seria considerá-lo assalariado74.

70 Baseando-se em dois relatórios sobre a expansão do trabalho não salariado na Europa (Promotion de l’emploi indépendant, Genève, 77º sessão da Conferência Internacional do Trabalho, relatório VII, 1990, quadro AI, p. 108 e L’emploi non salarié en Europe (1983/1994), SSL nº 768 de 20 de novembro de 1995, fonte Eurostat.) Supiot conclui que “a tendência geral pois não é, portanto, no sentido de aumento do trabalho independente, mas sim da estabilização, em relação ao emprego total. Esta estabilidade quantitativa esconde, porém, importantes evoluções qualitativas: o trabalho independente cresce no sector de serviços (principalmente dos serviços às empresas que, assim, externalizam algumas das suas funções), enquanto continua a decrescer o número de agricultores” (SUPIOT, op. cit., p. 23).

71 SUPIOT, op. cit., p. 37.

72 RANK, Rolf. Äbeitnehmer und Selbstantige, 1988 apud SUPIOT, op. cit., p. 37.

73 SUPIOT, op. cit., p. 38.

74 ibidem, p. 37-38.

As formas pelas quais o trabalho autônomo se apresenta na sociedade contemporânea são bem heterogêneas. No Brasil, além da disciplina genérica expressa no Código Civil (prestação de serviços e empreitada), há diversas outras possibilidades dispostas em legislação esparsa. Além disso, deve-se ressaltar que as matérias referentes à agência e distribuição, antes disciplinadas por meio de lei específica que regulava as atividades dos representantes comerciais autônomos (Lei 4.886/6575), passam a integrar o Novo Código (art. 710 a 721), permanecendo a antiga lei válida no que não contrariar a nova. Há, também, a situação referente ao transportador rodoviário autônomo (Lei 7.290 de 1984) e ainda, a hipótese em franca ascensão de prestação de trabalho autônomo por meio de pessoa jurídica, entre outras. Todas as situações citadas, embora se destinem a disciplinar o trabalho autônomo, podem ser afastadas frente pesquisa que demonstre a existência dos indícios de subordinação, fato este que não tem conseguido evitar uma expansão muitas vezes fraudulenta daquela forma de trabalho.